Abuso de poder e de domínio: eis o cerne no qual orbita a violência doméstica contra a mulher. Um domínio deplorável à dignidade da pessoa humana. É notória a histórica desigualdade que a mulher vem sofrendo em relação ao homem. Entretanto, nossa sociedade não é silente ante tal fato. Daí que, diante deste quadro trataremos da lesão corporal e o seu repúdio expresso na Lei Maria da Penha (LMP) e sua aparente controvérsia com a Constituição Federal (CF).
Conexo e derivado do princípio da dignidade da pessoa humana, a Lei Maria da Penha inaugurou uma fase de ações afirmativas em favor da mulher no sistema jurídico pátrio. Já no seu art. 1º, a Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ou simplesmente Lei Maria da Penha traduz mecanismo especial de proteção conferida pela Constituição à mulher. Não se trata de blindagem irracional ou desproporcional. Tal norma reflete a necessidade do Estado salvaguardar a família, tal qual expressa o art. 226, §§ 5º e 8º da Constituição.
Contudo não estamos em solo pacífico. Há doutrinadores que consideram a LMP inconstitucional. Segundo certos juristas, tal conjunto normativo enseja a promoção da discriminação entre homem e mulher ao proteger apenas as mulheres em desfavor dos homens. Discordamos e defendemos que a LMP deve ser interpretada de maneira ampla e proativa, posto que isto poderá fortalecer os comandos constitucionais que visam proteger o indivíduo e a família. De maneira estrita, a LMP protege apenas a mulher. Os homens até podem ser vítimas de algum tipo de violência doméstica ou familiar, entretanto tão somente a mulher recebe uma proteção diferenciada, restando às pessoas do sexo masculino a tutela por meio das penas e normas gerais do Código Penal (CP). Uma justificativa para isto é a seguinte: o homem pode ser vítima de violência doméstica, contudo, esta agressão não é fruto de razões de ordem social e cultural. Logo, não se faz necessário algum tipo de discriminação positiva ao gênero masculino. Haja vista que a razão de ser das medidas compensatórias consiste em remediar desvantagens históricas consolidadas ao longo do tempo, o que não tem guarida no caso de uma pessoa do sexo masculino.
Em termos sociais, a notória condição hipossuficiente da mulher no contexto familiar deriva de uma obtusa cultura patriarcal, a qual facilitava sua vitimização por meio da violência doméstica. Diante deste quadro entendemos como indispensável a intervenção do Estado para mitigar tais danos, proporcionando meios para o reequilíbrio das relações inerentes ao círculo familiar. Em termos legais, ao criar tais mecanismos especiais de proteção, tomando como base o gênero da vítima, o legislador utilizou o meio adequado e necessário para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher. Não é desproporcional ou ilegítima a utilização do sexo como critério de diferenciação, haja vista que a mulher se encontra numa posição vulnerável no que tange àqueles constrangimentos de ordem física e moral. E mais, a LMP é uma manifesta aplicação do princípio da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais. A LMP harmoniza-se com o princípio da isonomia, além de atender à ordem jurídica, especialmente ao se levar em conta o necessário combate ao desprezo às famílias, na qual a mulher é a sua célula básica.
Temos que ter em mente que o postulado constitucional da igualdade material (substancial ou real) defende que constatadas a existência de desigualdades fáticas entre as pessoas, estas devem ser reduzidas através da eficiente promoção de políticas públicas e privadas. Ou melhor, ao se tratar desigualmente os desiguais, promove-se a igualdade material, em detrimento da igualdade formal. Neste aspecto, a LMP visa promover a igualdade em seu sentido material, sem restringir o direito das pessoas pertencentes ao gênero masculino. Ressaltamos que dada a condição hipossuficiente da mulher, isto não implica invalidar ou diminuir sua capacidade autodeterminar-se. Na realidade trata-se de garantir a intervenção estatal positiva, voltada à sua proteção e não à sua tutela.
Outra questão polêmica no âmbito jurídico consiste na natureza jurídica da ação penal nos crimes de lesão corporal - art. 129, CP -, delito que provavelmente representa o maior número de casos relacionados à violência doméstica e familiar contra a mulher. Quanto à lesão corporal leve ou culposa, a regra geral é que se procede mediante representação, isto é, a ação penal é pública condicionada, por força do art. 88 da Lei 9.099/95. Sem este comando, a ação penal no crime de lesão corporal leve ou culposa seria pública incondicionada, considerando que o CP não exige representação para este crime - art. 129 c/c art. 100, §1º, CP. Todavia, o art. 41 da Lei 11.340/06 vedou expressamente a aplicação da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95) aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, o que impede a incidência do art. 88, que atribui à ação penal no crime de lesão corporal leve ou culposa a natureza pública condicionada. Ora, diante disto a lesão corporal leve ou culposa requer a aplicação da regra geral na qual incidem as lesões corporais grave e gravíssima: ação penal pública incondicionada.
Há quem defenda que a ação penal nesse delito segue sendo pública condicionada. Tal conclusão ampara-se na interpretação do art. 12 da LMP. Também auxilia esse entendimento a interpretação do art. 16 da LMP. Vale destacar a impropriedade do termo ‘renúncia’, posto que se o direito de representação já foi exercido – até porque já foi oferecida a denúncia -, não há que se falar em renúncia. Ao que parece que o legislador quis referir-se à retratação da representação, que é possível mesmo após o oferecimento daquela condição específica de procedência da ação penal. Se a Lei Maria da Penha estabelece uma audiência especial para a retratação da representação, demonstra que a ação penal na lesão corporal leve praticada com violência doméstica e familiar contra a mulher é pública e condicionada, pois não faria sentido prever a possibilidade de retratação da representação se essa condição não fosse exigida. Para essa corrente, o art. 41 da LMP só veda medidas despenalizadoras que não integrem a vontade da mulher. Assim, verificada a agressão com lesão corporal leve ou culposa, pode a vítima, depois de acionada a autoridade pública, recuar e retratar-se em audiência especificamente designada com essa finalidade, desde que em momento anterior ao recebimento da denúncia.
Deve-se atribuir interpretação conforme a Constituição aos arts. 12, I, 16 e 41 da Lei 11.340/06, com a finalidade de consagrar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal praticado mediante violência doméstica e familiar contra a mulher. Isso porque, se a ação penal fosse considerada condicionada, esta circunstância acabaria por esvaziar a proteção constitucional assegurada às mulheres. Demais disso, é comum que mulheres, quando o crime dependa de representação, registrem ocorrência na delegacia, mas, posteriormente, reconciliadas com seus companheiros ou maridos, retratem da representação e impeçam a ação penal.
Assim, toda lesão corporal praticada contra mulher no âmbito das relações domésticas é crime de ação penal incondicionada, isto é, o Ministério Público pode dar início à ação penal sem necessidade de representação da vítima. Na prática, isso significa que, se uma mulher sofrer lesões corporais no âmbito das relações domésticas e procurar a delegacia relatando o ocorrido, o delegado não deve fazer com que ela assine uma representação, uma vez que não existe mais essa condição de procedibilidade para tais casos. Bastará que a autoridade policial colha o depoimento da mulher e, com base nisso, havendo elementos indiciários, instaure o inquérito policial.
Como já exposto, em caso de lesão corporal leve ou culposa que a mulher for vítima, em violência doméstica, o procedimento de apuração na fase pré-processual é o inquérito policial, e não o termo circunstanciado. É dizer, se a mulher que sofreu lesão corporal leve de seu cônjuge ou companheiro, arrependida e reconciliada, procura o delegado, o promotor ou o juiz afirmando o desejo de que o inquérito ou o processo não tenha prosseguimento, esta manifestação não terá efeito jurídico algum, devendo a tramitação continuar normalmente. Se chegar a conhecimento da autoridade pública que qualquer mulher teve sua integridade física violada no âmbito doméstico e familiar, o Estado é obrigado a iniciar o procedimento penal para apurar o fato, ainda que contra a vontade da mulher. Da aplicação desse entendimento não se conclui que todos os crimes praticados contra a mulher, em sede de violência doméstica, são de ação penal incondicionada. Continuam existindo crimes que são de ação penal condicionada, como a ameaça. Permitir à mulher decidir sobre o início do procedimento penal significa desconsiderar a assimetria de poder decorrente de relações histórico-culturais, contribuindo para a diminuição de sua proteção e a prorrogando o quadro de violência e discriminação contra a pessoa do sexo feminino. Bem assim, implica relevar os graves impactos emocionais impostos à vítima, impedindo-a de romper com o estado de submissão.
Enfim, a violência doméstica contra a mulher decorre de deplorável situação de domínio abusivo, provocada, geralmente, pela dependência econômica da mulher. Sabe-se da desigualdade histórica que a mulher vem sofrendo em relação ao homem. Tanto que, até 1830, o Direito Penal Brasileiro chegava ao ponto de permitir ao marido matar a mulher quando a encontrasse em flagrante adultério. Entretanto, o sistema jurídico pátrio vem evoluindo e encontrou seu ápice na Constituição de 1988, ao assegurar em seu texto a igualdade entre homem e mulher.