1 - CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Passados pouco mais de vinte anos da promulgação da Carta Política de 1988, vê-se que muitos de seus preceitos não se encontram satisfatoriamente atendidos; nada mais compreensível, dado o teor eminentemente garantista que aquele documento encerra. Contudo, certo é que o amadurecimento das ideias, tanto políticas quanto da sociedade civil, não demanda um período demasiado longo, sobretudo se se considerar o ambiente de estabilidade democrática que o país vivencia desde então. Destarte, resta aos cidadãos e aos mais diversos setores representativos a tarefa de tornarem-se atores do direito, e não apenas seus consumidores; conforme afirma Benevides (2002, p. 56), “é a representação que corrige a democracia”.
É assente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que os direitos sociais são direitos fundamentais da pessoa (RE 271286, informativo nº 210). Combinando isso com o princípio que garante imediata aplicabilidade às normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, LXXVIII, § 1º da CF), pode-se afirmar que as disposições acerca de direitos sociais, estejam dentro ou fora do texto constitucional, são, desde 5 de outubro de 1988, imediatamente aplicáveis a seus destinatários. Não é só isso, afirma Ingo Sarlet (2001, p. 27):
Há como sustentar, a exemplo do que tem ocorrido na doutrina, a aplicabilidade imediata (por força do art. 5º, § 1º, da CF) de todas as normas de direitos fundamentais constantes do Catálogo (arts. 5º a 17), bem como dos localizados em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais. Aliás, a extensão do regime material da aplicabilidade imediata aos direitos fora do catálogo não encontra qualquer óbice no teto de nossa Lei Fundamental, harmonizando, para além disso, com a concepção materialmente aberta dos direitos fundamentais consagrada, entre nós, no art. 5º, § 2º, da CF.
Nesse caso, qualquer alegação em contrário não passa de pura cavilação.
Recursos procrastinatórios são comumente utilizados para justificar o óbice a uma atuação mais proeminente do Judiciário, entre eles, são recorrentes as teses da reserva do possível e a da separação tripartida dos poderes constituídos. Deseja-se neste artigo afastar esses impedimentos. É preciso considerar que “valores básicos da sociedade capitalista – como o trabalho – são deixados em segundo plano, enquanto o lazer e o consumo se transformam em necessidades sociais” (COSTA, 2005, p. 22), assim, é impensável que a efetivação dos direitos fundamentais sociais, destinados a satisfazer esses novos valores, não se dê sem uma participação ativa do Judiciário, dado que, devido à elevada carga principiológica que esses direitos encerram, a produção de seus efeitos fica subordinada à análise do caso concreto. Acrescente-se a isso que, por circunstâncias de crise representativa da parte de um poder, resta configurada a necessidade de complementação por intermédio de outro. Ademais, a presença de direitos fundamentais sociais na Carta constitucional deve ser entendida não apenas como objetivos a que o Estado esteja obrigado a alcançar, mas também como instrumentos aptos a fazer com que a participação popular, com intervenção judicial inclusive, desperte para seu papel na construção da realidade.
Enfim, visto que muitas das disposições constitucionais referentes a direitos sociais que dependem de regulamentação ainda não foram apreciadas no Congresso Nacional, ou quando sim, tem tramitação claudicante, pretende-se aqui demonstrar que é possível a aplicação do direito à licença-paternidade (direito fundamental social presente no art. 7º, XIX, da CF) com prazo superior aos cinco dias garantidos no artigo 10, parágrafo primeiro do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT.
O direito social aqui em tela tem, na classificação mais aceita sobre eficácia de normas constitucionais, natureza de ao mesmo tempo norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, e de eficácia contida e aplicabilidade imediata, porque, embora a redação do inciso suso determine que se deva ocorrer a regulamentação do citado direito, agiu bem o legislador originário ao estipular no ADCT ao menos um prazo mínimo – cinco dias. Ressalve-se que esse limite mínimo já é superior ao que dispunha o artigo 473, III, da Consolidação das Leis do Trabalho-CLT (um dia). Constata-se assim, claro indício de que a vontade constitucional é a de aperfeiçoar esse direito para adequá-lo não somente às necessidades do progenitor, mas também as do recém-nascido e da parturiente.
Não é o objetivo deste artigo realizar um estudo aprofundado do problema da eficácia das normas constitucionais definidoras de direitos, mas de saber sob que condições torna-se possível a implementação de um direito fundamental ainda não regulado satisfatoriamente, ou que dependa de requisitos de ordem estrutural ou econômica. Uma das possibilidades que se argumentará é a da utilização dos princípios constitucionais como meio de colmatação de lacunas e congruidade de interesses conflitantes.
2 - ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL E O CASO BRASILEIRO
Políticas governamentais apresentam resultados diferentes devido às particularidades dos países em que são aplicadas. E isso não poderia ser de outra forma com relação às ações de bem-estar social (Welfare State). Na Alemanha, as intenções da carta de Weimar foram frustradas pelo nazismo; situação semelhante vivenciou a Itália. Noutros países industrializados, como Estados Unidos e Inglaterra, as despesas decorrentes da manutenção do Estado Providência aumentaram além do que se arrecadava, acarretando, por conseguinte, aumento do déficit público, da inflação e da instabilidade social.
Do mesmo modo, o Brasil e outros países da América latina apresentam suas particularidades. Com efeito, sustenta Streck (2006, p. 00), que as nações latino-americanas não experimentaram plenamente o Estado de Bem-estar Social, com isso, suas chances de desenvolvimento, agora, afiguram-se mitigadas. Acrescente-se a isso o fato de as redemocratizações, que ocorreram em vários desses países, terem ocorrido num contexto de crise econômica que dificultou a acumulação e a transferência de renda e benefícios.
Há outros pressupostos que justificam a manutenção do Estado Providência nesses países periféricos. Em nosso caso, até meados do século passado, a população era em sua maioria habitante de localidades rurais. Consoante entendimento de ROQUE (0000, p. 294), a sociedade vivia sob valores individualistas e patrimonialistas, expressos numa legislação de inspiração manifestamente formalista. A industrialização brasileira se dá entre as décadas de 1940 e 1960, tardia em relação aos países centrais. Nesse processo, afirma SANTOS (2009, p. 31), que ocorre uma “inversão quanto ao lugar de residência da população brasileira”, a taxa de urbanização, que era de 26% em 1940, alcança quase 70% em 1980. Com isso, sociedade e economia modernizam-se, contudo, os benefícios gerados não estavam acessíveis a todos; situação agravada pela ineficácia das políticas públicas urbanas.
Não é só isso, o Brasil foi acometido, nesse período, por dois grandes acontecimentos, um no âmbito interno – ditadura militar – e outro no plano internacional, conforme assinala Mankiw (2010, p. 184), “Começando no início da década de 1970 e durando até a metade da década de 1990, os formuladores de políticas econômicas de todo o mundo se depararam com um problema desconcertante: uma desaceleração globalizada do crescimento econômico”. Para Hobsbawm (2005, p. 393-397), “a história dos vinte anos após 1973 é a de um mundo que perdeu suas referências e resvalou para a instabilidade e a crise”, a economia global, mesmo não chegando a ruir, fez reaparecer em países desenvolvidos problemas sociais que “tinham dominado a crítica ao capitalismo antes da guerra” – pobreza, desemprego em massa, miséria; com isso, essas economias centrais viram-se diante de um grave quadro de desigualdade na distribuição de suas rendas. Prossegue o insigne historiador (2005, p. 397), no final da década de 1980 o “candidato a campeão mundial de desigualdade econômica” era o Brasil.
Diante de um cenário como esse, a ruptura com a ordem constitucional anterior deveria necessariamente viabilizar dois objetivos precípuos: primeiro, garantir a organização e a atuação da sociedade civil. Daí que o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular surgiram, na lição de Benevides (2002, p. 10), como “mecanismos institucionais de participação direta na atividade de produção de leis e de políticas governamentais”. Com isso, além do reconhecimento constitucional de que todo o poder emana do povo, a nova Carta ter aditado que o seu exercício se daria por meio de representantes eleitos ou diretamente (art. 1º, § único). Em segundo lugar, ampliar as alternativas de promoção do Estado Social, a fim de consolidar o welfare state. Os esforços mundiais, nessa época da Constituinte, caminhavam em sentido contrário, privilegiando a adoção de políticas voltadas ao neoliberalismo. Sobre esse, leciona Barroso (2011, p. 89), que “Dentre seus dogmas, que com maior ou menor intensidade correram mundo, estão a desestatização e desregulamentação da economia, a redução das proteções sociais ao trabalho, a abertura de mercado e a inserção internacional dos países, sobretudo através do comércio”. A conclusão a que se chegou foi a de que o direito estaria “migrando do Estado para a economia, trocando a função de servir à sociedade, na medida em que o seu modelo mais bem acabado, o Estado do Bem-Estar Social (Welfare state), torna-se obsoleto e ineficaz para atender aos interesses do mercado” (PAULINO, 2010, p. 88).
Com tudo isso, urgia a necessidade de retomada das “rédeas do Estado” visando a ampliação e promoção dos direitos fundamentais. E de outra forma não poderia ser, porque, enquanto as nações ricas estavam protegidas por “generosos sistemas de previdência e seguridade social” (HOBSBAWM, 2005, p. 278-279)[1], no Brasil, conforme assevera Streck (2006, p. 00), a intervenção do Estado favoreceu apenas o enriquecimento de uma pequena parcela da população.
Daí a necessidade de uma constituição dirigente, no dizer de Canotilho. Dado que em virtude do surgimento de novas necessidades sociais trazidas pela urbanização e modernização da sociedade, ocorridas sob ditadura, e sem o welfare state para ditar os rumos da coletividade, restavam poucas alternativas para atender juridicamente os novos reclamos sociais. (APERFEIÇOAR A REDAÇÃO DESTE PARÁGRAFO)
3 - A EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS E A PRIMAZIA DO JUIZ PARA DECIDIR EM SEDE DE DIREITO FUNDAMENTAL
A doutrina tradicional sobre normas constitucionais pouco fez para desenvolver mecanismos que as auxiliassem na produção de seus respectivos efeitos, isto é, meios que intensificassem a capacidade de essas normas de produzir resultados, mesmo não estando elas suficientemente reguladas ou que o objeto esperado não estivesse de pronto identificado.
Boa parte dos teóricos do direito constitucional que discorreram sobre o assunto tratou de classificar essas normas considerando os critérios de eficácia, aplicabilidade ou finalidade. Assim, a doutrina mais aceita limitou-se a dizer, quase que tautologicamente, que existiam normas constitucionais que tinham a possibilidade, desde já, de serem implementadas (eficácia plena e aplicabilidade imediata), outras que necessitariam de regulamentação futura, mas que teriam, contudo, condições de produzirem todos os seus efeitos (eficácia contida e aplicabilidade imediata), e ainda, normas que demandariam da construção de um arcabouço econômico, administrativo, ou social, destinando-se, essas normas, a criar ou organizar instituições, ou estabelecer programas a serem desenvolvidos (eficácia limitada e aplicabilidade mediata).[2]
Em obra clássica, Barroso (2000, p. 77), diz que as normas constitucionais por serem espécie do gênero normas jurídicas “conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade”, e do mesmo modo que qualquer outra norma, contém elas “um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral”.
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Não obstante a sistematização seja necessária à facilitação do trabalho hermenêutico, a alegação de que certas normas constitucionais são impotentes à produção de efeitos jurídicos imediatos, não pode ser acolhida em termos absolutos, por acarretar riscos à própria razão de ser dessas normas. Não é cabível assim, que elas venham a servir de “pretexto cômodo à inobservância da constituição” (BONAVIDES, 2011, p. 245), o que é bastante provável em se considerando a tradição formalista de nossos operadores do direito.
Esse entendimento que retira ânimo dos mandamentos constitucionais é criticado por Ferreira Filho (2005, p. 387-8 apud TAVARES, 2011, p. 118), para quem, a completude da norma, funcionando como critério essencial de aplicabilidade, não é um axioma; visto que “há possibilidade de o ordenamento jurídico prever a aplicabilidade de normas incompletas”, elas estariam, dessa forma, delegando ao aplicador do direito que, no caso concreto, as complemente com aquilo que não foi definido ou o foi insuficientemente. É que a Constituição, usando de conceitos um tanto imprecisos, “protege âmbitos da vida humana ‘alheios ao Estado’”, e ao mesmo tempo reconhece a autonormatividade desses, em razão disso, torna-se necessário delegar parte da competência interpretativa (SCHNEIDER, 1991, p. 61 apud KRELL, 0000, p. 38).
Deve realmente ser essa uma das justificativas para a determinação da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos, porque se assim não fosse, de que outra forma o legislador infraconstitucional iria definir a liberdade, a expressão artística ou a manifestação do pensamento, por exemplo. Até que se diga o contrário, o fato de ofertar uma refeição apimentada à sogra pode constituir além de uma forma de manifestação estética (o fato de confeccionar o prato), uma maneira de expressar o que se pensa dessa pessoa.
Não bastante esse imperativo constitucional, procura-se negar eficácia aos direitos fundamentais alegando a impossibilidade de recursos financeiros (reserva do possível), ou o princípio da tripartição funcional do Estado. O primeiro argumento tem razoável acolhida, embora nem sempre prevaleça, pois se pode considerar que existe sim a impossibilidade de concretização de todos os direitos sociais, a um só tempo, a todos os cidadãos; mas quanto ao segundo, são cada vez mais audíveis as vozes defensoras de que a efetivação desses direitos, hodiernamente, demanda um Judiciário mais protagonista.
Mas para isso há de se repensar o entendimento kelseniano de que o juiz transforma-se em político ao valorar um caso concreto considerando não só a norma, mas também os valores que ele acredita que essa norma quer alcançar “Se a concepção ético-política do juiz toma o lugar da concepção ético-política do legislador, este abdica em favor daquele” (KELSEN, 1988, p. 173). Em casos que se aproximam dessa concepção, o que não se quer entender é que a atuação do Judiciário é apenas uma outra forma de o poder soberano do Estado realizar-se; o próprio Tribunal Constitucional reconheceu essa “dimensão política da jurisdição” a ele conferida.[3] Ademais, deve-se ter em mente que o trabalho do juiz é exercido em meio social, demandante de congruência de interesses plurais, assim, “Se de um lado é certa e necessária a atuação politizada do Juiz, mais certa ainda é a influência exercida sobre o juiz pela sociedade que o envolve, inclusive pela mídia e pelas tendências existentes” (Ricardo Cavalcante Barroso, 0000, p. 0). Destarte, negar atuação política ao juiz entendendo que só as funções submetidas a escrutínio é que devem agir sobre políticas públicas é o mesmo que relegar o Judiciário à condição de cadeirante, enquanto Executivo e Legislativo caminham com as próprias pernas mas escolhem claudicar. Consoante doutrina Barroso (2011, p. 309-10), “a democracia não se resume ao princípio majoritário”, mas “ao revés, quando o processo político majoritário está funcionando com representatividade e legitimidade, com debate público amplo, juízes e tribunais deverão ser menos pró-ativos”.
Defende Costa (2005, p. 42), que a matriz histórica do princípio da tripartição dos poderes é a tutela da liberdade, mas para tanto não é necessária uma separação rígida entre as funções estatais. A leitura coerente que se pode fazer de Montesquieu é que:
(...) ele (Montesquieu) não queria dizer que esses poderes não devem ter nenhuma ingerência parcial, ou nenhum controle sobre os atos uns dos outros. O que quis dizer (...) não podia ser senão isto: que quando todo o poder de um braço é exercido pelas mesmas mãos que possuem todo o poder de outro, os princípios fundamentais de uma constituição livre estão subvertidos (MADISON, 1993, p. 333 apud COSTA, 2005, p. 42).
Nesse mesmo sentido sustenta Loewenstein (1965, passim apud KRELL, 0000, p. 89), que o “princípio da necessária separação de funções estatais segundo seus diversos elementos substanciais e sua distribuição entre diferentes detentores, nem é essencial para o exercício do poder político, nem apresenta uma verdade evidente e válida para todo o tempo”.
O que realmente deve prevalecer é que, em se tratando de direitos fundamentais, a preponderância do agir é do Judiciário. Paul Kirchhof, em tese sobre hermenêutica dos direitos fundamentais, afirma haver, paradoxalmente, mais interpretação nos órgãos que aplicam o direito do que naquele que decide sobre esses direitos.[4] Destarte, havendo morosidade por parte daqueles poderes na regulamentação de certo direito, resta autorizada a atuação subjetiva do Poder Judiciário.
Há de considerar-se ainda que, conforme MORAES (2011, p. 21-2), a possibilidade de ampliação interpretativa por parte da Suprema Corte dos Estados Unidos contribuiu para a consagração e efetivação de diversos direitos fundamentais, como por exemplo, o direito à privacidade (Griswold v. Connecticut) e ao aborto como continuação do direito à privacidade (Roe v. Wade).
Se se entender, consoante Hesse (1991, p. 22) que “a interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma”, e que o direito “têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida”, será possível também admitir que não é a regulamentação infraconstitucional de um direito fundamental, a existência de condições econômicas, ou a provisão de fundos que vai ser causa determinante da implementação desse direito, mas sim que, não se pode proporcionar satisfatoriamente a aplicação desse direito sem intervenção judicial. Considerando que o legislador valoriza os fatos e cria a norma, por si só juízo de valor, o que o hermeneuta coevo deve fazer é (re)valorar a norma para aplicá-la à situação concreta; mas essa valoração deve operar com subjetividade coletiva e não somente com a do intérprete.
Até mesmo um dos últimos e mais veneráveis kelsenianos parecia estar de acordo com esse entendimento. Para Bobbio (2011, p. 194), o problema das normas que são válidas, mas que não operam sua eficácia, pode ser resolvido se se deslocar a “perspectiva da norma singular para o ordenamento considerado no seu todo e afirmando que a eficácia é um caráter constitutivo do direito somente se com a expressão ‘direito’ nos referimos não à norma singular, mas ao ordenamento”. Mas na é só isso, é imprescindível que se reconheça que o direito hodierno não é somente aquele dado sob monopólio estatal, fechado e de natureza autopoiética, que regula as relações por meio da subsunção lógica, ao contrário, deve-se ver, consoante Miguel Reale (2002, p. 297), que “a lei é apenas instrumento de revelação do Direito” e que “não prevê tudo aquilo que a existência oferece no seu desenvolvimento histórico”. O direito não prescinde de construção, quer dizer, o direito não é algo que aí está, mas que precisa ser interpretado/construído na realidade; pois a interpretação é “o ser do direito; e o ser do direito é um devir” (QUEIROZ, 2012, p. 47).
Assim, supera-se o dogma da completude do direito, durante muito tempo “inútil e perigosa resistência à adequação do direito às exigências sociais” (BOBBIO, 2011, p. 282), e ao mesmo tempo reafirma-se a necessária presença do Juiz-intérprete.
Mas falta ainda desconstruir a tese daqueles que veem como simbólicas as normas de direitos fundamentais.[5] Só pelo fato de as constituições modernas estarem impregnadas de normas apenas aparentemente constitucionais (constitucionalidade formal), não implica dizer que seus preceitos não são dotados de eficácia jurídica e não possam ser demandados. A Constituição realiza um percurso do fato político à ordem jurídica, do poder constituinte ao poder constituído, estando essas estâncias interligadas; significa isso que “a dimensão política da Constituição não infirma seu caráter de norma jurídica, nem torna sua interpretação uma atividade menos técnica” (BARROSO, 2011, p. 222).
Na clássica lição de Loewenstein (1983, apud COSTA, 2005, p. 44) a nossa constituição é tida como nominal – observada quando o processo político dinâmico não está seguindo seus preceitos – pode ela, no entanto, por meio da pretensão de eficácia “imprimir ordem e conformação à realidade política e social”, mas para tanto, deve ela observar pressupostos existentes na natureza singular do presente (HESSE, 1991, p. 15-8). O que não se pode negar é o fato de que melhor ter uma norma que garanta um direito fundamental do que não ter norma alguma. Enfim, afirma Hesse (1991, p. 32) que também somos nós responsáveis por fazer a Constituição virar realidade, dado que “reconhecer os obstáculos é o movimento inicial para superá-los, tentando visualizar, no fenômeno da positivação, o efeito simbólico impulsionador de transformações sociais” (PAULINO, 2010, p. 122). Nessa conjuntura, a constituição serve de “um documento para a integração da comunidade na formação de consciência política” (BOTHE, 1990, p. 101 apud KRELL, 0000, p. 28-9).