A atuação como advogado na área de infraestrutura possibilitou um contato direto com incontáveis demandas envolvendo as municipalidades nos mais variados estados da federação.
O que se vê como regra, de norte a sul, ressalvadas raríssimas exceções, é a aplicação deturpada e maliciosa de dispositivos legais, principalmente, das legislações municipais e o claro desrespeito ao posicionado adotado pelos tribunais com o único intuito de abarrotar os cofres públicos em total detrimento do contribuinte.
Exemplo cristalino e que será objeto de análise neste artigo, ainda que de forma bastante sucinta, é a vedação expressa nas legislações municipais e/ou a simples utilização de mecanismos, tais como o excesso de exigências, que insistem em impedir ou dificultar sobremaneira a dedução da base de cálculo do ISSQN do valor dos materiais empregados na prestação dos serviços de concretagem, mesmo diante da pacificação da questão pelo STF, conforme RE 603.497/MG, Rel. Min. Ellen Gracie, em que reconhecido a repercussão geral[1].
Vale salientar que a mencionada orientação do STF é datada de 2010, ou seja, decorrida mais de meia década, empresas do setor ainda são obrigadas a se socorrer do judiciário para que os expressivos gastos com o material empregado na prestação dos serviços sejam devidamente deduzidos da base de cálculo do imposto municipal.
De maneira bastante simplória, para que se tenha uma ideia melhor da expressiva diferença na arrecadação, levando-se em consideração a alíquota média praticada pelos municípios (de 5%), quando calculada sobre uma Nota Fiscal de Serviço no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais), o contribuinte recolhe aos cofres públicos apenas a título de ISSQN o valor de R$ 5.000,00.
Pois bem, ciente de que aproximadamente 70% (setenta por cento) do valor da nota fiscal emitida por uma concreteira corresponde aos materiais empregados na prestação dos serviços (aquisição de agregados como cimento, areia, pedra, aditivo, etc), esse mesmo contribuinte, por lei e amparado pela melhor jurisprudência, recolheria apenas o valor de R$ 1.500,00 (ou seja, os mesmos 5% calculados sobre R$ 30.000,00).
Como já registrado em outro artigo de mesma autoria[2], não é segredo algum que o país vive uma crise econômica e política sem precedentes, cuja recessão já ceifou milhares de empresas e milhões de postos de trabalho (mais de 11,2% ou 11,4 milhões de pessoas), segundo dados divulgados nesta data por um renomado jornal[3].
Entretanto, ao contrário de fomentar a atividade econômica e assim garantir a manutenção dos empregos e principalmente da fonte arrecadatória e circulação de riquezas, o poder público, no caso dos municípios, insiste na manutenção de mecanismos que dificultam e oneram desnecessariamente a atividade empresarial.
No caso específico do ISSQN sobre a prestação de serviços de concretagem[4], as prefeituras continuam desprezando o fato de que a jurisprudência já solidificou o entendimento no sentido de que prestador não irá mais recolher o imposto sobre o valor correspondente aos materiais empregados (pedra, a areia, cimento, etc), devendo o mesmo incidir apenas e tão somente sobre o valor relativo à efetiva prestação de serviços, consubstanciado na tecnia empregada na dosagem adequada dos agregados seguindo especificações técnicas, serviços de transporte do concreto, os serviços de aplicação e bombeamento para a obra, etc.
Vale salientar que “não só os materiais produzidos pelo próprio fornecedor fora do local de prestação de serviços não estão sujeitos à incidência do ISSQN, mas todo e qualquer material, inclusive aqueles produzidos por terceiros, estão abrangidos pela hipótese de não incidência ora em comento, pois os insumos utilizados na prestação dos serviços de concretagem já são tributados em fases anteriores pelo ICMS.”[5]
A vedação da dedução dos insumos no preço do serviço da base de cálculo do ISSQN importa em bitributação, ou seja, quando dois entes tributantes cobram tributos sobre o mesmo fato jurídico tributário, o que é vedado pelo ordenamento jurídico pátrio.
Aliás, em razão de uma avalanche de autuações fiscais realizadas por um determinado município do litoral paulista, tive a oportunidade de questionar pessoalmente um dos procuradores justamente acerca da contrariedade da postura adotada pela municipalidade em face do posicionamento uníssono e hodierno dos tribunais. Em reposta, como já era esperado, ouvi que a negativa na dedução do valor dos materiais empregados na prestação dos serviços era regra, inclusive, tendo sido essa a orientação do próprio executivo municipal, sendo autorizada a correta dedução somente aos que estivessem amparados por ordem judicial.
Em outras palavras, o tal município, por regra, continuaria tirando vantagem dos contribuintes menos avisados, cobrando valores que de antemão já sabe serem indevidos, em flagrante aplicação da “Lei de Gérson”[6] e em manifesto desrespeito aos princípios norteadores da administração pública.
Alternativa ao contribuinte que se vê nessa situação será a propositura de ação judicial, para recolhimento imediato do ISSQN com a dedução do valor dos materiais empregados na prestação dos serviços, até o julgamento da questão, bem como, para que a municipalidade de abstenha de praticar quaisquer atos contrários à determinação, por exemplo, impedindo à lavratura de autos e infração.
O contribuinte poderá, ainda, dependendo da situação, manejar defesa contra ações de execução fiscal lastreadas em CDAs oriundas dos autos de infração lavrados em razão do recolhimento ISSQN com a dedução do valor dos materiais, bem como, poderá pleitear a repetição do indébito que deverá ser apurado nos últimos 5 (cinco) anos, devidamente corrigido e atualizado nos moldes legais.
Colacionamos abaixo o trecho da recente sentença proferida pelo MM. Juiz de Direito Augusto Bruno Mandelli, da Vara da Fazenda Pública da Comarca de Penápolis, que acolheu a tese empossada em sede de embargos, declarando inexigível o crédito tributário do ISSQN indevidamente cobrado e calculado sobre o valor dos materiais empregados na prestação de serviços:
“No mérito, os embargos são procedentes.
De fato, tem razão o embargante: os valores dos materiais utilizados na construção civil devem ser abatidos da base de cálculo do ISSQN.
Essa tem sido a orientação dos tribunais superiores e também do Tribunal de Justiça de São Paulo, que já se posicionou:
"MANDADO DE SEGURANÇA ISS Município de Mauá Serviços de construção civil Possibilidade da dedução da base de cálculo do valor dos materiais empregados Art. 7º, § 2º, I, da Lei Complementar nº 116/2003 Precedente do STF em repercussão geral, Recurso provido." (Apelação 633459.2012, 15ª Câmara de Direito Público, Relator Rezende Silveira, j. 29/09/2015, DJe 1/10/2015).
Ainda:
"Apelação Embargos à Execução ISSQN Serviços de Concretagem Construção Civil - Base de cálculo - Dedução do preço dos materiais fornecidos pelo prestador dos serviços Admissibilidade Inteligência do artigo 7º, parágrafo 2º, I, da L.C. nº 116/2003, Precedentes do STF e STJ - Recurso provido" (Apelação 019620-29.2008, 14ª Câmara de Direito Público, Relator Cláudio Marques, j. 31/07/2014, DJe 08/08/2014).
Isto posto, nos termos do art. 269, I, do CPC, acolho os embargos para declarar inexigível o crédito tributário do ISSQN referentes aos materiais utilizados na construção civil.”[7]
Acredito que o contribuinte possa ir até um pouco mais longe, na medida em que os municípios têm pleno e irrestrito conhecimento de que agem em total afronta às determinações legais ao cobrar do contribuinte imposto indevido.
É de conhecimento dos operadores do direito que o artigo 37, § 6º da Constituição Federal[8] relaciona as pessoas de Direito Público e aos prestadores de serviço público como igualmente responsáveis por danos que seus agentes causem a terceiros em razão da função.
Ora, sendo a responsabilidade do ente público objetiva, de forma que responde pelos danos causados a terceiros, independentemente de ter agido com culpa o seu agente, imperioso que no caso de cobrança indevida de imposto, mediante inscrição no CADIN e propositura de ação de execução fiscal (cuja questão já se encontra pacificada pela mais alta corte do país), tem lugar a condenação da municipalidade ao pagamento de indenização por danos morais.
Na Lição de Maria Teresa de Almeida Rosa Cárcomo Lobo:
“Não sujeitar a Administração à reparação dos atos reputados ilícitos pelo Poder Judiciário, equivale dizer que a Administração não está submetida aos ditames constitucionais da moral e da lei e que, não obstante os princípios cristalizados na Carta Magna, o contribuinte ainda hoje não é cidadão, continuando a ser súdito do Fisco”.[9]
Mesma linha é adotada pelos julgados abaixo:
“APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. MUNICÍPIO. EXECUÇÃO FISCAL. 1. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. OMISSÃO ESPECÍFICA. Conforme vem entendendo esta Corte e o STF, quando há uma omissão específica do Estado, ou seja, quando a falta de agir do ente público é causa direta e imediata de um dano, há responsabilidade objetiva, com escudo na Teoria do Risco Administrativo e no art. 37, § 6º da CF. 2. AJUIZAMENTO INDEVIDO. DÍVIDA INEXISTENTE. DANO MORAL. DEVER DE INDENIZAR. O ajuizamento de ação executória por parte da municipalidade, de forma equivocada, ante a inexistência da dívida, é situação que repercute na esfera moral de qualquer indivíduo, porquanto produz angústia e desassossego que merecem ser indenizados. (...)” (Apelação Cível Nº 70051995835, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini Bernardi, Julgado em 10/04/2013). g.n.
“APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. SERVIÇO AUTÔNOMO DE ÁGUA E ESGOTO DE CAXIAS DO SUL. EXECUÇÃO FISCAL E INSCRIÇÃO INDEVIDA EM DÍVIDA ATIVA. DANO MORAL IN RE IPSA RECONHECIDO. INVERSÃO DA SUCUMBÊNCIA. 1. O Estado ou Município que move em desfavor de contribuinte ação de execução fiscal, e inscreve seu nome em dívida ativa, em relação a tributo indevido, pratica ato ilícito indenizável. (...)” (Apelação Cível Nº 70051188860, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, Julgado em 12/12/2012) g.n.
Evidente, pois, que a condenação das municipalidades à repetição do indébito e ao pagamento de pesada indenização por danos morais acarretaria mudanças sensíveis, “incentivando-as” ao reconhecimento de seus abusos e quiçá ao cumprimento irrestrito e exato das normas jurídicas vigentes em favor do contribuinte.
Notas
[1] “TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS - ISS. DEFINIÇÃO DA BASE DE CÁLCULO. DEDUÇÃO DOS GASTOS COM MATERIAIS EMPREGADOS NA CONSTRUÇÃO CIVIL. RECEPÇÃO DO ART. 9º, § 2º, b, DO DECRETO-LEI 406/1968 PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. RATIFICAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA FIRMADA POR ESTA CORTE. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.”
[2] https://jus.com.br/artigos/46591/do-remedio-contra-o-indeferimento-do-pedido-de-licenca-de-funcionamento-por-inscricao-no-cadin-municipal
[3] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/05/1776652-desemprego-nacional-atinge-112-no-trimestre-encerrado-em-abril-diz-ibge.shtml
[4] Súmula 167 do STJ - "O fornecimento de concreto, por empreitada, para construção civil, preparado no trajeto até a obra, em betoneiras acopladas a caminhões, é prestação de serviço, sujeitando-se apenas à incidência do ISS."
[5] Trecho extraído da sentença proferida no Processo nº 1007977-31.2015.8.26.0477 que tramitou perante a Vara da Fazenda Pública de Praia Grande.
[6] “o meio-campista Gérson ficou célebre não apenas por ter sido uma das maiores estrelas do tricampeonato brasileiro em 1970, mas por ter formulado, na propaganda do cigarro Vila Rica veiculada anos depois, aquela que viria a ser conhecida como lei de Gérson: “O importante é levar vantagem em tudo, certo?” (http://super.abril.com.br/ciencia/viva-a-lei-de-gerson)
[7] Processo nº 0006560-17.2014.8.26.0438, SEF - Setor de Execuções Fiscais - Foro de Penápolis, 19/11/2015.
[8] § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
[9] MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). O princípio da moralidade no direito tributário. São Paulo: 2. ed., RT, p. 76.