3. POLÊMICAS SOBRE O TEMA
Com a expansão e popularização da internet surge, com maior força na última década, a multiplicação de adesões às chamadas “redes sociais”. Com o advento das redes sociais, a opinião de milhões de usuários, antes restritas ao seu núcleo familiar, de amizades ou até mesmo as suas próprias mentes, ganhou reverberação gigantesca. A despeito das enormes qualidades e comodidades dessas ferramentas, temos um lado obscuro onde o preconceito, a intolerância e, às vezes, a própria ignorância reina e causa severos danos à população em geral.
Vem sendo, infelizmente, o caso do benefício em estudo. É comum o surgimento de informações repletas de inverdades e eivadas de erros que pretendem desencadear mais opiniões errôneas por onde passam. Na rede mundial de computadores, muitos usuários, quando veem alguma situação com a qual não concordam, especialmente quando se trata de políticas públicas que se dirigem a grupos mais desfavorecidos da sociedade, emitem opiniões esdruxulas que, infelizmente, ganham eco e acabam se tornando “verdades” para os incautos.
Diz o senso comum que o absurdo está no fato de que “o preso ganha mais do que o trabalhador honesto”. Geralmente, a fala nas redes sociais vem seguida de uma imagem que mostra em letras garrafais: salário mínimo = X, auxílio reclusão = um valor mais alto do que o salário mínimo – e que, normalmente, não chega perto do que é mostrado pelos dados oficiais do Ministério da Previdência Social.
Além de preconceituosas, tais mensagens são eivadas de erros grotescos e demonstram total desconhecimento da norma previdenciária. Seja pelos reais destinatários da proteção previdenciária, ou seja, os dependentes do recluso e não o próprio preso, seja pela inverdade quanto aos valores pagos que, conforme visto alhures, são rateados entre a quantidade de membros do grupo familiar e obedecem a um teto remuneratório estipulado em lei e regulamentado pelos órgãos responsáveis.
Outra falácia consta em quem diga, também, que: “vale mais a pena ir preso do que trabalhar de 8h às 18h”. Mais uma vez, a fala é baseada em todas as falsas ideias que se têm acerca do auxílio reclusão e mostra, claramente, a absoluta falta de noção sobre o sistema prisional brasileiro, notório por fracassar na tentativa de ressocialização dos detentos.
De início, temos que desmistificar o pensamento popular sobre a abrangência da cobertura previdenciária sobre o auxílio-reclusão de formas a perceber que ele é concedido à família daquele detento que, ao ser preso, detinha a condição de segurado da Previdência Social e se enquadra na definição legal da hipossuficiência financeira familiar. Tendo como premissa esse fato, é de fácil dedução que o benefício é concedido à menor parcela das famílias de presos. Tratando-se, em verdade, de um dos benefícios menos solicitados e, por consequência, menos concedidos pela Previdência Social.
Também facilmente derrotada a tese de que o Estado atende a família do criminoso, via auxílio-reclusão, mas não atende a família da vítima do mesmo crime. Transportando para a esfera factual, se um sujeito ficar impossibilitado para o trabalho em razão de um tiro, por exemplo, ele obterá benefício previdenciário, caso esteja, na data do fato, contribuindo com a Previdência. Da mesma forma, a família de um sujeito vítima de homicídio que estiver mantendo sua qualidade de segurado, receberá pensão por morte. Trata-se, por isso, da cobertura de outro risco social advindo do mesmo fato.
Para maior esclarecimento, cumpre atentar para a diferenciação entre “preso trabalhador” e o “trabalhador preso”, conforme veremos a seguir.
3.1. PRESO TRABALHADOR
Trata-se, notoriamente, de recluso que exerce alguma espécie de atividade lícita remunerada enquanto do cumprimento da pena privativa de liberdade a qual foi imposta pela autoridade judicial competente.
Por tratar-se de fenômeno adstrito ao cumprimento da pena, a legislação regente sobre a matéria é o próprio Código Penal Brasileiro e a Lei Federal 7.210/1984 (Lei de Execução Penal). A referida Lei tem por como finalidade “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (artigo 1º, parte final). O Código Penal, também avança sobre o tema quando expões que “[o] trabalho do preso será sempre remunerado, sendo-lhe garantidos os benefícios da Previdência Social” (artigo 39).
A Lei de Execuções Penais dispõe, ainda, em seu artigo 41, inciso II, que a atribuição de trabalho e sua remuneração, constituem direito do preso e o artigo 28 complementa, assinalando que “[o] trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva”.
Segundo Hélio Gustavo Alves (2007, pg. 35):
“[...] o sistema carcerário tem como função reeducar o preso e uma das formas de ressocialização é dar-lhe oportunidade de exercer uma atividade profissional dentro do sistema carcerário, fato que não ocorre. Logo, o preso, além de não estar sendo reeducado, por uma falha no sistema não pode exercer qualquer espécie de trabalho, primeiro por estar recluso, segundo por má administração do Estado em não construir uma penitenciária produtiva que proporcione o exercício profissional.”
Enquanto estiver cumprindo pena em regime fechado, o trabalho será interno. Entretanto, admite-se o trabalho externo, como, por exemplo, em serviços ou obras públicas (artigo 34, § 3º, do Código Penal), desde que seja autorizado pela direção do estabelecimento, o preso tem que ser apto para o serviço, tem que ter disciplina e responsabilidade, além de ter cumprido, no mínimo, um sexto da pena (artigo 37 da LEP).
Tratando-se de regime semiaberto, “[o] condenado fica sujeito a trabalho em comum durante o período diurno, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar” (artigo 35, § 1º, do CP). Admite-se, também, o trabalho externo, assim como a frequência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior (artigo 35, § 2º, do CP).
O artigo 28, § 2º da Lei de Execuções Penais, especifica que o trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Contudo, os artigos 29 e 33, estipulam que seu trabalho será remunerado, mediante prévia tabela, não podendo ser inferior a 3/4 (três quartos) do salário mínimo, sendo que a jornada normal de trabalho não será inferior a seis nem superior a oito horas, com descanso nos domingos e feriados e, além disso, deverá atender às seguintes finalidades:
a) Indenização dos danos causados pelo crime, desde que determinados judicialmente e não reparados por outros meios;
b) Assistência à família;
c) Pequenas despesas pessoais;
d) Ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manutenção do condenado, em proporção a ser fixada e sem prejuízo da destinação prevista nas letras anteriores.
Ressalvadas outras aplicações legais, será depositada a parte restante para constituição do pecúlio, em Caderneta de Poupança, que será entregue ao condenado quando posto em liberdade.
Além da remuneração supracitada, a LEP beneficia o condenado que trabalha ou estuda e que cumpre pena em regime fechado ou semiaberto: a remição de parte do tempo de execução da pena. A cada 3 (três) dias de trabalho será diminuído 1 (um) dia da sua pena, ou, a cada 12 (doze) horas de frequência escolar, divididas, no mínimo, em 3 (três) dias, 1 (um) dia de pena será diminuído (artigo 126, § 1º, I e II).
Assim, verifica-se que o preso trabalhador é aquele que trabalha enquanto está na prisão, em regime fechado ou semiaberto, sendo sua pena diminuída – se cumprir com os requisitos –, percebendo remuneração que é destinada para objetivos específicos.
3.2. TRABALHADOR PRESO
Já o trabalhador preso é aquele que trabalha e contribui para a previdência, comete algum delito e vai para a prisão. É, justamente, o sujeito da relação previdenciária que, por ter a condição comprovada de segurado, gera o fenômeno da proteção aos seus dependentes enquanto perdurar a incapacidade laborativa plena decorrente da reclusão.
Na esfera trabalhista, é de bom alvitre relembrar que constitui justa causa para a rescisão do contrato de trabalho por parte do empregador, desde que a condenação criminal do empregado tenha sido transitada em julgado e caso não tenha havido suspensão da execução da pena. Vejamos:
Art. 482. - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:
a) ato de improbidade;
b) incontinência de conduta ou mau procedimento;
c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço;
d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena; (...)
Isso significa que há a obrigação, por parte do empregador, de aguardar a sentença antes da demissão. Optando a empresa em manter o contrato de trabalho, que já estará suspenso desde a prisão, ficará isenta do pagamento dos salários ao seu funcionário, bem como do recolhimento do FGTS e Previdência Social.
Sendo assim, ratificamos que o trabalhador preso é aquele que, antes da sua prisão, já contribuía para a Previdência Social, tendo um trabalho habitual. Dessa forma, sua família não poderia ficar desamparada, por isso os dependentes do segurado, se este vier a ser preso, terão direito ao benefício de auxílio-reclusão para sustento próprio, tendo em vista que, não raras vezes, o preso era quem levava o alimento/sustento para seus dependentes.
3.3. A CONTROVERSA PEC 304/2013 E O FIM DO AUXÍLIO-RECLUSÃO
De autoria da deputada Antônia Lúcia (PSC-AC), a proposta de emenda constitucional 304/2013 prevê a extinção do auxílio-reclusão e a sua substituição por um “auxílio às vítimas”.
Vejamos a íntegra dessa proposta que, atualmente, encontra-se em vias de ser posta em votação pelo plenário da Câmara dos Deputados:
PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº , de 2013
(Da Sra. ANTÔNIA LÚCIA e outros)
Altera o inciso IV do art. 201. e
acrescenta o inciso VI ao art. 203. da Constituição Federal, para extinguir o auxílio-reclusão e criar benefício para a vítima de crime.
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60. da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional:
Art. 1º O inciso IV do art. 201. da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 201. ....................................................................
IV – salário-família para os dependentes dos segurados de baixa renda;
...........................................................................”
Art. 2º Acrescente-se o seguinte inciso VI e parágrafo único ao art. 203. da Constituição Federal:
“Art. 203. ....................................................................
VI – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa vítima de crime, pelo período que for afastada da atividade que garanta seu sustento e, em caso de morte da vítima, conversão do benefício em pensão ao cônjuge ou companheiro e dependentes da vítima, na forma da lei.
Parágrafo Único. O benefício de que trata o inciso VI deste artigo não pode ser acumulado com benefícios dos regimes de previdência previstos no art. 40, art. 137, inciso X e art. 201.”
Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.”
Pode-se deduzir, facilmente, que se trata de uma tentativa do parlamento em dar vazão aos textos e toda a “polêmica” acima descrita sobre o auxílio-reclusão que, como visto, ganhou forma nos últimos anos com a popularização das redes sociais na internet.
Diante disso, estamos diante de duas questões a serem analisadas na PEC da deputada Antônia Lúcia: a proposta de extinção do auxílio-reclusão e a criação do suposto auxílio às vítimas. E, talvez, o maior dos questionamentos: a extinção do benefício em estudo traria alguma vantagem social? A nosso ver, a resposta é negativa.
De início, temos que um dos princípios basilares do Direito Penal e Constitucional é o de que os efeitos de uma condenação não devem se estender para além da pessoa do criminoso. A existência de um benefício previdenciário dialoga diretamente com essa ideia, ao garantir que a família de um sujeito que, antes de ser condenado, contribuía com a Previdência, esteja salvaguardada da ausência de seu provedor.
Um dos problemas mais graves da temática prisional atual, com consequências diretas na segurança de todos nós que estamos fora do sistema penal é a robustez que foram adquirindo as organizações criminosas no interior dos presídios. Tal poder advém de vários fatores: um deles é a segurança do detento no interior do presídio; a segunda é a assistência que estas organizações terminam dando aos familiares deste, aqui fora.
Nesse aspecto, a eventual extinção do auxílio-reclusão não tem apenas uma carga profundamente contrária aos pressupostos humanistas, mas é um perigoso precedente do ponto de vista de segurança social, haja vista a real possibilidade de inserir no contexto criminal um conjunto de famílias que hoje, graças ao benefício, conseguem minimamente se manter alheias a esse processo.
Por outro lado, o benefício, em tese, garante a manutenção da família do preso, conservando uma existência digna e desmotivando que a mulher e os filhos também sejam seduzidos pela criminalidade ou dependam exclusivamente dos programas assistenciais públicos. Também desestimula a dependência econômica da família do preso com os comparsas soltos e a sedimentação das quadrilhas.
Por fim, cabe referir também o erro na criação um “auxílio à vitima”, proposta que, a priori possui aspectos demagógicos além de, praticamente, mostrar-se inócua, conforme veremos. Como dito antes, qualquer pessoa que for vítima de um crime e estiver no âmbito de cobertura previdenciário na qualidade de segurado poderá contar com auxílio-doença, aposentadoria por invalidez ou, em caso de morte, seus dependentes contarão com a respectiva pensão equivalente. Tais benefícios, por si, já surgem como espécies de “auxílio às vítimas”.
Ocorre que, mesmo as eventuais vítimas que não possuem a condição de segurado, podem vir a ser beneficiados. Estamos diante de casos que podem ser atendidos via LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social), que não guarda as mesmas garantias e proteção do sistema previdenciário, mas garante meios básicos de subsistência.
Ademais nosso sistema legal prevê claramente a responsabilidade civil advinda de condenação criminal. Qualquer vítima (ou dependente) pode processar o autor de um crime buscando reparação do dano sofrido, seja material ou moral.
Assim, a pretensa modificação legislativa proposta mostra-se com graves ameaças à ordem social e ao próprio sistema previdenciário. Quando, de forma assoberbada, o processo legislativo, muitas vezes influenciado pelos conclames midiáticos, temos como resultado normas mal elaboradas e que não atendem suas finalidades. Pior ainda, tornam-se verdadeiras ameaças ao convívio social.
REFERÊNCIAS
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CESARINO JR., A. F. Direito social brasileiro. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1970. V.1.
EDUARDO, Ítalo Romano; ARAGÃO, Jeane Tavares. Direito Previdenciário. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2010.
FARINELI, Alexsandro Menezes. Aposentadoria Rural. 2ª. ed. Sã Paulo: Mundo Jurídico, 2013.
FORTES, Simone Barbisan; PAULSEN, Leonardo. Direito da Seguridade Social. Porto Alegre: Editora do Advogado, 2005.
LOPES JÚNIOR, Nilson Martins. Direito Previdenciário: Custeio e Benefício. 2ª. ed. São Paulo: Rideel, 2009.
KOVALCZUK FILHO, José Enéas. Manual dos Direitos Previdenciários dos Trabalhadores Rurais. São Paulo: LTr, 2012.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da seguridade social. 26.ed.São Paulo: Atlas, 2008.
SANTOS, Maria Feitosa dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.