Introdução
O presente estudo insere-se no âmbito da arbitragem nas relações jurídico-administrativas, voltando-se mais especificamente para a disciplina, dada a este instituo, pelo Código de Processo nos Tribunais Administrativos – CPTA.
Contudo, ousar-se abordar uma problemática tão vasta e rica em problemas no limitado espaço de um artigo é algo que não nos atreveríamos a fazer. Era necessário, pois, promover um corte que delimitasse, em termos mais restritos, a temática a ser analisada.
Sob essa perspectiva, trataremos apenas das principais novidades trazidas pelo aludido diploma e das questões que estas suscitam, noticiando as discussões a este propósito travadas na doutrina e, tanto quanto possível, levando outras, sem embargo de expressar nosso posicionamento a respeito destas.
1. Âmbito da Justiça Administrativa e tribunais arbitrais
A primeira questão que cabe discutir diz respeito à previsão do art. 212, nº 3, da Constituição da República Portuguesa – CRP. É necessário esclarecer qual o alcance da reserva de jurisdição feita pelo mencionado dispositivo.
Neste sentido, subscrevemos o entendimento do Professor Vieira de Andrade para o qual “a reserva de jurisdição estabelecida no art. 212º não é uma reserva material absoluta”[1].
O fato de a CRP estabelecer o âmbito da jurisdição administrativa não quer dizer que ela exclua a liberdade de conformação do legislador ordinário[2]. É bem verdade que essa liberdade está sujeita a limites impostos pela própria constituição, limites cuja determinação deverá ser realizada através da interpretação sistemática das normas constitucionais.
A esse propósito, convém salientar que a CRP, ao incluir os tribunais arbitrais entre as categorias de tribunais (art. 209º), reconhece a natureza jurisdicional[3] da atividade desenvolvida por aqueles.
Nesse diapasão, é sob essa perspectiva de interpretação integrada das normas constitucionais, para o efeito de delimitar o alcance da reserva de jurisdição constante do nº 3 do art. 212, que entendemos que a leitura desta disposição deverá ser feita, necessariamente, em consonância com o art. 209, ambos da CRP[4].
A interpretação conjunta dos aludidos dispositivos, ao nosso ver, autorizaria o legislador, no exercício de sua liberdade de conformação, a estabelecer que litígios respeitantes a relações jurídico-administrativas pudessem ser objeto de arbitragem[5].
Conforme se verá ao longo deste estudo, a admissibilidade da arbitragem dos litígios dessa natureza é sufragada pela melhor doutrina e, inclusive, goza de reconhecimento legislativo.
2. Aspectos gerais da reforma de 2002/2004 do contencioso administrativo português
Como se colhe das manifestações doutrinárias feitas ao longo da interessante discussão pública que foi travada a propósito da reforma do contencioso administrativo, a necessidade de se promover à dita reforma, mais do que uma exigência de ordem prática, no sentido de ampliar o espectro de proteção dos administrados e otimizar as funções da Justiça Administrativa, era imposição da própria Constituição da República Portuguesa, na formatação que lhe foi dada pelas sucessivas revisões[6].
Em síntese, pode-se afirmar que a reforma do contencioso administrativo, na dupla perspectiva — estrutural e processual — em que pode ser vista, embora reforçando as garantias atinentes às esferas jurídicas individuais, procurou conciliar e equilibrar as dimensões subjetiva e objetiva (proteção da legalidade e do interesse público) que a Justiça Administrativa deve assumir, aperfeiçoando o sistema a fim de proporcionar a efetiva tutela dos direitos individuais dos administrados e do interesse público[7].
É sob esse espírito que devem ser compreendidas as modificações operadas pela reforma, cujas principais linhas serão brevemente noticiadas a seguir[8].
Em primeiro lugar, verifica-se a redefinição da competência dos tribunais administrativos, feita, sobretudo, com o escopo de desafogar os tribunais superiores, notadamente o Supremo Tribunal Administrativo – STA, das competências originárias que lhe eram atribuídas.
Na configuração do contencioso, nota-se a ampliação do âmbito da jurisdição administrativa, estabelecendo-se novas pretensões que passam a se submeter à Justiça Administrativa, como, por exemplo, questões relativas a contratos administrativos e contratos de direito privado (submetidos a um procedimento pré-contratual de direito público, e.g.); responsabilidade civil extracontratual do Estado e de seus órgãos, agentes, funcionários, inclusive ações de regresso; fiscalização da legalidade de atos materialmente administrativos.
Por outro lado, é de se destacar a significativa alteração no que diz respeito aos meios processuais para fazer atuar tais pretensões, criando-se novas formas para o processo contencioso: a) a ação especial, que se destinaria às situações em que estivesse presente o exercício de poder de autoridade; e b) a ação comum, voltada às questões em que não se verificasse o exercício desse poder, isto é, nas relações paritárias entre a Administração e administrados.
A par disso, foram criadas outras formas processuais destinadas à tutela principal urgente, como, e.g., o contencioso eleitoral, o pré-contratual e os processos de intimação.
A legitimidade processual, por seu turno, também foi objeto de modificação.
A legitimidade ativa nas ações relativas a contratos foi estendida ao Ministério Público e contra-interessados ao passo que a legitimidade passiva passou a ser das pessoas jurídicas ou dos ministérios a que os órgãos estão vinculados, sem o prejuízo de se poder indicar o órgão como sujeito passivo da ação administrativa, como no sistema anterior.
Observou-se, outrossim, o reforço do poder dos tribunais administrativos para a execução de seus julgados, bem como a atribuição de poderes para efetivar as providências necessárias a garantir a utilidade do processo, quais sejam: cautelares, antecipatórias e conservatórias.
Cumpre referir, ainda, a inauguração da possibilidade de a Administração ser sancionada por litigância de má-fé e obrigada ao pagamento de custas.
Finalizando essa breve notícia acerca das inovações promovidas pela reforma do contencioso administrativo, faz-se mister sublinhar aquela que diz respeito ao tema deste estudo: a previsão da criação de tribunais e centros arbitrais para a apreciação de litígios oriundos das relações jurídico-administrativas (arts. 180º a 187º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – CPTA).
A rigor, o CPTA teve o mérito de ampliar o rol de litígios, surgidos entre a Administração e os particulares, que podem ser apreciados no juízo arbitral, uma vez que essa possibilidade já era admitida há muito tempo pelo ordenamento jurídico português em relação a certas matérias, conforme será visto mais a frente.
Deve-se reconhecer, entretanto, que a ampliação operada pela reforma — sem que se queira tirar-lhe o mérito — foi tímida e adotou critério discutível, conforme teremos a oportunidade de referir.
A ampliação operada pelo CPTA, com efeito, insere-se no contexto mais amplo da necessidade — que a reforma procurou atender — de a Justiça Administrativa dar ao cidadão uma resposta adequada às pretensões que lhe fossem submetidas, o que acaba tocando a questão da celeridade; somente poderá ser considerada adequada a resposta que seja dada em tempo razoável.
Sucede que a análise da estrutura e do funcionamento da Justiça Administrativa, feita por ocasião dos trabalhos que antecederam a reforma, diagnosticou a morosidade processual como um dos principais problemas enfrentados por esta jurisdição[9].
De fato, o aumento da litigiosidade em matéria de relações jurídico-administrativas, verificado pelo aumento da quantidade de processos que, todos os anos, ingressavam nos tribunais administrativos, não pôde ser solucionado pelo simples acréscimo do número de juízes e tribunais, o que fez com que a tramitação dos processos passasse a demorar mais[10].
Por outro lado, a crescente complexidade que as demandas administrativas adquiriram, devido à evolução das formas e campos de atuação da Administração, também contribuiu para agravar o problema da celeridade processual, uma vez que a atividade do magistrado foi atravancada, na medida em que este se viu obrigado, não obstante o auxílio que os peritos podem prestar, a apreciar litígios que demandam conhecimentos técnicos cada vez maiores[11].
É diante dessa realidade de congestionamento dos tribunais administrativos, e de sua impossibilidade de dar uma resposta mais célere às pretensões dos administrados, que o legislador reformista passou a ver o fortalecimento da arbitragem em matéria administrativa como uma boa saída — não a única, evidentemente — para tentar minimizar os citados problemas.
Vale dizer, passa-se a ver na arbitragem uma excelente alternativa para a questão da morosidade da Justiça Administrativa, no sentido de que se poderia promover o desvio, para o seu âmbito, de certos tipos de litígios que iriam entulhá-la.
Demais disso, a celeridade e flexibilidade da via arbitral, em contraposição à rigidez e morosidade da Justiça Administrativa[12], apontariam no sentido do citado propósito de dar uma resposta adequada às pretensões dos cidadãos.
É, pois, sob essa perspectiva que julgamos ser possível contextualizar as novas disposições referentes à arbitragem trazidas pelo CPTA.
3. Notas sobre a arbitragem
A temática da arbitragem no âmbito do direito administrativo suscita muitas questões, cuja elucidação depende da compreensão que se tenha sobre o instituto em tela.
Por essa razão, antes de adentrarmos propriamente na arbitragem nas relações jurídico-administrativas, julgamos necessárias algumas notas sobre as feições gerais desta figura.
Em linha de princípio, cabe trazer a lume as principais características que a arbitragem assume no ordenamento Jurídico Português, a fim de fixar as bases sobre as quais algumas das posições aqui sustentadas irão se apoiar.
A arbitragem, como cediço, insere-se no domínio mais amplo dos meios alternativos[13] de solução de controvérsias, a par de outros institutos como a mediação, transação e a conciliação extrajudicial.
Embora a questão não seja pacífica, entendemos que a arbitragem tem natureza jurisdicional[14], resultando duma espécie de “delegação” de poder jurisdicional — monopolizado pelo Estado —, que este permite atribuir a árbitros, em atenção a vontade das partes de submeter a resolução de seus conflitos à decisão de terceiros, estranhos ao Poder Judiciário.
No caso de Portugal, sem embargo de outros argumentos perfilhados pela doutrina, pensamos assim devido à circunstância de os tribunais arbitrais constarem, ao lado dos demais tribunais, no Titulo V, Capítulo II, da Constituição da República Portuguesa[15], mais especificamente no nº 2 do art. 209. Ademais, é de se notar que: i) os tribunais arbitrais têm o poder de decidir sobre a sua própria competência (kompetenz-kompetenz) (art. 21º da LAV); ii) suas decisões fazem coisa julgado e possuem a mesma força executiva das decisões dos tribunais judiciais de 1ª instância (art. 26º da LAV); iii) o art. 25 da LAV é expresso ao qualificar de “jurisdicional” o poder exercido pelos árbitros.
Como assinalado acima, por entregar a terceiros a solução da lide trata-se de técnica heterocompositiva[16] de composição de litígios. O recurso à arbitragem, em regra, deriva da vontade das partes de submeter a terceiros a apreciação do litígio entre elas surgidas, nesse sentido, pode esta ser caracterizada como forma convencional[17] de resolução de controvérsias.
A arbitragem nasce da convenção de arbitragem, que poderá assumir duas formas (v. art. 1º, nº 2 da LAV): a) quando tiver por “objecto um determinado litígio actual, mesmo que já na pendência dum processo judicial”[18], assumirá a veste de compromisso arbitral; ou b) tratando-se de “litígios eventuais emergentes de determinada relação jurídica contratual ou extracontratual”[19], estar-se-á diante de uma cláusula compromissória.
Ademais, a arbitragem poderá ser: a) institucional, quando submetida a centros especializados já existentes, que contam com organização e estrutura voltadas para essa atividade (lista de árbitros, regulamento sobre a forma do processo etc.); e b) ad hoc, quando o tribunal arbitral for constituído especialmente para o julgamento litígio surgido entre as partes ou assim estiver previsto.
Nesse passo, impende salientar que a LAV impõe dois requisitos para que os litígios possam ser cometidos à resolução por via arbitral (art.1º, nº1). Deve-se cuidar de direitos disponíveis e inexistir lei que determine que o litígio deve se submeter a arbitragem necessária ou tribunal judicial.
Por fim, assevere-se que os tribunais arbitrais necessitam manter alguma relação com os tribunais judiciais, porquanto não possuam o poder de executar suas próprias decisões e de efetivar de providências cautelares, bem assim por poderem ver suas decisões submetidas ao controle daqueles — de forma e de fundo — pela via do recurso e da ação de anulação.
4. A arbitragem no quadro anterior à reforma de 2002/2004 do Contencioso Administrativo português
Nesse item, segue-se o panorama acerca da arbitragem no quadro anterior à reforma de 2002/2004 do Contencioso Administrativo português.
A história da arbitragem em questões relacionadas ao direito administrativo remonta às décadas de cinquenta e sessenta, quando o Supremo Tribunal Administrativo – STA proferiu diversas decisões nas quais admitia a validade de cláusulas compromissórias inseridas em contratos administrativos de concessão de serviço público[20].
O STA, nessas decisões, apontava no sentido de permitir que os litígios respeitantes a contratos administrativos fossem submetidos ao juízo arbitral, por entender que os artigos do Código de Processo Civil – CPC disciplinadores da questão continham “um princípio geral de direito cujo afastamento, no âmbito da jurisdição administrativa, não era imposto nem pela natureza administrativa dos contratos de concessão nem pelo facto de a competência para conhecer das questões emergentes de tais contratos ser confiada aos tribunais arbitrais[21]”.
Por seu turno, indagando-se sobre a possibilidade de submeter litígios administrativos à arbitragem, a melhor doutrina acabou por responder positivamente a tal questão quando se tratasse de matérias que estivessem no âmbito da disponibilidade das partes (Administração e particular).
Todavia, fora desta seara, isto é, quando estivessem em causa situações respeitantes ao contencioso de anulação, rejeitava-se a possibilidade de recurso à arbitragem, com fundamento na interpretação conjunta dos arts. 1510º do CPC[22], que somente considerava válido o compromisso quando os direitos estivessem na esfera de disponibilidade das partes, e 13º da Lei Orgânica do STA, donde se afirmava a natureza de ordem pública da competência contenciosa[23].
A legislação editada à época, com efeito, acabou consagrando a aludida orientação. Nesse sentido, o Decreto-Lei nº 48.871, de 19 de fevereiro de 1969, continha a previsão de que os conflitos referentes à validade, interpretação e execução dos contratos de empreitadas de obras públicas poderiam ser objeto de exame por parte de tribunais arbitrais (v. art. 217º). Nessa mesma linha, embora de forma não tão clara[24], o Decreto Regulamentar 54, de 24 de agosto de 1977, parecia autorizar que os litígios relativos à execução e ao descumprimento dos contratos administrativos de investimentos estrangeiros fossem submetidos à arbitragem.
Registre-se, assim, que até o ano de 1984, quando foi publicado o Estatuto dos Tribunais Administrativos – ETAF, não existia em Portugal previsão legal genérica que autorizasse o recurso à arbitragem nas relações jurídico-administrativas, mas apenas alguns diplomas esparsos nos quais se admitia que questões relativas à validade, interpretação e execução de contratos administrativos fossem submetidas a um tribunal arbitral[25]. Este, inclusive, era o entendimento da doutrina majoritária.
Nesse diapasão, com a entrada em vigor do ETAF, cujo art. 2º, nº 2[26], admitia o recurso à arbitragem no domínio do contencioso dos contratos administrativos, assistiu-se à legitimação, a nível legislativo, do entendimento já sustentado pela doutrina e jurisprudência, conforme acima exposto[27].
Noutra quadra, o dispositivo em tela trouxe uma inovação: passou a admitir que os litígios respeitantes à responsabilidade civil extracontratual, inclusive as ações de regresso daí advindas, fossem submetidos a um tribunal arbitral.
A partir do ETAF, portanto, passou a existir em Portugal cláusula geral de arbitrabilidade de litígios pertencentes à jurisdição administrativa, embora somente no que respeitasse àqueles relativos à contratos administrativos e à responsabilidade por atos de gestão pública (e respectivas ações de regresso).
Em 1986, com a entrada em vigor da Lei de Arbitragem Voluntária – LAV, a arbitragem na administração pública voltou a ser objeto de discussão.
O nº 1 do art. 1º desse diploma estabelecia os requisitos básicos exigidos para que determinado litígio fosse submetido à apreciação de árbitros[28]. Segundo esta norma, tratando-se de direitos disponíveis e não estando o litígio submetido exclusivamente a tribunal judicial ou arbitragem necessária, seria cabível a arbitragem.
Nesse compasso, após esclarecer, no nº 2 do art. 1º, as espécies de convenção arbitral e suas características, e ampliar, no nº 3 do citado artigo, para além das questões contenciosas o conceito de litígio, traz a LAV, no seu nº 4 do mesmo artigo, importante disposição no que se refere à matéria ora tratada, verbis: “Art. 1º (Convenção de arbitragem) (...) 4 — O Estado e outras pessoas colectivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, se para tanto forem autorizadas por lei especial ou se elas tiverem por objecto litígios respeitantes a relações de direito privado.”
Da leitura do artigo percebe-se que o Estado e demais pessoas coletivas de direito público, nas suas relações de direito privado, podem submeter-se ao juízo arbitral, autorização que decorre diretamente da LAV e independe de lei especial. Isto porque as relações de direito privado travadas por esses entes seriam apreciadas por tribunais judiciais, mediante aplicação das regras de processo civil comum, nas quais se incluiriam as normas sobre arbitragem constantes da LAV[29].
Noutra quadra, no que toca à interpretação da primeira parte da norma em foco, cabe dizer que a doutrina mais abalizada entende que o preceito do art. 1º, nº 4, quer, na verdade, delimitar o alcance da cláusula geral de arbitrabilidade constante do nº 1 do mesmo dispositivo.
Em termos porventura mais claros quer-se dizer que, tendo o nº 1 do artigo 1º enunciado uma cláusula genérica de arbitrabilidade destinada aos litígios referentes às relações de direito privado, a previsão do nº 4 do mesmo artigo vem asseverar que o disposto no nº 1 não se dirige aos entes públicos, uma vez que estes necessitam de autorização e regulação própria (lei especial) para submeterem seus litígios à arbitragem.
Precisa, a esse respeito, a lição de Servúlo Correia[30]: “Manifestamente, a função do nº 4 do artigo 1º da LAV (Lei nº 31/86, de 29 de Agosto) é a de tornar claro que a permissão geral de estipulação de convenções de arbitragem formulada no seu nº 1 (dentro dos limites aí fixados) se não alarga ao Estado e às outras pessoas colectivas de direito público. Mas, a par desta indicação, o citado nº 4 fornece outra não menos importante: a de que o propósito do legislador não é o de enunciar um princípio geralmente adverso ao recurso das pessoas públicas à arbitragem mas tão só o de remeter essa questão para outras sedes (leis especiais) onde as permissões poderão ser concedidas.”
No mesmo sentido Aroso de Almeida[31]: “No entanto, o sentido do artigo 1º, nº 4, da LAV parece ser tão-só o de delimitar o alcance das soluções consagradas no nº 1 do mesmo artigo, deixando claro que a cláusula geral de arbitrabilidade aí enunciada apenas tem em vista a arbitragem no âmbito das relações jurídicas de direito privado, pelo que não tem, só por si, o propósito nem o alcance de estender a regra da admissibilidade do recurso à arbitragem ao domínio das relações jurídico-administrativas. Ao direito administrativo cabe, por isso, determinar se a mesma regra vale para os litígios que envolvam entidades públicas e não digam respeito a relações de direito privado e, portanto, definir um regime próprio no que toca aos critérios de arbitrabilidade a adoptar no âmbito das relações jurídico-administrativas.”
Resulta, assim, que as relações jurídico-administrativas necessitam de autorização legal — que não pode ser buscada no nº 1 do art. 1º da LAV, mas em diplomas de direito administrativo, repise-se — para que possam submeter suas controvérsias ao juízo arbitral.
Essa autorização, com efeito, constava do art. 2º, nº 2, do ETAF, que admitia a arbitragem em relação aos litígios sobre contratos administrativos e responsabilidade civil por prejuízos decorrentes de atos de gestão pública e as respectivas ações de regresso.
Convém salientar que a referida disposição do ETAF, embora anterior a LAV, era considerada pela melhor doutrina[32] como lei especial no sentido do art. 1º/4 da LAV[33].
Neste ponto, cumpre fazer uma última referência ao art. 188º do CPA[34].
Ao estabelecer que seria válida a cláusula compromissória inserta em contratos administrativos para resolver as questões neste âmbito advindas, o art. 188º do CPA teria adquirido, relativamente a estas, a função de norma autorizadora da arbitragem — lei especial no sentido da LAV — em substituição à do art. 2º, nº 2, do ETAF.
Por outro lado, frise-se que a ausência de referência ao compromisso arbitral não quis significar que esta espécie de convenção de arbitragem tivesse ficado órfã de disciplina, pois o nº 2 do art. 2º do ETAF continuou a exercer o papel de norma habilitante (rectius: autorizadora) relativamente aos compromissos arbitrais nos contratos administrativos[35].
Da resenha feita acima, pode-se concluir que, antes da reforma do contencioso administrativo, admitia-se a arbitragem em matéria de responsabilidade civil da Administração por atos de gestão pública (e ações de regresso neste âmbito surgidas), bem como nas questões relacionadas à validade, interpretação e execução dos contratos administrativos.
Entendia-se que os litígios surgidos nesse âmbito estariam relacionados a direitos e obrigações disponíveis[36], uma vez que neste domínio, em regra, a Administração não exerceria poderes de autoridade, estabelecendo relações paritárias com o particular. Não se colocaria aqui, portanto, o obstáculo normalmente posto à arbitragem, qual seja, a indisponibilidade dos direitos em causa nos litígios relativos a relações jurídico-administrativas. Tais argumentos, contudo, serão analisados, de forma mais detida, adiante.
Nesse passo, cumpre chamar atenção para o fato de que, nestes domínios, a Administração nem sempre atua sem valer-se dos poderes de autoridade. Conforme se verá no item 5.3.2, é possível que a Administração, na execução de contratos administrativos, exerça tais poderes, caso em que estaremos diante de verdadeiro ato administrativo[37].
Por ora, registre-se apenas que, nessa seara, ou seja, quando se tratasse de ato administrativo destacável da execução do contrato administrativo, a doutrina rechaçava a possibilidade de submeter os litígios relativos à legalidade desses atos — como de resto a outros atos administrativos — ao juízo arbitral[38].
Quanto ao novo CPTA, apenas deve-se adiantar que mantêm a possibilidade das citadas matérias serem objeto de arbitragem, trazendo, contudo, algumas inovações que serão tratadas em tópicos específicos.