Introdução
Este texto aborda especificamente a reforma do artigo 192 da Constituição Federal de 1988 por meio da Emenda Constitucional nº 40/03, as vantagens dela advindas e a recepção das leis ordinárias que dispõem sobre o Sistema Financeiro Nacional. Para cumprir esse desiderato, será feita uma análise crítica e minuciosa da redação anterior e, em conseqüência da interpretação adotada sobre quais matérias do Sistema Financeiro Nacional deveriam estar dispostas na lei complementar expressa no caput do artigo em epígrafe, algumas normas ordinárias inconstitucionais serão apontadas.
1. A legislação do Sistema Financeiro Nacional antes da atual Carta Magna
Antes da atual Constituição, as matérias relativas ao Sistema Financeiro Nacional privado [1] eram somente encontradas na legislação infraconstitucional, entre elas: as Leis nº 4.131, de 3.9.1962, e nº 4.390, de 29.8.1964, que tratam dos capitais estrangeiros; a Lei nº 4.380, de 21.8.1964, que regula o Sistema Financeiro de Habitação; a Lei nº 4.595, de 31.12.1964, que dispõe sobre a política e instituições monetárias, bancárias e creditícias; a Lei nº 4.728, 14.7.1965, a Lei do Mercado de Capitais, que disciplina o mesmo e estabelece medidas para o seu desenvolvimento; o Decreto-lei nº 70, 22.11.1966, que trata da regionalização e funcionamento de associações de poupança e empréstimo; Decreto-lei nº 73, de 21.11.1966, a Lei dos Seguros, que dispõe sobre o Sistema Nacional de seguros Privados e regula as operações de seguro e resseguros; e a Lei nº 6.385, de 7.12.1976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
2. O art. 192 da Constituição antes da Emenda Constitucional n.º 40/03
Com a atual Carta Magna, que se inspirou na Constituição portuguesa de 1976 [2], mas que também foi resultado da própria evolução ideológica e da tentativa de se adequar as normas financeiras à realidade brasileira então vigente [3]/ (4), essa matéria ganhou status constitucional, já que ficou estabelecido, no seu título VII, capítulo IV, "Do Sistema Financeiro Nacional", art. 192, o seguinte:
"Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:
I - a autorização para o funcionamento das instituições financeiras, assegurado às instituições bancárias oficiais e privadas acesso a todos os instrumentos do mercado financeiro bancário, sendo vedada a essas instituições a participação em atividades não previstas na autorização de que trata este inciso;
II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, resseguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador (5);
III - as condições para a participação do capital estrangeiro nas instituições a que se referem os incisos anteriores, tendo em vista, especialmente:
a) os interesses nacionais;
b) os acordos internacionais;
IV - a organização, o funcionamento e as atribuições do Banco Central e demais instituições financeiras públicas e privadas;
V - os requisitos para a designação de membros da diretoria do Banco Central e demais instituições financeiras, bem como seus impedimentos após o exercício do cargo;
VI - a criação de fundo ou seguro, com o objetivo de proteger a economia popular, garantindo créditos, aplicações e depósitos até determinado valor, vedada a participação de recursos da União;
VII - os critérios restritivos da transferência de poupança de regiões com renda inferior à média nacional para outras de maior desenvolvimento;
VIII - o funcionamento das cooperativas de crédito e os requisitos para que possam ter condições de operacionalidade e estruturação próprias das instituições financeiras.
§ 1º - A autorização a que se referem os incisos I e II será inegociável e intransferível, permitida a transmissão do controle da pessoa jurídica titular, e concedida sem ônus, na forma da lei do sistema financeiro nacional, a pessoa jurídica cujos diretores tenham capacidade técnica e reputação ilibada, e que comprove capacidade econômica compatível com o empreendimento.
§ 2º - Os recursos financeiros relativos a programas e projetos de caráter regional, de responsabilidade da União, serão depositados em suas instituições regionais de crédito e por elas aplicados.
§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar".
Embora essa redação original tenha sido substancialmente alterada pela Emenda Constitucional nº 40 [6], de 29.5.2003, para perfeita compreensão do objetivo deste texto, qual seja, demonstrar as vantagens da reforma do artigo em epígrafe, faz-se necessário um estudo analítico da primeira redação, dividindo-a em quatro partes (os princípios específicos do caput, a expressão "regulado em lei complementar" disposta no caput, os incisos e os parágrafos), conforme a seguir.
2.1.Os princípios específicos do Sistema Financeiro Nacional
Da leitura do caput do art. 192, identificam-se dois princípios explícitos (a promoção de desenvolvimento equilibrado e atendimento aos interesses da coletividade) e um implícito [7] (a função social do sistema financeiro) que devem balizar toda atividade normativa no âmbito do sistema financeiro, conforme a seguir.
2.1.1. O desenvolvimento equilibrado
A Constituição brasileira dá uma ênfase muito grande ao desenvolvimento, consoante se pode ver em inúmeros dispositivos seus (entre eles, os incisos I, II e III do art. 3º, o inciso XXIX do art. 5º, o parágrafo único do art. 23, os incisos I e II do art. 48), e tal fato se justifica já que o Brasil é um país subdesenvolvido com diferenças sociais e regionais gritantes. Nesse mesmo diapasão, o artigo 192 estabelece que o Sistema Financeiro Nacional deve ser estruturado de modo a promover o desenvolvimento equilibrado do país.
Nota-se que a expressão "desenvolvimento" deve ser empregada no seu sentido mais amplo possível, não somente no aspecto quantitativo (o sentido econômico de crescimento), mas no aspecto qualitativo, incluindo os aspectos sociais, científicos, educacionais etc. Para Erasto Villa Verde Filho [8], a expressão "desenvolvimento equilibrado" também pode ser compreendida como "desenvolvimento sustentável", onde "equilibrado" deve ser tomada também no seu sentido lato. Esse autor relacionou algumas acepções de "equilíbrio" implicitamente contidas no sentido teleológico e lógico-sistemático da Constituição:
"a) equilíbrio econômico - considerando o sentido amplo da expressão, não apenas o equilíbrio entre oferta e procura; b) equilíbrio monetário - coordenando o desenvolvimento com o combate à inflação; c) equilíbrio regional - tendo em vista as divergências entre as regiões geoconômicas do País; d) equilíbrio setorial - considerando os diversos setores da economia, primário, secundário e terciário; e) equilíbrio social - visando à redução das desigualdades sociais; f) equilíbrio ecológico - observando um dos princípios gerais da ordem econômica, a defesa do meio ambiente (art. 170, VI)" (9).
2.1.2. Atendimento aos interesses da coletividade
É notório que um dos princípios fundamentais do moderno Direito Público é a supremacia do interesse público sobre o privado, onde o primeiro se traduz em interesse da coletividade, na verticalidade das relações entre a Administração e os particulares [10], cujas características principais são a indivisibilidade e a indisponibilidade. É indisponível pois se algo for feito para protegê-lo ou prejudicá-lo, todos os seus titulares serão, respectivamente, favorecidos ou prejudicados. É indisponível porque é inapropriável, não se encontra à disposição de terceiros, senão do órgão ou instituição pública titular, que tem o dever de tutelá-lo.
Para Maria S. Zanella Di Pietro, o interesse público (da coletividade) abrange três espécies: "o interesse geral, afeto a toda a sociedade; o interesse difuso, pertinente a um grupo de pessoas caracterizadas pela indeterminação e indivisibilidade; e os interesse coletivos, que dizem respeito a um grupo de pessoas determinadas ou determináveis" [11].
Do exposto, fica claro que o princípio do atendimento aos interesses da coletividade, trata-se de um interesse público da espécie geral, já que a coletividade expressa no artigo 192 é o povo, formado pelo conjunto de cidadãos, residentes ou não.
Deve ficar claro que, ao impor o interesse da coletividade ao Sistema Financeiro Nacional, não significa que os donos das instituições financeiras e seus clientes não possam ter interesses individuais; podem sim, claro, mas desde que estes não colidam com aqueles, além destes interesses terem que observar outros princípios como da legalidade.
2.1.3. A função social do Sistema Financeiro Nacional
Utilizando-se da visão sistêmica do direito, segundo Erasto Villa Verde C. Filho [12], esses objetivos explícitos resultam num princípio implícito: o da função social do Sistema Financeiro Nacional. Além desse autor, no mesmo diapasão, encontra-se o posicionamento de José A. da Silva, cujo trecho a seguir é também citado por Celso R. Bastos e Ives Gandra Martins [13]:
"Mas é importante o sentido e os objetivos que a Constituição imputou ao sistema financeiro nacional, ao estabelecer que ele será estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, de sorte que as instituições financeiras privadas ficam assim também e de modo muito preciso vinculadas ao cumprimento da função social bem caracterizada." (14). (grifo nosso)
Nesse sentido, Marusa Freire também dispõe o seguinte:
"(...) possa contribuir para a tomada de posição sobre o sistema financeiro que queremos, bem como sobre sua adequação para importante cumprimento da importante função social constitucionalmente estabelecida – de promover o desenvolvimento equilibrado do país e servir aos interesses da coletividade - , escopo fundamental a legitimar sua regulamentação e sua inserção no sistema financeiro internacional" (15). (grifo nosso)
Nota-se a função social do Sistema Financeiro Nacional quando os bancos otimizam a alocação de poupança, transferindo recursos de quem tem em excesso para quem necessita (geralmente os setores produtivos e as pessoas mais pobres) ou quando as instituições de seguros assumem o risco de eventuais sinistros para os setores de produção. Faz-se necessário observar que essas atividades estão também em consonância com vários princípios do art. 170 da Carta, quais sejam: da dignidade da pessoa humana, da valorização do trabalho humano e da busca do pleno emprego.
Em função disso, surge um interesse público na boa atuação do governo por meio dos seus órgãos, autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista no âmbito do Sistema Financeiro Nacional. Por exemplo, existe a necessidade de o governo controlar os meios de pagamentos ao visar evitar a inflação e a manter um crescimento sustentável pela atuação dos seus órgãos e instituições responsáveis. Existe também a obrigação da atuação de órgãos e instituições públicas por meio da fiscalização e regulamentação desse sistema, pois a ausência de intervenção estatal para corrigir os desvirtuamentos e os excessos do mercado implicaria o não cumprimento da função social atribuída às empresas desse setor. Nesse sentido, Lauro Muniz Barreto, nos ensina que:
"Os bancos, mercê de sua notável influência na circulação de riqueza, desempenham uma função, que não se restringe à órbita das relações de ordem privada. Essa função é também econômica e social e suscita, por isso mesmo, os maiores problemas da política bancária de nossos tempos que inspira, em máxima parte, a atual legislação bancária de todos os países. Cogita-se de regular, de modo mais útil para a economia, e mais seguro para a massa dos depositantes, o afluxo, o defluxo e o destino dos capitais pelas vias bancárias e sua circulação no país" [16].
No mesmo diapasão, o entendimento de E. Villa Verde Filho: "Sem a presença, pelo menos indireta, do Estado no ramo financeiro da economia, seguramente, pelo intuito do lucro fácil, a atividade financeira voltar-se-ia toda para a especulação, abandonando o setor produtivo. Ao Estado compete impedir que isso ocorra, direcionando o sistema financeiro para o cumprimento de sua função social" [17].
Vale ressaltar que não se deve confundir a função social em tela com a função social da propriedade, também disposta na atual Constituição. Conforme o §2º do art. 182 e o art. 186 da mesma, a desapropriação pode ser aplicada, respectivamente, à propriedade urbana ou rural quando essas perderem as suas funções sociais, o que pode ocorrer também com os imóveis pertencentes às instituições financeiras. Todavia, essas espécies de desapropriação não se aplicam às ações dessas empresas, já que a função social dessas está definida no artigo 192 em comento. Portanto, quando essas instituições deixarem de promover o desenvolvimento equilibrado e de servir ao interesse da coletividade podem, conforme o caso, sofrer regime de administração temporária, intervenção ou liquidação extrajudicial, segundo dispõem o Decreto-lei nº 2.321/87 e a Lei nº 6.024/74. Aquele decreto, na seu art. 11, alínea "b", também prevê a possibilidade de desapropriação das ações a ser proposta exclusivamente pelo Bacen.
2.2. A expressão "regulado em lei complementar" constante do caput
2.2.1. A quantidade de leis complementares
Ao dispor que esse sistema "será regulado em lei complementar", essa antiga redação gerou uma polêmica quanto ao número de leis complementares nele previstas. Para uma parte da doutrina, entre eles, Fabio Konder Comparato [18], o artigo em tela permitia que várias leis complementares tratassem do assunto; para outra parte, entre eles Simone L. Nunes [19], somente uma única lei deveria regulamentá-lo.
Se o primeiro entendimento prevalecesse na doutrina, na jurisprudência, inclusive no Supremo Tribunal Federal, e no Legislativo, o limite de 12 % ao ano para a taxa de juros reais já estaria em vigência, independente do que foi decidido na Adin 004-7/DF [20], que concluiu que o parágrafo onde estava disposto esse limite não era auto-executável e que o conceito de juros reais não estava adequadamente definido. Tal fato ocorreria pois uma lei complementar de estrutura simples, de poucos artigos, seria suficiente para dar aplicabilidade a esse parágrafo. Como é notório, a segunda doutrina prevaleceu.
2.2.2. Crítica à falta de elaboração da lei complementar disposta no caput do art. 192 da Carta
Sem dúvida alguma, a maior crítica que vinha sendo feita ao art. 192 da Constituição era a falta da elaboração da lei complementar nele prevista. As leis sobre o mercado financeiro, recepcionadas e ainda vigentes, embora tenham sido muitos eficientes à época de sua publicação, datam da década de sessenta e de setenta, portanto, estão completamente fora da realidade econômico-financeiro atual. Entretanto, faz-se necessário enfatizar que, caso não houvesse a mudança no artigo em epígrafe por meio da Emenda Constitucional nº 40, tal norma nunca existiria, conforme as razões a seguir:
a)não havia interesse econômico, e consequentemente político, para regular o § 3º do art. 192, da CF, que trata do limite de 12 % para taxa de juros reais, nela incluída comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito;
b)o Executivo não deseja perder a competência normativa do CMN, fato que ocorreria com a edição de lei complementar em tela;
c)a impossibilidade do Poder Legislativo assumir o encargo de legislar a contento sobre as matérias regulamentadas pelo CMN;
d)a dificuldade técnica e política de se regular numa única lei complementar uma gama muito grande de assuntos que compõem o Sistema Financeiro.
Devido ao alto lucro amealhado nesses últimos anos pelas instituições financeiras [21], como conseqüência da política monetária então vigente, essas têm interesse de manter o "status quo" econômico adquirido, por conseguinte, procuravam bloquear qualquer tentativa de regulamentação do art. 192 pela lei complementar nele prevista, especificamente do seu § 3º. Para isso, as grandes instituições financeiras vêm financiando as campanhas políticas de membros do Congresso Nacional e do Presidente da República. Por exemplo, nas eleições de 1994 e de 1998, os recursos originários dessas instituições para o candidato presidencial eleito e reeleito foram, respectivamente, 23 % e 26,73% do total formalmente declarado [22]. Essas instituições também fazem um forte lobby no Congresso Nacional, quer diretamente, quer por meio da Federação Brasileira de Bancos (Febraban).
A cultura político-econômica brasileira vinha sempre subordinando a política monetária à política fiscal [23], que, no plano jurídico, se traduzia na conformidade dos regulamentos do Conselho Monetário Nacional (CMN) com as orientações da equipe econômica do governo (direção encabeçada pelo Ministro da Fazenda ou do Planejamento), pelas seguintes razões: facilidade na implementação das ações econômicas desejadas, mais tempestivas, técnicas, integradas com as demais, a possibilidade da política monetária ser usada com fins eleitorais, já que poderia ser utilizada para financiar gastos do governo que influenciassem o resultado de um pleito, embora este último uso foi reduzido substancialmente com edição da Lei Complementar nº 101/01, a Lei de Responsabilidade Fiscal [24].
Essa competência normativa do CMN - adquirida desde que entrou em vigência da Lei nº 4.595/64, recepcionada pelo inciso I do art. 25, ADCT, CF [25] e que está prorrogada, de fato, pelo art. 73 da Lei nº 9.069/95 [26]- é ampla, pois o mesmo elabora atos normativos no âmbito do sistema financeiro que seriam assinalados ao Congresso Nacional pela atual Carta. Portanto, esse órgão não sofre um controle repressivo de constitucionalidade pelo Legislativo [27], não precisa observar os princípios da divisão dos três poderes e o princípio da legalidade, salvo o disposto nos limites da competência expressos no art. 4º da Lei nº 4.595/64 [28]. Do exposto, esse órgão emite, de fato, regulamentos autorizados, consoante dispõe a doutrina de Eros R. Grau [29].
Essa competência deveria ser transitória, retornaria ao Congresso Nacional quando da emissão da lei complementar em tela, conforme a prorrogação expressa no art. 73 da Lei nº 9.069/95. Essa transitoriedade, pelas razões apontadas anteriormente, não interessava e nem interessa ao Executivo. Todavia, o interesse em mantê-la é tanto, que a mesma permanece de fato e não de direito, conforme será explicado a seguir.
Para o CMN não perder sua competência normativa, seria necessário prorrogá-la conforme o disposto no inciso I do art. 25, ADCT, e tal fato foi tentado. Inicialmente, o art. 1º da Medida Provisória nº 45, de 31.3.1989, publicada no DOU de 3.4.1989, prorrogou o prazo da vigência do dispositivo legal que atribuiu ao CMN competência assinalada ao Congresso Nacional até 30.4.1990. Entretanto, essa Medida perdeu eficácia em 2.5.1989, já que não foi aprovada pelo Congresso e não foi reeditada a tempo. Somente em 5.5.1989, entra em vigência a Medida Provisória nº 53, de 3.5.1989, que prorrogou em tese essa competência em comento até 30.10.1989, portanto, três dias após a perda de eficácia da medida anterior. Do exposto, embora fosse recepcionado pela atual Carta Magna, o CMN perdeu a sua competência normativa.
Posteriormente, como se nada tivesse ocorrido, essa segunda Medida Provisória foi revogada pela Lei nº 7.770, de 31.5.1989, que, daquela, manteve o prazo de prorrogação das atribuições do CMN. Após algumas medidas provisórias e leis que prorrogaram essas atribuições (MP nº 100/89, Lei nº 7.892/89, MP nº 188/90, Lei nº 8.056/90, MP nº 277/90, Leis nºs 8.127/90 e 8.392/91), iniciou-se a publicação de uma seqüência de 13 medidas provisórias sobre o Plano Real (MPs nºs 542/90, 566/94, 596/94, 635/94, 681/94, 731/94, 785/94, 851/95, 911/95, 953/95, 978/95, 1.004/95 e 1.027/95) que também tratavam da prorrogação da competência legiferante do órgão em epígrafe até a promulgação da lei complementar de que trata o art. 192 da Carta Magna. Finalmente, foi publicada a Lei nº 9.069, de 20.6.1995, a Lei do Plano Real, que, em seu art. 73, trouxe o mesmo prazo de prorrogação de competência das referidas medidas provisórias.
Por conseguinte, nos mesmos moldes do que foi decidido pelo STF quanto à competência do extinto Instituto Brasileiro de Café (IBC) para a fixação das quotas de Contribuição sobre a Exportação de Café [30], o CMN perdeu sua competência normativa em 2.5.1989 [31], a qual voltou ao Congresso Nacional. Portanto, todos os atos normativos emitidos pelo CMN que eram anteriores a sua perda de competência foram recepcionados pela Carta e só podem ser modificados por leis. Os posteriores, os publicados a partir da data em epígrafe, são, conforme a seguir: a) inconstitucionais, quando inovam o ordenamento jurídico brasileiro, no caso de não existir um norma infraconstitucional que trate do assunto, portanto o ato normativo confronta diretamente com a Carta; b) ilegais, quando extravasam o limite de conteúdo de uma lei já existente (ou ato normativo do CMN recepcionado como lei) [32].
Por outro lado, observa-se que é praticamente impossível o Poder Legislativo emitir adequadamente os normativos que hoje são elaborados pelo CMN, pois seriam, no geral, menos eficientes, pelas seguintes razões:
a)os parlamentares, em quase sua totalidade, não têm preparo para elaborar essas espécies de normas;
b)embora exista uma assessoria técnica competente dentro de cada uma das duas casas do Congresso, três situações podem ser observadas:
I.-muitos dos assuntos a serem regulados não são de conhecimento dessas assessorias;
II-mesmo que sejam conhecidos, existem informações relativas a esses assuntos que somente os órgãos ou instituições do Sistema Financeiro Nacional possuem (são de conhecimento exclusivo daqueles quem trabalham diretamente com o assunto);
III-mesmo que essas assessorias tenham todo o conhecimento possível, as decisões dos parlamentares não estão vinculadas aos pareceres técnicos das mesmas, pois elas podem ser exclusivamente demagógicas, estar em conformidade com interesses de lobbies ou ser resultantes de convicções pessoais;
a)observa-se também que o processo legislativo é inapropriado para elaborar normas técnico-científicas quando as matérias envolvidas forem situações de conjuntura, pois essas matérias exigem mais tempestividade para sua emissão, ou quando exigirem sigilo, por exemplo, situações onde os particulares podem obter vantagens econômicas com informações obtidas antes da publicação das leis.
Ao analisar a atuação legiferante do Poder Legislativo, Dalmo Ribeiro Dallari [33] ensina que esse Poder tem se mostrado desaparelhado para cumprimento de normas de conjuntura, devido à lentidão do seu funcionamento, à imperfeição de suas normas e à participação de pessoas geralmente despreparadas (parlamentares) para elaborarem leis tão tecnicamente específicas. Além de se posicionar nesse diapasão, Clèrmerson M. Clève [34] também ensina que, na era da sociedade técnica, onde a inflação legislativa é um fato incontestável [35]/ [36], o Legislativo deve mais fiscalizar do que propriamente legislar.
Do exposto, a competência normativa do CMN que só deveria durar, em tese, até a edição da lei complementar constante do art. 192 da Constituição, conforme estabelece o inciso I do art. 25, do ADCT e o art. 73 da Lei nº 9.069/95, não pode ser assumida pelo Legislativo e o Executivo tem um grande interesse de mantê-la permanentemente.
Mesmo considerando o entendimento de parte expressiva da doutrina quanto à delimitação das matérias que seriam tratadas pela lei complementar disposta no art. 192 da Carta (em somente uma lei complementar), que as restringia ao mercado financeiro, especificamente quanto à estrutura, à ordem e à unidade do mesmo, conforme será demonstrado a posteriori, a quantidade e complexidade das matérias são consideráveis, portanto não é fácil dispô-las numa única norma. Na verdade, para elaborar essa lei, seria despendido um trabalho equivalente àquele para se elaborar um código sobre o mercado financeiro e códigos demoram anos para serem aprovados, embora observem um trâmite especial [37]. Nesse sentido, devido às características intrínsecas dessas matérias, Arnald Wald [38] sugeriu a implementação de um Código do Mercado Financeiro, todavia, como notoriamente sabido, essa sugestão não foi acatada.
Faz-se necessário frisar que essa inércia legislativa para regular o parágrafo em epígrafe não vinha passando despercebida pelas empresas e pelos cidadãos. Após a Adin nº 004-7/DF (que concluiu que o § 3º do art. 192, da Carta Magna não era auto-aplicável e tinha eficácia limitada, por conseguinte também dependeria da elaboração da lei complementar expressa no caput desse artigo), inúmeros mandados de injunção foram impetrados para forçar essa elaboração, entre eles os MI nºs 321-1, 337-8, 324-6 e 368-8, todos com fulcro no inciso LXXI do art. 5º da Constituição. Contudo, o STF tem os deferido em parte pela maioria dos votos, para que se comunique ao Congresso Nacional a necessidade do mesmo tomar providências para suprir essa omissão legislativa. Como é notório, nenhum efeito prático tem essas decisões, pois o Legislativo não elaborou a lei complementar em epígrafe.
Conforme a doutrina de Alexandre de Moraes [39], os posicionamentos do então Ministros Nery da Silveira e dos Ministros Carlos Velloso e o Marco Aurélio de Mello, essas decisões são equivocadas, pois o mandado de injunção é um remédio constitucional que tem caráter substantivo; relativamente às normas constitucionais que não sejam auto-aplicáveis, deve fazer às vezes da norma infraconstitucional ausente para um caso em concreto, e somente para esse determinado caso, sem usurpar as funções próprias dos outros poderes. Nesse sentido, José A. da Silva nos ensina: "[...]Não é função do mandado de injunção pedir a expedição da norma regulamentadora, pois ele não é sucedâneo da ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, §2º). É equivocada, portanto, data venia, a tese daqueles que acham o julgamento do mandado de injunção visa à expedição da norma regulamentadora do dispositivo constitucional dependente de regulamentação, dando a esse remédio o mesmo objeto da ação de inconstitucionalidade por omissão" [40].
2.3. Os incisos da antiga redação do art. 192
Quanto aos incisos do artigo em epígrafe, é relevante observar que os incisos I, II, IV, V e VIII tratavam da autorização, do funcionamento e da organização de várias instituições do Sistema Financeiro Nacional, quer sejam públicas ou privadas [41]. Especificamente quanto ao inciso I, em consonância com os avanços do sistema financeiro internacional, estabeleceu sobre os bancos múltiplos, aqueles que atuam nos diversos segmentos do sistema financeiro, apesar da criação dos mesmos ter ocorrido antes da promulgação da atual Carta, por meio da Resolução nº 1.524, de 21.9.1988, do CMN.
Os incisos restantes também tratavam da estrutura do Sistema Financeiro Nacional, embora de maneira indireta. O inciso III tratava das condições do capital estrangeiro participar do Sistema Financeiro Nacional, enquanto que o inciso VI tratava da criação de um fundo ou seguro para proteção da economia popular. Finalmente, em conformidade com o princípio da redução das desigualdades regionais (inciso VII, art. 170, CF), o inciso VII procurava restringir a transferência de poupanças de regiões mais pobres para outras com maior desenvolvimento. Na opinião precisa de Washigton P. A. de Souza [42], este inciso embora elogiável, fora tardio, pois seus efeitos seriam mais eficazes, teriam evitado a concentração dos estabelecimentos bancários nos grandes centros urbanos, caso estivesse em vigor em épocas mais remotas.
Conforme se observa, embora as matérias constantes desses incisos fossem relevantes para o Sistema Financeiro Nacional, pode-se afirmar que esses dispositivos eram inócuos, já que ou essas matérias estavam disciplinadas anteriormente na legislação infraconstitucional recepcionada, portanto já produziam efeito, ou se não se estivessem disciplinadas, dependiam da elaboração da lei complementar disposta no caput, fato que não ocorreu [43]. Consoante será demonstrado no item 5 a seguir, a inutilidade desses incisos é também evidenciada pela regulação de matérias constantes dos mesmos em leis ordinárias e medidas provisórias após a promulgação da atual Constituição.
2.4. Os parágrafos da antiga redação do art. 192
Os três parágrafos, em termos práticos, também não acrescentavam algo de útil à legislação financeira.
Ao visar reduzir a concentração do sistema financeiro nas mãos de poucas empresas [44], o parágrafo 1º desse artigo trouxe o princípio da inegociabilidade ou intransferibilidade das cartas patentes de funcionamento das instituições do sistema financeiro. Conforme, esse parágrafo foi ineficaz, pois, houve o fenômeno de concentração das empresas do sistema financeiro em escala mundial [45], por meio de fusão, aquisição e incorporação, cujos efeitos não foram diferentes no Brasil [46].
Nos mesmos moldes do inciso VII do artigo em epígrafe, ao exigir que os recursos financeiros federais que sejam destinados a projetos regionais fossem depositados em instituições locais de crédito e que fossem por elas aplicados, o parágrafo 2º seria salutar a primeira vista [47]. Entretanto, além de tardio, por si só, este parágrafo não permitia o desenvolvimento das regiões mais pobres e da população mais carente dessas, já que, dentro dos Estados do Norte e do Nordeste, existem diferenças gritantes entre o centro urbano e rural, e a grande maioria dos recursos federais depositados nesses bancos é aplicado nas grandes capitais ou em empreendimentos dos mais abastados.
Finalmente, o parágrafo 3º, que trata da limitação da taxa de juros reais, como já explanado, não teve efeito prático algum e nem deveria ter. Nesse sentido, a lição de Manuel Gonçalves Ferreira Filho é clara e concisa: "Este desiderato é próprio de todos os devedores, infelizmente o funcionamento natural da economia é incompatível com a fixação arbitrária de um teto para os mesmos. Quis neste ponto o constituinte dominar o indominável" [48].
Existiam duas correntes que dispunham sobre a aplicação deste parágrafo: a primeira, entre eles José A. da Silva [49], que dizia que o mesmo tinha eficácia plena e aplicação direta e imediata, e a segunda, representada por Celso R. Bastos e Ives Gandra Martins [50], que se posicionava pela necessidade da emissão da lei complementar para que o limite em epígrafe tivesse aplicação.
Embora a primeira doutrina pareça ser juridicamente a mais adequada (já que as normas constitucionais são executórias na sua grande maioria, e é o caso desta; a Lei da Usura não perdeu a sua eficácia; e a Súmula 596 está revogada com promulgação da atual Carta Magna [51]), a mesma traria problemas econômicos sérios, entre eles o impedimento da rolagem das dívidas públicas e o surgimento de dificuldades na condução da política monetária pelo Bacen, devido à impossibilidade criada de manejar adequadamente as taxas de juros [52]. Com a posição firmada na Adin 004/07-DF, o STF, sabiamente, optou pela segurança do Estado.
Apesar da limitação constitucional da taxa de juros reais em 12% ao ano não ser boa para o direito pátrio, também não é justa a manutenção de altos patamares dessas taxas para as operações com títulos da dívida pública e para as operações de crédito a pessoas jurídicas e físicas (cheque especial, cartão de crédito, empréstimos pessoais etc.), já que os banqueiros, vários transnacionais, vem vampirizando o tesouro pátrio e a população em geral. Aqueles vêm amealhando altas taxas de rentabilidade nos últimos anos [53] (de 1995 aos dias de hoje), muito acima das taxas dos setores de produção. Com a exploração do Tesouro Nacional, conforme já exposto, o crédito ao setor produtivo, a grande função social dos bancos comerciais, ficou de lado. Conforme constata o professor Reynaldo Gonçalves da UFRJ, "quem vai se preocupar com crédito, se é possível ganhar um monte de dinheiro, sem sair de casa, só aplicando em títulos públicos?" [54].
A limitação dos juros deve se dar por uma atuação mais efetiva do Poder Executivo e do Banco Central, os quais devem criar políticas consistentes para estimular a oferta de créditos e a poupança interna e para a elaboração de mecanismos de controle direto do spread bancário [55] (especialmente da parcela abusiva de lucro).