Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Lei Maria da Penha e lesão corporal

Agenda 23/05/2016 às 10:43

Abuso de poder e de domínio: eis o cerne no qual orbita a violência doméstica contra a mulher e um domínio deplorável à dignidade da pessoa humana.

Abuso de poder e de domínio: eis o cerne no qual orbita a violência doméstica contra a mulher. Um domínio deplorável à dignidade da pessoa humana. É notória a histórica desigualdade que a mulher vem sofrendo em relação ao homem. Entretanto, nossa sociedade não é silente ante tal fato. Daí que, diante deste quadro trataremos da lesão corporal e o seu repúdio expresso na Lei Maria da Penha (LMP) e sua aparente controvérsia com a Constituição Federal (CF).

Conexo e derivado do princípio da dignidade da pessoa humana, a Lei Maria da Penha inaugurou uma fase de ações afirmativas em favor da mulher no sistema jurídico pátrio. Já no seu art. 1º, a Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ou simplesmente Lei Maria da Penha traduz mecanismo especial de proteção conferida pela Constituição à mulher. Não se trata de blindagem irracional ou desproporcional. Tal norma reflete a necessidade do Estado salvaguardar a família, tal qual expressa o art. 226, §§ 5º eda Constituição.

Contudo não estamos em solo pacífico. Há doutrinadores que consideram a LMP inconstitucional. Segundo certos juristas, tal conjunto normativo enseja a promoção da discriminação entre homem e mulher ao proteger apenas as mulheres em desfavor dos homens. Discordamos e defendemos que a LMP deve ser interpretada de maneira ampla e proativa, posto que isto poderá fortalecer os comandos constitucionais que visam proteger o indivíduo e a família. De maneira estrita, a LMP protege apenas a mulher. Os homens até podem ser vítimas de algum tipo de violência doméstica ou familiar, entretanto tão somente a mulher recebe uma proteção diferenciada, restando às pessoas do sexo masculino a tutela por meio das penas e normas gerais do Código Penal (CP). Uma justificativa para isto é a seguinte: o homem pode ser vítima de violência doméstica, contudo, esta agressão não é fruto de razões de ordem social e cultural. Logo, não se faz necessário algum tipo de discriminação positiva ao gênero masculino. Haja vista que a razão de ser das medidas compensatórias consiste em remediar desvantagens históricas consolidadas ao longo do tempo, o que não tem guarida no caso de uma pessoa do sexo masculino.

Em termos sociais, a notória condição hipossuficiente da mulher no contexto familiar deriva de uma obtusa cultura patriarcal, a qual facilitava sua vitimização por meio da violência doméstica. Diante deste quadro entendemos como indispensável a intervenção do Estado para mitigar tais danos, proporcionando meios para o reequilíbrio das relações inerentes ao círculo familiar. Em termos legais, ao criar tais mecanismos especiais de proteção, tomando como base o gênero da vítima, o legislador utilizou o meio adequado e necessário para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher. Não é desproporcional ou ilegítima a utilização do sexo como critério de diferenciação, haja vista que a mulher se encontra numa posição vulnerável no que tange àqueles constrangimentos de ordem física e moral. E mais, a LMP é uma manifesta aplicação do princípio da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais. A LMP harmoniza-se com o princípio da isonomia, além de atender à ordem jurídica, especialmente ao se levar em conta o necessário combate ao desprezo às famílias, na qual a mulher é a sua célula básica.

Temos que ter em mente que o postulado constitucional da igualdade material (substancial ou real) defende que constatadas a existência de desigualdades fáticas entre as pessoas, estas devem ser reduzidas através da eficiente promoção de políticas públicas e privadas. Ou melhor, ao se tratar desigualmente os desiguais, promove-se a igualdade material, em detrimento da igualdade formal. Neste aspecto, a LMP visa promover a igualdade em seu sentido material, sem restringir o direito das pessoas pertencentes ao gênero masculino. Ressaltamos que dada a condição hipossuficiente da mulher, isto não implica invalidar ou diminuir sua capacidade autodeterminar-se. Na realidade trata-se de garantir a intervenção estatal positiva, voltada à sua proteção e não à sua tutela.

Outra questão polêmica no âmbito jurídico consiste na natureza jurídica da ação penal nos crimes de lesão corporal - art. 129, CP -, delito que provavelmente representa o maior número de casos relacionados à violência doméstica e familiar contra a mulher. Quanto à lesão corporal leve ou culposa, a regra geral é que se procede mediante representação, isto é, a ação penal é pública condicionada, por força do art. 88 da Lei 9.099/95. Sem este comando, a ação penal no crime de lesão corporal leve ou culposa seria pública incondicionada, considerando que o CP não exige representação para este crime - art. 129 c/c art. 100, §1º, CP. Todavia, o art. 41 da Lei 11.340/06 vedou expressamente a aplicação da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95) aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, o que impede a incidência do art. 88, que atribui à ação penal no crime de lesão corporal leve ou culposa a natureza pública condicionada. Ora, diante disto a lesão corporal leve ou culposa requer a aplicação da regra geral na qual incidem as lesões corporais grave e gravíssima: ação penal pública incondicionada.

Há quem defenda que a ação penal nesse delito segue sendo pública condicionada. Tal conclusão ampara-se na interpretação do art. 12 da LMP. Também auxilia esse entendimento a interpretação do art. 16 da LMP. Vale destacar a impropriedade do termo ‘renúncia’, posto que se o direito de representação já foi exercido – até porque já foi oferecida a denúncia -, não há que se falar em renúncia. Ao que parece que o legislador quis referir-se à retratação da representação, que é possível mesmo após o oferecimento daquela condição específica de procedência da ação penal. Se a Lei Maria da Penha estabelece uma audiência especial para a retratação da representação, demonstra que a ação penal na lesão corporal leve praticada com violência doméstica e familiar contra a mulher é pública e condicionada, pois não faria sentido prever a possibilidade de retratação da representação se essa condição não fosse exigida. Para essa corrente, o art. 41 da LMP só veda medidas despenalizadoras que não integrem a vontade da mulher. Assim, verificada a agressão com lesão corporal leve ou culposa, pode a vítima, depois de acionada a autoridade pública, recuar e retratar-se em audiência especificamente designada com essa finalidade, desde que em momento anterior ao recebimento da denúncia.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Deve-se atribuir interpretação conforme a Constituição aos arts. 12, I, 16 e 41 da Lei 11.340/06, com a finalidade de consagrar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal praticado mediante violência doméstica e familiar contra a mulher. Isso porque, se a ação penal fosse considerada condicionada, esta circunstância acabaria por esvaziar a proteção constitucional assegurada às mulheres. Demais disso, é comum que mulheres, quando o crime dependa de representação, registrem ocorrência na delegacia, mas, posteriormente, reconciliadas com seus companheiros ou maridos, retratem da representação e impeçam a ação penal.

Assim, toda lesão corporal praticada contra mulher no âmbito das relações domésticas é crime de ação penal incondicionada, isto é, o Ministério Público pode dar início à ação penal sem necessidade de representação da vítima. Na prática, isso significa que, se uma mulher sofrer lesões corporais no âmbito das relações domésticas e procurar a delegacia relatando o ocorrido, o delegado não deve fazer com que ela assine uma representação, uma vez que não existe mais essa condição de procedibilidade para tais casos. Bastará que a autoridade policial colha o depoimento da mulher e, com base nisso, havendo elementos indiciários, instaure o inquérito policial.

Como já exposto, em caso de lesão corporal leve ou culposa que a mulher for vítima, em violência doméstica, o procedimento de apuração na fase pré-processual é o inquérito policial, e não o termo circunstanciado. É dizer, se a mulher que sofreu lesão corporal leve de seu cônjuge ou companheiro, arrependida e reconciliada, procura o delegado, o promotor ou o juiz afirmando o desejo de que o inquérito ou o processo não tenha prosseguimento, esta manifestação não terá efeito jurídico algum, devendo a tramitação continuar normalmente. Se chegar a conhecimento da autoridade pública que qualquer mulher teve sua integridade física violada no âmbito doméstico e familiar, o Estado é obrigado a iniciar o procedimento penal para apurar o fato, ainda que contra a vontade da mulher. Da aplicação desse entendimento não se conclui que todos os crimes praticados contra a mulher, em sede de violência doméstica, são de ação penal incondicionada. Continuam existindo crimes que são de ação penal condicionada, como a ameaça. Permitir à mulher decidir sobre o início do procedimento penal significa desconsiderar a assimetria de poder decorrente de relações histórico-culturais, contribuindo para a diminuição de sua proteção e a prorrogando o quadro de violência e discriminação contra a pessoa do sexo feminino. Bem assim, implica relevar os graves impactos emocionais impostos à vítima, impedindo-a de romper com o estado de submissão.

Enfim, a violência doméstica contra a mulher decorre de deplorável situação de domínio abusivo, provocada, geralmente, pela dependência econômica da mulher. Sabe-se da desigualdade histórica que a mulher vem sofrendo em relação ao homem. Tanto que, até 1830, o Direito Penal Brasileiro chegava ao ponto de permitir ao marido matar a mulher quando a encontrasse em flagrante adultério. Entretanto, o sistema jurídico pátrio vem evoluindo e encontrou seu ápice na Constituição de 1988, ao assegurar em seu texto a igualdade entre homem e mulher.

Sobre o autor
Adriano Eurípedes Medeiros Martins

graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (1998). Especialista em Administração Estratégica (2009) pela Uniminas. Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002). Conclui o doutorado em setembro de 2011, na área de Filosofia Política pela UFMG. Iniciei em 2015 e conclui em 2016 o meu pós-doutorado na UFU. Atualmente sou professor (filosofia, ética, política e educação) do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM) - Campus Uberaba. Tenho experiência na área de Filosofia, Sociologia e Direito estudando e pesquisando principalmente os seguintes autores e temas: Vico, Descartes, Hobbes, Locke, Rousseau, Maquiavel, Política, Ética, Direito e Educação.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!