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A casa dos mortos.

Uma análise crítica sobre os hospitais de custódia do Brasil

Agenda 23/05/2016 às 18:52

É necessária uma reforma significativa não só na aplicação da medida de segurança, mas em toda a estrutura de hospitais de custódia, bem como na psiquiatria brasileira no que diz respeito aos manicômios judiciais.

Produzido no ano de 2009, pela antropóloga e professora da Universidade de Brasília Debora Diniz, o documentário “A Casa dos Mortos” - com duração de aproximadamente 30 minutos – apresenta a dura e contraditória realidade diária dos internos do Hospital de Custódia e Tratamento, manicômio judicial localizado em Salvador – BA. Tal produção é narrada por um interno chamado “Bubu” que conta com doze internações nesses tipos de “presídios” desafiando a verdadeira função das medidas de segurança e transformando sentenças em ciclos intermináveis que acabam por condenar os inimputáveis e semi-imputáveis à prisão perpétua.

Para melhor analisar o documentário, é necessário fazer – inicialmente - uma breve descrição da realidade dos internos e das condições do HCT apresentadas no documentário. O curta-metragem é divido em três partes interligadas respectivamente à vida de Jaime, Antônio e Almerindo, internos que dividem sua realidade com as câmeras quase que de forma literal. A primeira parte do documentário, fixada na vida do interno Jaime, nos mostra a nítida insatisfação dos que ali se encontram em continuar vivendo nas dependências do manicômio judicial, seja pela enorme solidão, pela ausência de visitas de familiares (que muitas vezes os abandonam), ou mesmo pelas condições desumanas que cercam o HCT.  Jaime relata no documentário o ciclo “liberdade-internação” que viveu devido o cometimento de três suicídios e afirma que todos eles foram ocasionados pela negligência em ingerir os medicamentos que lhe foram passados.

Cinco dias após da entrevista dada por Jaime, outros internos do HCT relatam que ele teria cometido suicídio no intervalo de tempo que dormia sozinho, já que havia sido separado dos colegas. Ao descrever como ocorreu o fato, um dos internos ressalta que vários suicídios ocorrem por asfixiamento, mas que no caso de Jaime o pescoço dele teria quebrado antes mesmo da possibilidade de falta de ar. Nesse discurso do interno, podemos observar a completa falta de vigilância por parte dos profissionais que trabalham nas dependências do HCT, principalmente pela frequente ocorrência de casos de homicídio, uma negligência que se une com o completo isolamento social e faz com que a morte seja apenas uma maneira biológica de atenuar o sofrimento daqueles que já se encontram socialmente falecidos.

Na segunda parte do documentário temos a realidade do interno Antônio que apresenta um quadro de reincidência, já tendo passado outras vezes por hospitais de custódia. Em uma das cenas do curta, percebe-se nitidamente a falta de profissionalismo de uma das funcionárias do HCT ao debochar – apresentando para isso um discurso homofóbico – do interno devido ao fato dele dizer que não cortaria as unhas e sim, as pintaria. Analisando esse comportamento e outros tantos que o documentário nos mostra, podemos perceber o quão constante e falho é o comportamento dos profissionais que trabalham nos manicômios judiciais e como o desrespeito à ética e a inobservância dos direitos humanos acaba por piorar o quadro clinico dos internos, transformando-se em mais um agravante para a possibilidade de um tratamento eficiente.

A última tomada do curta é protagonizada pelo Almerindo, interno que recebeu uma sentença de no mínimo dois anos por lesões corporais leves, e segundo a Defensora Pública esse prazo já havia sido cumprido por Almerindo há muito tempo, fora que esses dois anos poderiam ter sido cumpridos por meio de tratamento ambulatorial e não necessariamente ele precisaria ser internado, visto que lesões corporais leves é um fato apenado com detenção e no caso dele a internação foi uma medida totalmente equivocada. Devido a isso, a vida social do interno foi completamente atingida, ele perdeu todo o contado com seus familiares e não tem para onde ir. Os hospitais de custódia, como podemos observar com o triste caso de Almerindo, acabam saindo do âmbito de locais para cumprimento de medida de segurança, transformando-se em abrigos – quase que cemitérios – para os socialmente mortos.

A realidade conflituosa e perturbadora mostrada nesse documentário muito bem executado tem como questionamento principal as medidas de segurança, sua aplicabilidade e eficácia na vida das pessoas a quem elas se destinam. Partindo dessa reflexão é primordial analisar o que viriam a ser essas tão citadas medidas de segurança. Pois bem, tomando como referencia as sábias palavras do Dr. Guilherme de Souza Nucci, medida de segurança: “trata-se de uma forma de sanção penal, com caráter preventivo e curativo, visando a evitar que o autor de um fato havido como infração penal, inimputável ou semi-imputável, mostrando periculosidade, torne a cometer outro injusto e receba tratamento adequado.” (Manual de Direito Penal, p. 593). Observem que o conceito dado por Nucci é explicito no tocando a um “tratamento adequado” por parte do infrator, o que mais uma vez nos remete a realidade completamente agressiva – tanto do ponto de vista habitacional quanto moral – a que são submetidos os internos nos manicômios judiciais do Brasil, sobretudo no HCT que é o nosso objeto de análise.

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Mas porque referir-se as pessoas que estão no HCT usando a expressão “internos”? Porque as medidas de segurança são classificadas de duas maneiras, tem-se a internação, que equivale ao regime fechado da pena privativa de liberdade, inserindo-se o sentenciado no hospital de custódia e tratamento (fundamentando o uso da expressão internos, anteriormente citada) e o tratamento ambulatorial que guarda relação com a pena restritiva de direitos, onde o sentenciado deve obrigatoriamente comparecer ao médico para acompanhamento.

Tais medidas podem ocorrer tanto de sentença de absolvição imprópria quanto de sentença condenatória e até mesmo de aparecimento de insanidade mental conforme preceitua o artigo 183 da Lei de Execução Penal: “quando no curso da execução da pena privativa de liberdade, sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental, o juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Publico ou da autoridade administrativa, poderá determinar a substituição da pena por medida de segurança”.

O Artigo 97 do Código Penal prevê que é obrigatória a internação do inimputável no caso da pratica de um fato típico e antijurídico punidos, em abstrato com pena de reclusão. No entanto, esse preceito segundo Nucci “é nitidamente injusto, pois padroniza a aplicação da sanção penal e não resolve o drama de muitos doentes mentais que poderiam ter suas internações evitadas” (Manual de Direito Penal, p. 596). Com base nesse raciocínio podemos evidentemente exemplificar com o triste caso já citado do interno Almerindo, que ao cometer uma tentativa de homicídio que resultou em lesões leves para a vítima teve, ao invés de um tratamento ambulatorial e acompanhamento familiar, sua vida social completamente esquecida e condenada aos muros do HCT. Sustentando ainda mais a nítida injustiça que ocorre devido a negligência na aplicação da medida de segurança de internação, temos o art. 4.º da Lei Antimanicomial (nº 10.216/2001) que prevê em seu texto que: “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”.

Outro grande fator influencia significativamente para a problemática dos hospitais de custódia e a aplicação das medidas de segurança: a duração destas. A lei estipula que a medida de segurança se dá por prazo indeterminado. Nucci, afirma que “apesar de seu caráter de sanção penal, a medida de segurança não deixa de ter o propósito curativo e terapêutico. Ora, enquanto não for devidamente curado, deve o sujeito submetido à internação permanecer em tratamento, sob custódia do Estado”. Mesmo com essa posição aparentemente lógica em relação à indeterminação temporal de aplicação da medida de segurança não parece digno sustentar e defender tal posição em meio à realidade totalmente inapropriada que o Brasil submete os internados, que ficam a mercê de profissionais despreparados e de um ambiente que propicia o agravamento de seus quadros clínicos.

Infelizmente, esse prazo indeterminado só torna o isolamento social e a marginalização dos internos uma prática legítima que acaba por facilitar que mais casos como o de Almerindo, que está há mais de 30 anos no Hospital de Custódia e Tratamento (HCTP) de Salvador, aconteçam e sejam algo que poderia ter sido evitado se não fosse a grande contradição doutrinária e, principalmente, jurisprudencial.

Ao analisarmos todo o cenário retratado no documentário podemos perceber a falta de compromisso não só de muitos profissionais da área da saúde, mas também dos próprios atuantes no cenário de segurança pública do Brasil. É necessária uma reforma significativa não só na aplicação da medida de segurança, mas em toda a estrutura de hospitais de custódia, bem como na psiquiatria brasileira no que diz respeito aos manicômios judiciais, onde aqueles que atuam na área médica precisam desenvolver uma consciência ética em relação aos portadores de deficiências mentais bem como alcançar outras soluções que não o internamento, visto que este acaba por quebrar todos os laços familiares, submetendo os infratores a uma prisão perpétua física e psicológica que se finda no esquecimento.

REFERENCIAS

Nucci, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 9. ed. São Paulo: RT, 2013.

Documentário “a casa dos mortos”. Disponível em: <http://www.acasadosmortos.org.br>, acesso em 06/05/2013.

Texto: Criação do Manicômio Judiciário no Brasil. Disponível em: <http://www.altrodiritto.unifi.it/ricerche/latina/cerqueir/cap1.htm>, acesso em 07/05/2013

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