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O procedimento administrativo para apuração de faltas disciplinares no curso da execução penal em Santa Catarina

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No Estado de Santa Catarina, o procedimento administrativo disciplinar é regido pela Lei Complementar 529/11, que traz as minúcias a serem observadas desde o momento em que se verifica – em tese – a prática de uma falta disciplinar, até a sua completa apuração e aplicação das devidas sanções.

Resumo: No estudo da execução penal, o trabalho volta-se especificamente ao procedimento administrativo para a apuração de faltas disciplinares no sistema penitenciário de Santa Catarina. Para tanto, depois de feitas as indispensáveis introduções conceituais sobre o cumprimento das penas, discorre-se sobre as peculiaridades da competência legislativa dos entes federados em matéria disciplinar prisional, interpretando as mais importantes normas que tratam do assunto, sobretudo a lei federal geral sobre execução penal (LEP) e a legislação temática catarinense. Para que se possa compreender a realidade do sistema de apuração de faltas disciplinares, analisa-se também a incidência dos postulados constitucionais com as respectivas consequências práticas, sobretudo no que diz respeito à indispensabilidade da existência de uma defesa independente durante a apuração das faltas. Outrossim, depois de detalhado o híbrido sistema de apuração de faltas e aplicação de sanções (administrativo e judicial), são trazidos os paradigmas jurisprudenciais dominantes, não se descuidando das minúcias dos casos concretos subjacentes.

Palavras-chave: Execução penal. Apuração de falta disciplinar. Sanção disciplinar prisional. Procedimento administrativo-disciplinar prisional.

Sumário: Introdução. 1. Competência para legislar, princípios aplicáveis e sujeitos passivos. 1.1. Competência para legislar. 1.2. Princípios e direitos fundamentais. 1.3. Sujeitos Passivos. 2. O enunciado 533 da súmula do superior tribunal de justiça e o recurso especial repetitivo 1.378.557/RS. 2.1. O verbete 533 da Súmula do Tribunal da Cidadania 2.2. O recurso especial repetitivo 1.378.557/RS. 3. O procedimento administrativo para apuração de falta disciplinar em Santa Catarina. 3.1. A Lei Complementar estadual 529/11 3.2. A sequência de atos do procedimento administrativo. 3.3. Inconsistências 3.4. Sanções Administrativas. 4. A fase judicial 4.1. A homologação judicial do procedimento administrativo e as sanções aplicadas 4.2. A incursão no mérito administrativo 4.3. A proporcionalidade na aplicação das sanções e os parâmetros legais. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO

No Brasil, durante o período colonial (até 1822), não desfrutava a execução penal de tratamento muito relevante pelas normas vigentes (Ordenações do Reino), por uma questão fática muito simples: a aplicação das penas se dava de forma instantânea.

De fato, as reprimendas elegíveis à época eram em sua maioria de natureza corporal, não se exigindo um regramento específico aprofundado e minudenciado, bastava ‘matar’ o apenado, no caso da pena de morte, ou expulsá-lo, se lhe fosse imposto o banimento, etc. A prisão ocorria apenas de forma transitória, por curto espaço de tempo, para contenção do acusado até que se prolatasse a sentença e se lhe infligisse a pena.

A independência do Brasil e o advento da nossa primeira Constituição criaram o campo para a promulgação do Código Criminal do Império (1930). Este, ao inserir a prisão como uma das modalidades de sanção penal, fez com que a execução das penas ganhasse interesse no campo normativo, apesar das tímidas disposições que trazia[1].

Isto porque o Estado passou a ter o apenado sob sua custódia de forma protraída no tempo e, assim, teria que se disciplinar quais seriam os direitos e deveres do aprisionado, bem como condutas que lhe eram proibidas durante a execução da pena e as sanções correspondentes.

Desta forma, à medida que se inauguravam estabelecimentos específicos para o cumprimento da pena de prisão, sobretudo as Casas de Correções, iam se editando seus respectivos regulamentos, sendo estes a gênese da normatização da execução penal brasileira[2].

Com o Código Penal de 1890, a prisão se tornou a sanção principal do sistema punitivo brasileiro. Em decorrência disso, sucederam-se várias tentativas de se disciplinar a execução das penas, sendo digno de nota o Código Penitenciário da República (1933), que apesar de publicado no ‘Diário do Congresso’ de 25 de fevereiro de 1937, teve sua discussão obstada pelo advento do Estado Novo[3].

Em 1941, o Código de Processo Penal passou a disciplinar a Execução Penal, em seu Livro IV. Não obstante o avanço quanto à sua abrangência, por dispor sobre a execução das penas e das medidas de segurança, não continha disposições a respeito do procedimento disciplinar, focando-se muito mais no desenrolar do processo execucional judicial.

Digna de menção é a Lei 3274, de 02 de outubro de 1957, que passou a prever as Normas Gerais de Regime Penitenciário. Segundo Rodrigo Duque Estrada Roig, trouxe “significativas inovações para a regulamentação carcerária, contemplando preceitos até então carentes de positivação em âmbito penitenciário, como os princípios da legalidade e da individualização judicial e executiva da pena”.[4]

E continua o autor:

“O projeto também abarca a vedação do enclausuramento penitenciário sem a correspondente ordem legal da autoridade competente (art. 6º) ou em estabelecimento inadequado à execução da reprimenda imposta (art. 7º). Proíbe ainda a imposição de medidas privativas de liberdade por instâncias alheias ao Poder Judiciário (art. 9º)”.[5]

Entretanto, o salto evolutivo mais considerável se deu com a ainda vigente Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, ao impor a jurisdicionalização da execução penal, sendo que a partir de então o cumprimento das penas e medidas de segurança passou a ser preponderantemente conduzido pelo Estado-juiz. É o que se dessume do teor dos arts. 65 e 194 da Lei de Execuções Penais[6], bem como do item 10 de sua exposição de motivos[7].

Andrei Zenkner Schmidt vai além, defendendo que a jurisdicionalização da execução penal tem raiz constitucional:

“Uma primeira decorrência dessa Constituição Cidadã é o fato de o apenado não ser um objeto de execução, mas sim o sujeito de execução, portando direitos idênticos (salvo as exceções antes vistas) aos dos demais cidadãos. Assim, possui ele, por um lado, o direito de respeito à vida, à igualdade, à segurança, e à propriedade, e, por outro, o direito de exigir educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência (direitos fundamentais = direitos de liberdade + direitos sociais).

(...) Sendo correta, portanto, a visualização do preso como sujeito de direitos, creio que a natureza administrativa da execução penal não pode subsistir”[8].

Isso não quer significar, contudo, a deslegitimação da condução do procedimento disciplinar pela autoridade administrativa a que estiver subordinado o preso provisório ou definitivo, porquanto aquela, ao conduzir a apuração de falta disciplinar, terá sempre seus atos submetidos à apreciação do magistrado execucional.

Rodrigo Duque Roig Estrada comunga do mesmo entendimento:

“Pensar a execução como atividade administrativa significa dar margem à imposição do interesse estatal sobre o individual, pretensão esta inclinada à satisfação de pretensões retributivo-preventivas. Por outro lado, enxergar a execução penal como atividade de natureza jurisdicional significa em primeiro lugar assumir que não há prevalência do interesse estatal sobre o individual, mas polos distintos de interesse (Estado e indivíduo), cada qual refletindo suas próprias pretensões (retributivo-preventiva e libertária, respectivamente). Em segundo lugar, significa reconhecer que todos os atos executivos, mesmo aqueles administrativos de origem, sempre serão sindicáveis pela Jurisdição (ato de justiça formal e substancial, não de administração).

Não se pode olvidar ainda que as concepções administrativistas – ou mesmo as mistas –, desconsiderando a existência do conflito de interesses e de pretensões, acabam por incorporar em seus discursos elementos inquisitoriais refratários ao contraditório, ampla defesa, imparcialidade e devido processo legal. O mesmo não se verifica na concepção jurisdicional da execução penal, uma vez que a própria acepção de jurisdição demanda a existência de um contraditório entre as partes, o desempenho da ampla (e técnica) defesa e a emanação de um provimento imparcial e processualmente correto”.[9]

Até porque a própria Lei de Execuções Penais, em seus arts. 47 e 48, textualmente comanda que o poder disciplinar será exercido pela autoridade administrativa à qual está submetido o apenado.

Portanto, a atribuição da autoridade administrativa para apurar faltas disciplinares, além de decorrer da lei, contribui com a higidez da imparcialidade do juiz da execução penal, que se limitará a homologar ou não o procedimento administrativo já concluído, abstendo-se de capitanear a investigação de fatos, típica postura inquisitiva que não se coaduna com o papel do magistrado na execução das penas.

Enfim, cabe ainda salientar que, apesar dos inegáveis progressos trazidos pela Lei 7.210, esta deve sempre ser lida à luz dos preceitos constitucionais, não só por questão de hierarquia normativa, mas sobretudo porque quando editada a LEP, vigia lei fundamental de matizes não democráticas.


1 COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR, PRINCÍPIOS APLICÁVEIS E SUJEITOS PASSIVOS

Inicialmente, antes de adentrar no cerne da questão referente ao procedimento administrativo disciplinar propriamente dito, é indispensável tecer algumas elucidativas explicações a respeito da competência para legislar a respeito da matéria.

1.1 – Competência para legislar

A Constituição Brasileira, em seu art. 24, I, dispõe que é competência concorrente da União e dos Estados-membros legislar a respeito de direito penitenciário. A mesma qualidade de competência legislativa, repartida entre os citados entes federativos, recai sobre a regulamentação de procedimentos em matéria processual (art. 24, XI).

Em princípio, a competência legislativa do Estado fundada no dispositivo constitucional citado, segundo seu próprio § 2º, limita-se a suplementar as normas gerais que a União vier a editar.

Todavia, enquanto esta não exercer a competência que lhe foi atribuída, o Estado-membro tem autorização para disciplinar a matéria de forma plena (§ 3º), até que a União edite as normas gerias, o que suspenderá a legislação estadual que lhe for contrária (§ 4º).

Essa repartição vertical de competências entre Estados (e Distrito Federal) e União é abordada com maestria por Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco:

“Os Estados-membros e o Distrito Federal podem exercer, com relação às normas gerais, competência suplementar (art. 24, § 2º), o que significa preencher claros, suprir lacunas. Não há falar em preenchimento de lacuna, quando o que os Estados ou o Distrito Federal fazem é transgredir lei federal já existente. Na falta completa da lei com normas gerais, o Estado pode legislar amplamente, suprindo a inexistência do diploma federal. Se a União vier a editar a norma geral faltante, fica suspensa a eficácia da lei estadual, no que contrariar o alvitre federal. Opera-se, então, um bloqueio de competência, uma vez que o Estado não mais poderá legislar sobre normas gerais, como lhe era dado até ali. Caberá ao Estado, depois disso, minudenciar a legislação expedida pelo Congresso Nacional”[10].

Desta forma, conclui-se que é permitido aos Estados membros positivar o procedimento relativo ao processo administrativo disciplinar, desde que obedeça às regras gerais editadas pela União. Além disso, devem os estados se abster de invadir competência exclusiva desta, como é o caso da normatização acerca dos institutos de Direito Penal (art. 22, I, da Constituição).

Partindo de tal premissa, já decidiu o Supremo Tribunal Federal que o Estado-membro, ao prever prazo prescricional para apuração da falta disciplinar no âmbito da execução penal, extravasa a competência constitucional que lhe foi conferida, por abordar instituto de natureza penal:

“HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. INFRAÇÃO DISCIPLINAR. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. ART. 109 DO CP. COMPETÊCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. REGRESSÃO DE REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA. TRÂNSITO EM JULGADO. DESNECESSIDADE. 1. Inexistindo norma específica quanto à prescrição da infração disciplinar, aplica-se o disposto no artigo 109 do Código Penal, considerando-se o menor lapso temporal previsto, que é de dois anos. Precedente. 2. O Regime Penitenciário do Rio Grande do Sul não tem a virtude de regular a prescrição. Isso porque compete privativamente à União legislar sobre direito penal [artigo 22, I, da CB/88]. 3. A prática de fato definido como crime doloso, para fins de aplicação da sanção administrativa da regressão, não depende do trânsito em julgado da ação penal respectiva. Precedente. Ordem indeferida”.[11]

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Assim sendo, poderia o legislador estadual versar a respeito dos prazos para as práticas dos atos do procedimento administrativo, inclusive dispondo um limite razoável para conclusão do próprio procedimento, mas sem que isso refletisse no prazo para o Estado apurar a falta e impor sanções, refletindo, a inobservância de tais prazos, apenas em eventuais medidas disciplinares preventivas ou regressão cautelar de regime que estivesse vigorando.

Em virtude do mesmo raciocínio, estaria vedado à legislação estadual versar a respeito de sanções disciplinares não previstas em lei federal, por ostentarem nítido caráter penal.

1.2 – Princípios e Direitos Fundamentais

A aplicação prática dos princípios e direitos fundamentais na execução penal é tema que nem sempre é bem assimilado pelos operadores do Direito e pelos profissionais que, de algum modo, atuam na concretização das sanções penais pelo Estado.

Isso porque a disciplina da execução das penas costuma ser estudada de modo autônomo em relação ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal, gerando a falsa ideia de que se trata de setor completamente à parte, o que exigiria a relativização dos sagrados postulados protetivos conquistados ao longo da História.

Além disso, enquanto o processo penal de conhecimento desenvolve-se integralmente no âmbito jurisdicional, o processo de execução das penas possui um desenvolvimento misto, com algumas questões decididas pela autoridade judicial e outras pela autoridade administrativa.

Esse caráter misto da atividade executiva por vezes contribui para a falsa premissa de que os direitos fundamentais na execução penal devem ser fragilizados, sobretudo nas questões administrativas.

Porém, ainda que a execução penal tenha as suas especificidades, não há como compreendê-la de modo totalmente afastado do Direito Penal e do Direito Processual Penal. Assim, é inquestionável que devem ser observados os postulados gerais da ciência jurídica criminal. Em especial, deve-se sempre fazer incidir sobre a execução das penas as balizas dos direitos fundamentais de primeira geração, já que o regime jurídico da execução penal deve servir como limitador do poder punitivo do Estado.

Exatamente nesse sentido ensina NUCCI:

“[...] é impossível dissociar-se o Direito de Execução Penal do Direito Penal e do Processo Penal, pois o primeiro regula vários institutos de individualização da pena, úteis e utilizados pela execução penal, enquanto o segundo estabelece os princípios e as formas fundamentais de se regular o procedimento da execução. [...] O estudo da execução penal deve fazer-se sempre ligado aos princípios constitucionais penais e processuais penais, até porque, para realizar o direito punitivo do Estado, justifica-se, no Estado Democrático de Direito, um forte amparo dos direitos e garantias individuais. Não é viável a execução da pena dissociada da individualização, da humanidade, da legalidade, da anterioridade, da irretroatividade da lei prejudicial ao réu (princípios penais) e do devido processo legal, como todos os seus corolários (ampla defesa, contraditório, oficialidade, publicidade, dentre outros). ”[12]

Se a regra é a liberdade, certamente o direito de o Estado executar penas deve ser excepcional. E é sobre tal excepcionalidade que devemos nos debruçar ao estudar o regime jurídico da execução das penas, sempre à luz dos princípios e direitos fundamentais, ainda que tratamos de tema concernente às matérias administrativas relacionadas à execução das penas.

1.2.1 – Devido Processo Legal, Ampla Defesa e Contraditório:

A Constituição Federal é bastante enfática ao prescrever que ninguém será privado de liberdade sem o devido processo legal, bem como ao determinar que aos ligantes, tanto em processo judicial quanto em administrativo, são assegurados o contraditório e ampla defesa (artigo 5º, incisos LIV e LV).

Assim, não resta qualquer dúvida quanto à aplicação desses importantes postulados ao procedimento administrativo para apuração de faltas disciplinares no âmbito da execução penal.

Já que decorre diretamente do próprio texto constitucional a aplicação das aludidas garantias ao processo administrativo, com mais razão ainda elas serão aplicadas quando o processo administrativo envolver frontalmente o direito à liberdade, que é justamente o que ocorre no caso das faltas disciplinares praticadas durante o cumprimento da pena.

Uma implicação prática bastante relevante dos aludidos princípios no procedimento de apuração de falta disciplinar prisional diz respeito à necessidade de participação de advogado contratado pela pessoa presa ou Defensor Público.

Já é bastante sedimentada a ideia de que a ampla defesa compreende tanto a autodefesa – direito de presença, de audiência e de postulação da pessoa presa – quanto a defesa técnica.

De tal modo, o apenado ou preso provisório que é acusado de uma falta disciplinar no cumprimento de sua pena possui o direito de, ele próprio, manifestar-se sobre os fatos, de estar presente quando da oitiva de testemunhas, de postular o que entender de direito, bem como de ser defendido tecnicamente por um profissional da área jurídica.

Esse exercício da defesa, embora pareça evidente, gerou alguma controvérsia quando o Supremo Tribunal Federal editou o enunciado número 5 de sua Súmula Vinculante, que assim dispõe: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.

Quando o verbete foi publicado, alguns juristas passaram a sustentar que o procedimento administrativo disciplinar para apuração de faltas no sistema prisional prescindiria da presença da defesa técnica.

Todavia, o próprio Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Reclamação 9164[13] esclareceu que aplicabilidade da súmula se direciona aos procedimentos disciplinares de cunho cível, cujos desdobramentos não repercutirão na esfera do direito de liberdade do indivíduo.

O Superior Tribunal de Justiça, na mesma linha, firmou orientação no sentido de que a presença de advogado contratado pela pessoa presa ou Defensor Público no procedimento administrativo disciplinar prisional segue sendo indispensável, já que em razão da especial vulnerabilidade do apenado ou preso provisório, é certo que o teor do enunciado cinco da Súmula Vinculante do STF não se refere a esse tema[14].

Portanto, em casos de apuração de falta disciplinar prisional a defesa técnica permanece imprescindível, é direito irrenunciável.

Só que a contenda ainda vai além. Embora atualmente seja inconteste a necessidade da presença da defesa técnica, surge a necessidade de avaliarmos a temática da independência do profissional jurídico que elabora a defesa técnica nos estabelecimentos prisionais.

Isso porque, não raras vezes, o próprio estabelecimento prisional possui agentes penitenciários formados em Direito e com registro da Ordem dos Advogados, aos quais é dada a atribuição para fazer a defesa dos apenados nos incidentes disciplinares, ou então tem, em seu quadro administrativo, advogados contratados para exercício de atividades de cunho jurídico que também acabam por realizar a defesa nos procedimentos administrativos de apuração de faltas disciplinares.

O que se questiona é se esses profissionais, ainda que detentores de suficiente conhecimento jurídico, teriam a independência necessária para fazer a defesa dos presos mesmo em situações em que, para tanto, teriam que se voltar contra forças do próprio estabelecimento prisional.

Parece-nos temerário que a defesa do apenado seja feita por um agente do próprio quadro de servidores e trabalhadores do estabelecimento prisional, já que a defesa, nesses casos, não seria necessariamente livre, pois o profissional jurídico, muitas vezes, em sua atuação, poderia ter que agir em oposição aos Administradores do sistema prisional, o que, para dizer o menos, causaria constrangimentos.

Até porque, como se verá adiante, em Santa Catarina, a decisão final do procedimento cabe ao gestor da unidade prisional – seja Diretor de Penitenciária ou Gerente de Presídio, UPA, Cadeia Pública, Centro de Triagem, etc. –, o qual também é a autoridade hierarquicamente superior a qualquer servidor – estatutário ou contratado – do respectivo estabelecimento que venha a desempenhar a defesa do incidentado.

Nesse viés, já decidiu o Tribunal da Cidadania, em habeas corpus impetrado em face de decisão considerada ilegal emanada da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:

“Dessa forma, verifica-se que a Gerência de Execuções Penais é órgão ligado à Secretaria de Segurança Pública e Defesa do Cidadão, de maneira que, o procedimento instaurado para apuração da falta disciplinar transcorreu a despeito da não participação da defesa técnica.

Portanto, não pode o Gerente de Revisões Criminais exercer o papel outorgado à defesa técnica do apenado, pois integrante da administração prisional do Estado”[15]

Assim sendo, entende-se importante que a defesa das pessoas presas nos processos administrativos disciplinares seja feita por advogados por estas contratadas e, para aquelas que não possuem condições de contratar causídico particular, que seja feita por Defensores Públicos.

Se não existir defesa técnica no procedimento administrativo disciplinar prisional ou se a defesa por feita por um membro dos próprios quadros do sistema penitenciário, compreendemos que o procedimento estará maculado de forma absoluta, por fragilização à ampla defesa e ao contraditório.

1.2.2 Legalidade, Tipicidade e Anterioridade

Se fosse possível estabelecer uma ordem de grandeza entre os princípios e direitos fundamentais, certamente a legalidade estaria em posição de destaque. O princípio da legalidade é o baluarte do Estado de Direito. No Direito Penal tal postulado possui tamanha força que, já não bastasse a previsão constitucional no rol do artigo 5º, ainda se encontra presente no artigo inaugural do Código Penal[16].

Em matéria de execução de penas a realidade é a mesma: o princípio da legalidade deve imperar.

Quando se trata das faltas disciplinares durante o cumprimento da pena, tema deste texto, a legalidade também está especialmente presente, positivada no art. 45 da Lei Extravagante Execucional: “Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar”.

Pela mesma razão que os tipos penais que descrevem condutas criminosas, os dispositivos legais que descrevem faltas administrativas no âmbito da execução penal também se sujeitam à necessidade de observância da tipicidade estrita.

Quando à pessoa presa é imputada a prática de uma infração disciplinar, ela poderá ser punida com sanções, por exemplo, de isolamento ou de suspensão ou restrição de direitos. Além disso, eventual(is) punição(ões) certamente influenciará(ão) de modo negativo a concessão de direitos no curso da execução da pena, como a progressão de regime, a autorização de saídas temporárias, o deferimento do livramento condicional, dentre outros.

Logo, diante das severas restrições que tais punições administrativas podem causar às liberdades do cidadão aprisionado, é certo que a exigência da tipicidade estrita precisa se fazer presente. Para a pessoa presa ser punida por uma infração disciplinar prisional, o fato praticado precisa, antes de tudo, amoldar-se perfeitamente a uma norma anterior que preveja a conduta como infração.

Embora essa ideia possa parecer simples e já sedimentada, há situações práticas em que a premissa da tipicidade estrita em matéria de infração disciplinar parece não ser bem observada.

A título de ilustração, pode-se citar a falta disciplinar prevista no artigo 50, inciso II da Lei de Execuções Penais. Prevê o citado dispositivo que comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que fugir.

Quando o cidadão que está preso realmente foge do estabelecimento prisional, cavando túneis, pulando os muros durante o período de banhos de sol, disfarçando-se de outras pessoas, agredindo agentes prisionais ou agindo de qualquer outro modo violento ou sorrateiro, parece não haver dúvida de que ele “fugiu” e, assim sendo, estará sujeito às sanções disciplinares correspondentes, que serão aplicadas quando ele for recapturado (evidentemente, durante o prazo da prescrição executória).

Entretanto, é matéria bastante consolidada na jurisprudência que o condenado que não retorna de uma saída temporária incorre da falta disciplinar de “fugir”. Então, pergunta-se: Não retornar ao estabelecimento prisional, depois de gozar de uma saída lícita, é o mesmo que fugir de dentro do estabelecimento? Parece-nos que, sob as lentes da estrita tipicidade, não é exatamente o mesmo.

Ressalta-se que não se está aqui afirmando que deixar de retornar ao ergástulo depois de usufruir de uma saída temporária é uma conduta adequada e lícita. Porém, ainda que a conduta possa ser inadequada e reveladora de uma falta de responsabilidade por parte do reeducando, o certo é que essa conduta não se amolda ao tipo disciplinar “fugir”.

Assim sendo, viola o princípio da legalidade (ou da tipicidade) imputar ao apenado a conduta de “fugir”, quando o que ele fez, na verdade, foi “não retornar”.

É claro que isso não impede que o acusado venha a ser punido por outra falta, média ou leve, desde que exista lei que preveja a conduta de não retornar da saída temporária como uma falta disciplinar.

Lado outro, assim como os preceitos primários de faltas disciplinares precisam ser taxativamente previstos em lei anterior ao fato praticado, as sanções correspondentes também o devem. É vedado, assim, à autoridade administrativa detentora do poder disciplinar aplicar sanções não previstas em lei, ou mesmo com excesso das que são legalmente previstas.

Observa-se, pois, que o postulado da legalidade estrita é tema bastante presente quando se trata das faltas disciplinares, motivo pelo qual não pode passar ao largo do debate.

1.2.3 Da individualização da pena

O princípio da individualização da pena também encontra amparo na Constituição Federal, através do artigo 5º, XLVI, e também por decorrência da própria premissa de proporcionalidade, que inspira toda a interpretação constitucional.

Ademais, o fundamento da dignidade humana também requer que cada indivíduo receba um tratamento de acordo com as singularidades subjetivas e objetivas do seu caso, o que também traduz a individualização da pena e o repúdio ao indesejado ‘Direito Penal do Autor’.

Não é demasiado lembrar que tal princípio tem aplicação ampla, devendo ser observado tanto na fase legislativa, quanto nas fases judicial e executória da pena.

Na fase executória, exige-se que o cumprimento da sanção seja imposto pelo Estado reconhecendo as desigualdades entre os apenados, tratando cada um de acordo com os seus méritos e deméritos.

Logo, o preceito da individualização deve ser observado quando se trata da aplicação de sanções por faltas disciplinares praticadas pelos reeducandos.

Portanto, tanto o Administrador Prisional quanto o Juiz da Execução Penal, quando decidem por aplicar às pessoas presas as sanções, de suas respectivas competências, em decorrência da prática de faltas disciplinares, devem estar atentos à necessidade de individualização.

Por oportuno, um aspecto concreto da importância do primado da individualização no âmbito da aplicação de sanções aos apenados envolve a questão da perda dos dias remidos.

Sabe-se que o artigo 127 da Lei de Execuções Penais, com a redação trazida pela Lei 12.433/11, autoriza o juízo da execução penal, em caso de prática de falta grave, a decretar a perda de até 1/3 (um terço) dos dias remidos pelo apenado.

Observa-se, pois, que a lei traz o limite máximo de perda de dias remidos (um terço). Entretanto, não deve o juiz aplicar a fração de um terço indistintamente a todos os reeducandos que praticam faltas graves.

Ao contrário, deve o magistrado dar concretude ao princípio da individualização para fazer a dosagem da perda dos dias remidos de acordo com as circunstâncias objetivas e subjetivas do caso posto a julgamento.

O legislador, atento à importância da realização da individualização da sanção, estabeleceu no artigo 57 da LEP balizas a serem seguidas pelo julgador na aplicação das sanções disciplinares: natureza, motivo, circunstâncias, consequências do fato, pessoa do faltoso, tempo de prisão.

Por conseguinte, quando são aplicadas sanções padronizadas aos apenados que cometem faltas, estar-se-á violando a lei e a Constituição. Nesse sentido vem se posicionamento a doutrina majoritária[17], assim como a jurisprudência[18].

1.2.4 Da razoável duração do processo

A Emenda Constitucional nº 45/2004 fez incluir no rol dos direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Carta Magna o direito à razoável duração do processo e aos meios que garantam a celeridade. Vale enfatizar que a Constituição Federal é expressa ao prever esse direito tanto no que se refere ao âmbito judicial, quanto ao administrativo.

Sobre esse novo direito fundamental, importante é o ensinamento de ARRUDA:

“Passados mais de 20 anos da promulgação da Constituição Federal, dezenas de emendas promoveram acréscimos, supressões ou modificações no texto constitucional, sendo que apenas uma delas recaiu sobre o corpo desde art. 5º da Lei Magna [...]. De toda forma, é inegável que o direito fundamental aí acrescentado [...] é de ser reputado de especialíssima relevância. Segundo compreendemos, há uma razão lógica bem evidente a determinar essa inserção, que para nós corresponde a uma evolução natural. É que, como documento consagrador da plena restauração democrática, a Constituição de 1988 ocupou-se especialmente de garantir o amplo acesso à justiça. [...]. Assim, naquele primeiro momento de consolidação do Estado democrático, era natural fosse priorizada uma perspectiva quantitativa da cláusula de acesso à justiça [...] Embora seja possível afirmar que o postulado do devido processo leal prescreve e contenha algumas das garantias materiais que podem ser relacionadas à perspectiva qualitativa da prestação jurisdicional, cremos que esse viés não havia sido suficientemente contemplado pelo constituinte originário. [...] Parece-nos em evidente, portanto, que a inclusão do inciso LXXVIII neste artigo 5º marca a consolidação de uma nova etapa: uma fase em que o constituinte, já havendo assegurado o acesso à justiça, preocupa-se em garantir a qualidade do cumprimento da missão estatal [...]. O constituinte deu ao direito fundamental uma louvável amplitude. Não o restringiu à esfera criminal e nem mesmo limitou-se aos processos judiciais. Quis garantir a razoável duração dos processos nos planos ‘judicial e administrativo’[...] A referência do constituinte foi sobremaneira relevante para garantir a aplicação do direito fundamental no curso do inquérito policial, procedimento que tem se caracterizado por uma morosidade excessiva e que, por sua natureza, vulnera as mais basilares prerrogativas do investigado”.[19]

No que toca especificamente à apuração de faltas disciplinares no sistema prisional e à aplicação das respectivas sanções, a necessidade de se observar a razoável duração do processo também se faz presente.

De partida, porque o ordenamento jurídico não admite a imprescritibilidade das imputações, ressalvadas as exceções já trazidas pelo próprio Constituinte (racismo e ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático – art. 5º, XLII e XLIV). Assim, é certo que a apuração de faltas prisionais não pode se eternizar. Até porque, com o passar do tempo, a sanção passa a não mais fazer sentido, pois o aprisionado pode já ter renovado a sua postura, porque se passa a ter uma dificuldade probatória maior, dentre tantos outros fundamentos.

Contudo, embora não se tenha dúvida quanto à prescritibilidade das imputações de faltas disciplinares, a LEP silencia quanto ao efetivo prazo da prescrição.

Assim, era forte na doutrina o entendimento de que a apuração da falta grave prescrevia no prazo de dois anos, já que era esse o prazo mínimo de prescrição de crimes previsto no Código Penal.

Mas com o advento da Lei 12.234/2010, o prazo mínimo de prescrição, para as faltas disciplinares praticadas após sua publicação, passou a ser de três anos, o que fez crescer o entendimento de que a aplicação do prazo de prescrição de crimes para as faltas disciplinares era tempo por demais elástico, sobretudo ao se considerar a extrema dinâmica da execução penal, com vários direitos a serem concedidos aos apenados que levam em conta a existência ou não de faltas em seus registros prisionais.

Com isso, ganha força o entendimento de que o prazo prescricional no caso de faltas disciplinares deveria ser o de 12 (doze) meses, utilizando-se como paradigma os Decretos Presidenciais de Indulto e Comutação de penas que são anualmente publicados pela Presidência da República.

De fato, tais atos presidenciais de clemência soberana utilizam a existência de faltas graves para impedir a concessão de indultos e comutações pelo prazo de 12 (doze meses). Logo, esse seria um prazo razoável para que eventual sanção do Estado pela falta praticada ainda exerça algum sentido. Inclusive já é possível encontrar julgados que acolhem o mencionado entendimento, a exemplo da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais[20].

1.2.5 Da culpabilidade, da presunção de inocência e do direito ao silêncio

A responsabilidade penal só tem lugar diante de um comportamento típico, antijurídico e culpável.

No terreno da execução das penas, a culpabilidade como pressuposto da responsabilidade disciplinar vem explícita na Lei de Execuções Penais quando ela veda a sanção coletiva (art. 45, § 3º).

Exige-se, assim, para que se possa aventar a aplicação de alguma sanção disciplinar, um agir ou uma omissão prevista em lei e imbuída de dolo ou culpa, bem como que se constate que não estava o agente respaldado por excludentes de antijuridicidade (legítima defesa, p. ex.) ou sob coação moral irresistível ou que estivesse com perturbação mental ou psíquica a ponto de eliminar a consciência quanto ao comportamento ilícito.

Intimamente relacionado ao princípio da culpabilidade está o da presunção de inocência, positivado no art. 5º, LVII, da Constituição da República.

O postulado tem duas implicações imediatas: não pode o apenado ser considerado culpado até a decisão definitiva reconhecedora da prática do ilícito (regra de tratamento) e, além disso, o ônus de demonstrar a existência dos fatos e a culpabilidade do agente recai sobre o órgão acusatório (regra probatória)[21].

Na seara execucional, a presunção de inocência implica em dizer que a pessoa presa só pode ser considerada a efetiva autora da falta disciplinar que lhe é imputada se a Administração Prisional (especificamente o Conselho Disciplinar) se desincumbir do ônus de provar, de forma plena, sua culpa, sendo que, até a decisão definitiva reconhecedora da culpa, deve ser tratado como inocente.

Aliás, reforçando a premissa acima exposta, cita-se o art. 64 da LC estadual 529/11, ao dispor que “não haverá pena disciplinar em razão de dúvidas ou suspeitas”.

Nesse ponto, oportuna é a lição de Alexis Couto de Brito:

“Durante a execução da pena o condenado poderá ser acusado de atos – penais ou administrativos – que implicarão consequências diretas em seu regime de cumprimento ou benefícios como saídas temporárias, remição etc. É certo que, mesmo após sua condenação por um crime anterior, sua conduta posterior deve ser analisada caso a caso, e o estado de inocência deve acompanha-lo, para que antes da revogação ou destituição de algum direito, possa provar sua inocência”.[22]

Enfim, inter-relacionado com a presunção de inocência está o princípio constitucional implícito da vedação de autoincriminação (‘nemo tenetur se detegere’), que está expressamente prevista no art. 8, item I, ‘g’ da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1989, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 678, de 6 de novembro de 1992.

Uma de suas exteriorizações mais agudas o direito ao silêncio este explicitado no art. 5º, LXIII, da Constituição da República –, sem que a referida inércia possa ser interpretada em seu desfavor.

1.2.6 Da lesividade

O princípio da lesividade é verdadeiro limitador do jus puniendi na medida em que proíbe o sancionamento de condutas que não tenham resultado em efetiva lesão a bens jurídicos protegidos pela norma (disciplinar) penal.

Para Rodrigo Duque Roig Estrada:

“Segundo o princípio da lesividade (comumente denominado princípio da ofensividade), somente pode ser considerada punível a conduta exteriorizada e capaz de lesionar ou ameaçar concretamente determinado valor ou direito, e não aquele comportamento simplesmente pecaminoso ou imoral.

(...) Em sua essência, o princípio da lesividade afasta, por exemplo, a constitucionalidade dos tipos penais de perigo abstrato (aqueles em que não há ameaça concreta a determinado direito ou valor, sendo presumido o perigo) e os tipos criminológicos de autor (aqueles que preveem como puníveis determinados estados ou condições pessoais do acusado).”[23]

Desta forma, como exemplo, tem-se que a tentativa de fuga que não tenha se dado mediante violência ou grave ameaça, que não tenha repercutido no transtorno da ordem prisional e nem acarretado danos à estrutura da unidade prisional ou a bens do Estado ou de terceiros não deveria sequer ensejar sanção disciplinar, em razão da absoluta falta de lesão a qualquer bem jurídico protegido pelo ordenamento. Quando muito, autorizaria aplicação de sanções menos gravosas, como a advertência.

1.2.7 Da dignidade da pessoa humana, da vulnerabilidade do preso e da menor onerosidade da execução penal

Irrefutável também é a aplicação do princípio da dignidade humana no Direito de Execução Penal, onde é conhecido também como ‘princípio da humanidade das penas’. Para além de um imperativo normativo, de índole constitucional, não se pode olvidar que, recentemente, no Recurso Extraordinário 592581, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o ‘estado inconstitucional de coisas’ em que se encontra o sistema carcerário brasileiro:

“o Estado os está sujeitando a uma pena que ultrapassa a mera privação da liberdade prevista na sentença, porquanto acresce a ela um sofrimento físico, psicológico e moral, o qual, além de atentar contra toda a noção que se possa ter de respeito à dignidade humana, retira da sanção qualquer potencial de ressocialização.

O tratamento dispensado aos detentos no sistema prisional brasileiro, com toda a certeza, rompe com um dogma universal segundo o qual eles conservam todos os direitos não afetados pelo cerceamento de sua liberdade de ir e vir, garantia, de resto, expressa, com todas as letras, no art. 3º de nossa Lei de Execução Penal”.[24]

Diante do caótico cenário do sistema prisional, maior é o apelo pela observância do princípio da dignidade humana, para que os apenados efetivamente só tenham restritos seus direitos políticos e de liberdade de locomoção, e não todos os outros direitos que lhe são assegurados constitucionalmente mas que, no cotidiano do cumprimento da pena, são recorrentemente vilipendiados.

Nesse viés, Rodrigo Duque Estrada Roig o concebe como a base de uma política criminal redutora de danos:

“O princípio da humanidade constitui, enfim, o cerne de uma visão moderna e democrática da execução penal, pautada pela precedência e ascendência substanciais do ser humano sobre o Estado e pena necessidade de reduzir ao máximo a intensidade da afetação individual. Possui, portanto, o escopo maior de capitanear a construção de uma política criminal redutora de danos, considerando – na esteira do que leciona Pavarini –, que a contradição entre cárcere e democracia não pode ser resolvida, mas apenas contida, por meio de uma política humanizante”[25]

Desta forma, há que se reduzir ao máximo os danos da execução penal, tornando-a menos onerosa possível ao apenado, também como consectário do princípio da humanização da pena.

Com efeito, se há, no campo da execução civil, o princípio da menor onerosidade, por se reconhecer uma situação peculiarmente inferior do devedor no jogo processual, maior razão há em se aplicar referido princípio na seara da execução penal, notadamente em razão da inegável situação de vulnerabilidade da pessoa presa e da gravidade do nível de restrição que as sanções disciplinares acarretam[26].

1.2.8 Duplo grau

A garantia do duplo grau é princípio constitucional implícito, e sua previsão decorre de uma condição natural do ser humano, que é a irresignação, aliada à reconhecida falibilidade do julgador, também humano[27].

Em se tratando de mandamento constitucional nuclear que se irradia a todos os ramos do direito, não se pode negar sua aplicação também ao procedimento administrativo que se destina a apurar e classificar faltas disciplinares.

Ainda mais porque, no regimento penitenciário federal, como se verá linhas a frente, há previsão expressa de recurso no procedimento administrativo para apuração de falta disciplinar e, assim, não há porque se negar o mesmo direito às pessoas recolhidas em estabelecimentos prisionais estaduais, sob pena de se infringir o princípio da igualdade.

Ademais, se é garantido, no procedimento administrativo disciplinar de cunho civil o duplo grau (Lei 9.784/99), maior razão há para se assegurar o direito ao recurso às pessoas que são sujeitos passivos de procedimento administrativo disciplinar de cunho penal, já que este deve prever maiores garantias aos administrados.

1.2.9 Motivação

A motivação é uma decorrência lógica do próprio princípio da ampla defesa, pois só se faz possível ao prejudicado questionar uma decisão por meio da demonstração do equívoco ou irrazoabilidade de suas premissas. Assim, as premissas que levam à conclusão da decisão devem estar nela expostas.

Nesse ponto, não se olvida que a Lei 9.784/99, que tem aplicação supletiva em se tratando de matéria administrativa, prevê expressamente o dever de motivação da Administração Pública:

Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Ora, se as decisões exaradas em procedimentos administrativos de caráter civil têm na motivação um pressuposto, com maior razão as decisões no procedimento administrativo para apuração de faltas disciplinares no curso do cumprimento da pena devem ser adequadamente motivadas, pois neste campo que as garantias constitucionais têm maior espectro de abrangência e profundidade de aplicação.

Aury Lopes Júnior ressalta a máxima aplicação do dever de motivar na seara da execução penal:

“Sua principal função é a de permitir o controle da racionalidade, pois só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou sobre o poder.

(...) Tais regras básicas de um modelo garantista devem ser aplicadas na sua totalidade no processo de execução, inclusive na apuração de faltas disciplinares, pois muitas vezes a sanção é tão ou mais grave que aquela atribuída pela lei penal a condutas delituosas”[28]

Portanto, é de se deixar claro que a simples exposição do raciocínio que levou à conclusão da decisão não basta para a escorreita obediência ao dever de motivação, e por conseguinte, ao princípio da ampla defesa.

Destarte, é absolutamente indispensável que o julgador explicite o motivo pelo qual não acolheu cada uma das teses defensivas, até para fins de se propiciar a interposição de recursos.

1.3 – Sujeitos Passivos

Não há qualquer dúvida a respeito do fato de que o procedimento de apuração de faltas disciplinares tem como potencial sujeito passivo a pessoa condenada, que cumpre sanção penal.

De fato, fala-se, a todo tempo, da aplicação de sanções administrativas pela prática de faltas disciplinares pelo apenado, tenha o título condenatório definitividade (quando há execução definitiva) ou mesmo em se tratando de condenação com recurso pendente de julgamento (ocorrência de execução provisória da pena).

A situação que pode provocar algum questionamento ocorre quando uma pessoa presa a título provisório, que aguarda julgamento, contra o qual que não tem nenhuma sentença de mérito.[29]

Todavia, parece-nos irrefutável que também a eventual prática de falta disciplinar pela pessoa presa a título provisório deve se submeter ao procedimento administrativo disciplinar, com posterior homologação judicial.

De partida, porque não se pode aventar a aplicação de qualquer sanção, sobretudo na seara (da execução) penal, que não no bojo de procedimento administrativo em que se observe a ampla defesa e o contraditório.

Serve, assim, o procedimento administrativo disciplinar – o PAD –, antes de tudo, a dar legitimidade à aplicação das sanções administrativas decorrentes do exercício do poder disciplinar pelo gestor da unidade prisional (advertência, repreensão, suspensão de direitos e recolhimento cubicular).

Desta forma, em se vislumbrando a aplicação de qualquer sanção disciplinar à pessoa presa ‘provisória’, o que só se admite quando da constatação da prática de alguma falta disciplinar, há que se lançar mão do devido processo legal, apurando-se a conduta em procedimento administrativo disciplinar.

Mormente porque o ‘devido processo legal’ é direito do indivíduo, sendo que a pessoa presa mantém todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (art. 3º da Lei 7.210/84).

Ademais, a Lei de Execuções Penais aplica-se igualmente ao preso provisório e ao condenado (art. 2º, parágrafo único), e se aquele tem garantida a realização de procedimento administrativo disciplinar, este também o tem.

Ora, pensar contrariamente, sustentando a inviabilidade de adoção de procedimento administrativo para apuração de faltas disciplinares praticadas por presos provisórios significaria, em verdade, concluir que este é imune à aplicação de qualquer sanção, pois, repita-se, nenhuma sanção de natureza (disciplinar) penal pode ser infligida fora do procedimento legal.

Por conseguinte, todas as questões que aqui abordaremos dizem respeito tanto aos presos condenados como aqueles a título provisório, residindo a única diferença na questão do momento da aplicação das sanções judiciais, já que só se poderá falar em aplicação de ‘regressão de regime’, ‘perda de dias remidos’, etc., aos presos provisórios que em algum momento vierem a ser condenados, e mesmo assim dentro do prazo prescricional que tem o estado para apurar e julgar as faltas disciplinares.  

Sobre os autores
Renê Beckmann Johann Júnior

Defensor Público do Estado de Santa Catarina. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas/RS (UFPel). Pós-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio de Jesus

Caroline Kohler Teixeira

Defensora Pública do Estado de Santa Catarina. Especialista em Direito Público pelo Instituto de Ensino Luis Flávio Gomes (LFG) e pela Escola Superior da Magistratura Federal do Estado de Santa Catarina (ESMAFESC). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro Titular do Conselho da Comunidade de Florianópolis/SC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JÚNIOR, Renê Beckmann Johann; TEIXEIRA, Caroline Kohler. O procedimento administrativo para apuração de faltas disciplinares no curso da execução penal em Santa Catarina. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4733, 16 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49668. Acesso em: 22 dez. 2024.

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