O Direito Internacional Privado trata principalmente do conflito de leis originárias de Estados diferentes, estabelecendo regras para a opção entre as leis em conflito, sendo por isso um direito eminentemente nacional. Diante de uma situação jurídica conexa com duas ou mais legislações, que contêm normas diversas, conflitantes, ao Direito Internacional Privado não cabe solucionar o conflito das normas materiais internas, mas tão somente indicar qual sistema jurídico deve ser aplicado dentre as várias legislações conectadas com a hipótese jurídica.
Na Antiguidade, verifica-se um consenso na doutrina sobre a não existência do germe que culmina na gênese do Direito Internacional Privado. Para alguns, o termo que concluem
“deste panorama da Antiguidade é de que, não tendo os estrangeiros participação da vida jurídica, os direitos locais jamais entravam em choque com direitos estrangeiros, inexistindo possibilidade de conflito e, portanto, desconhecido o Direito Internacional Privado” (DOLINGER, 1997: p. 110).
“Contudo, várias circunstâncias ensejavam relações entre os povos, como as expedições militares, os embates guerreiros e, especialmente, o intercâmbio comercial”. (DEL'OLMO, 2014: p. 22) Podem ser percebidas tais circunstâncias no Pentateuco, nos convênios de ajuda judicial entre cidades gregas1.
Em Roma, havia, inicialmente, uma separação entre o direito que seria aplicado ao romano e ao estrangeiro, respectivamente o jus civile e o jus peregrinum. Contudo, o contato e a miscigenação entre romanos e peregrinos forçou o corpo jurídico romano a editar o jus gentium, para que tais relações fossem disciplinadas.
Há dissensão quanto ao jus gentium constituir uma iniciativa válida ou não do Direito Interncional Privado. Alguns autores, como Amílcar de Castro, citado por Dolinger, afirma que “o jus gentium era a negação do Direito Internacional privado, já que se destinava à direta apreciação de relações estabelecidas entre peregrinos, uns com os outros, ou entre romanos e peregrinos” (CASTRO opus cit. DOLINGER, 1997: p. 111), assumindo um caráter de Direito Uniforme, sendo um complexo de normas do direito material.
Outros, entretanto, cortejam com a ideia de que seria o jus gentium um embrião do Direito Internacional Privado:
“A doutrina moderna considera o direito uniforme como um dos métodos utilizados pela ciência que visa solucionar os conflitos de leis. Nesse espírito poderia dizer-se que quando os romanos formularam um sistema jurídico uniforme que passou a ser aplicado para as relações jurídicas entre romanos e peregrinos – e mais tarde para todos, inclusive romanos entre si, criaram efetivamente uma solução para os conflitos de leis, no que se descortinaria um primórdio do Direito Privado Internacional.” (DOLINGER, 1997: pp. 111-2)
Com a invasão dos bárbaros no Império Romano no final do séc. V, pessoas de diferentes línguas, raças e condições econômicas e sociais passaram a conviver todos num mesmo espaço, numa verdadeira salada cultural, provocando mudanças estruturais na sociedade europeia, refletindo-se, por óbvio, no cenário jurídico da época e instalando a personalidade das leis.
“Após a invasão dos bárbaros, suas normas jurídicas vão vigorar nos lugares dominados, com o que o caráter territorial das leis cede ao direito de sangue, o jus sanguinis. Acresça-se que os bárbaros, não conseguindo absorver as leis romanas, permitiam que cada um se regesse por suas próprias leis. Apenas em caso de conflito imperava a lei dos vencedores. Assim, vigiam lado a lado no mesmo espaço leis romanas, visigóticas, lombardas e bávaras, entre outras.” (DEL'OLMO, 2014: p. 24)
Pouco a pouco, a conservação das leis pelo costume dos povos vai esvanecendo diante da miscigenação dos 4 séculos posteriores, diante da miscigenação e das migrações. Além disso, a evolução do cenário socioeconômico, culminando com a consolidação do sistema feudal no século IX, põe fim a personalidade das leis e “instala-se o da territorialidade da lei (...). Submetidas as populações exclusivamente às leis vigentes em seus territórios, não se verificava conflitos de leis, daí inexistente na época feudal qualquer interesse pelo Direito Internacional Privado.” (DOLINGER, 1997: p. 113).
O feudalismo contudo não alcançou de forma contundente a Itália, notadamente no Norte, cujas cidades detinham elevado grau de soberania e reduziram a termo as diversas normas costumeiras que os regulavam. Como o intercâmbio comercial e industrial nestas cidades era intenso, o contato com pessoas dos mais diversos lugares também o era. Com isso, começou a surgirem demandas nas justiças locais envolvendo pessoas e estatutos de outras localidades. Qual o direito a aplicar?
Em decorrência desta problemática,
“estes estatutos e os conflitos que entre os mesmos se verificavam foram objeto da especulação dos estudiosos dos séculos XIV ao século XVII, períodos em que surgiram diversas teorias sobre as soluções a serem equacionadas para todo tipo de conflito, fruto do trabalho das denominadas estatutárias, em número de quatro. As primeiras três escolas estatutárias foram a italiana (séc. XIV), a francesa (séc. XVI) e a holandesa (séc. XVII).” (DOLINGER, 1997: p.115)
A escola italiana de sistematização estatutária foi inicialmente desenvolvida pelos glosadores, que realizavam comentários e notas explicativas ao Direito Romano, na tentativa de encontrar a melhor interpretação das leis dos antigos. Contudo, maior contribuição é percebida nos períodos posteriores a eles, nos séculos XIV e XV, denominado escola dos pós-glosadores ou comentaristas.
Os pós-glosadores definiram que as regras processuais deveria obedecer as leis do foro e as regras de fundo devem seguir a lei do local da prática do ato (locus regit actum), bem como os delitos a lei do lugar onde foi cometido (lex loci delicti).
Contudo, destacou-se entre os pós-glosadores o nome de Bártolo de Sassoferato, tido, por muitos, como o grande precursor do Direito Internacional Privado.
“Bártolo distinguiu entre os direitos reais e os direitos pessoais, noção importante para a elucidação de muitas questões em que ocorrem conflitos, como, por exemplo na sucessão do inglês que deixasse bens na sua terra e na Itália. (…) Bártolo estabeleceu que a lei do lugar do contrato é adotada para as obrigações dele emanadas, enquanto que a lei do lugar de sua execução rege as consequências da negligência ou da mora na execução; criou a teoria dos estatutos estrangeiros de caráter odioso, inaplicáveis no foro, origem da teoria da ordem pública do Direito Internacional Privado, e em matéria testamentária decidiu que as formalidades obedecem à lei do lugar onde elaborado o ato de última vontade.” (DOLINGER, 1997: p. 117)
Já a escola francesa, desenvolvida no século XVI, tem como principais contribuições a introdução da teoria da autonomia da vontade e a teoria do territorialismo. Charles Dumoulin foi o pai da teoria da autonomia da vontade. Antes do seu pensamento,
“Entendia-se que o fundamento para a aplicação da lei do lugar da assinatura do contrato para as questões de fundo derivava da presunção de que as partes, ao escolher um local, desejavam submeter-se às leis nele vigentes. Todavia ninguém se dera conta da consequência lógica deste fundamento, que acabou sendo formulada por Dumoulin, ao afirmar que se as partes desejarem, poderão perfeitamente escolher outra lei, como, por exemplo, a lei do local da situação do bem.” (DOLINGER, 1997: p. 118)
Já o genitor do territorialismo, Bernard D'Argentré, era um defensor da independência das Bretanha e defendia, dentro do contexto político a que se filiava, que as leis bretãs vigiam na Bretanha e não além, bem como as leis de fora não valeriam na Bretanha. Além disso,
“D’Argentré sistematiza a distinção entre o estatuto real (concernente aos bens), de caráter territorial e o estatuto pessoal (concernente à pessoa), hipertrofiando aquele em detrimento deste, que fica restrito às questões relativas à personalidade. Reconhecendo a impossibilidade de classificar todas as instituições nestas categorias, criou uma terceira, os estatutos mistos, em que integrou os estatutos que concernem às pessoas e às coisas conjuntameflte, aplicando a esta categoria as mesmas regras do que aos estatutos reais.” (DOLINGER, 1997: p. 120)
Influenciada pelos ideais de D'Argentré, a escola estatutária holandesa evoluiu o particularismo francês para um territorialismo ainda mais acentuado, desenvolvendo o conceito de comitas gentium, confeccionado por Ulrich Huber, onde a legislação estrangeira somente seria atendida no país da demanda por mera cortesia estendida ao outro país.
Após mais de um século sem ideias originais, o século XIX traz diversas novidades ao panorama do Direito Internacional Privado. “No século XIX, era típica a formação de Estados soberanos novos. Naquela época, intensificou-se a discussão entre os juristas quanto a determinar se uma nação deveria codificar o seu direito, e principalmente o seu direito privado. A tese vencedora, no entanto, foi aquela da codificação.” (RECHSTEINER, 2012: p. 260). Pari passu, surgem os principais nomes da doutrina do moderno Direito Internacional Privado: Story, Savigny e Mancini
Joseph Story foi o grande sistematizador do Direito Internacional Privado, sendo o primeiro a utilizar este termo. Influenciado pelo conceito de comitas holandês, substituiu a noção de cortesia pela necessidade da boa justiça ser aplicada ao caso concreto. Em um resumo das questões abordadas por Story, feita por ele mesmo, em palestra proferida em Harvard, 1829,
“figuram a da fixação do domicílio no estrangeiro, dos casamentos, divórcios e dos crimes que contêm um elemento de estraneidade; as questões dos testamentos e das sucessões; das liberalidades e dos contratos; do efeito da prescrição estrangeira, do processo estrangeiro e dos julgamentos estrangeiros. E também, de forma incidental, a questão da natureza e da extensão do poder de jurisdição dos tribunais na administração de justiça aos estrangeiros e sobre o valor e o efeito a ser reconhecido às ordens dos tribunais estrangeiros.” (DOLINGER, 1997: p. 124)
Friedrich Carl Von Savigny foi um crítico do territorialismo de Huber e seguidores e buscou estabelecer os limites do império das regras de direito no tempo e no espaço, sendo um grande inovador do Direito Internacional Privado.
Para Savigny,
“o ponto de partida para a avaliação de uma relação jurídica com conexão internacional é basicamente esta e não uma lei ou um outro tipo de norma. (…) Com esse teor, cada relação jurídica possui a sua própria sede (Sitz des Rechtsverhältnisses), à qual pertence, segundo a sua própria natureza. Essa situação enseja, também, a aplicação do direito estrangeiro, que deve ser equiparado, em princípio, ao direito interno, com exceção daquelas normas de natureza rigorosamente positiva e cogente (Gesetze von streng positiver, zwingender Natur).” (RECHSTEINER, 2012: p. 258)
Assim, o objetivo do Direito Internacional Privado deve ser a harmonia internacional das decisões, orientando-se conforme as exigências da comunidade dos povos, excetuando-se, além das normas positivas e cogentes, aquelas que são contrárias ao ordenamento interno de cada nação.
Por fim, temos o italiano Pasquale Mancini que também defendeu uma comunidade de direito superior a vontade soberana dos Estados e da dependência da mera cortesia, devendo as decisões no plano internacional se guiarem pelo rigoroso dever de justiça internacional. Além disso, repousou sua doutrina com base em três vetores:
“a razão do primeiro princípio é o elemento de conexão da nacionalidade, que é o elemento de conexão dominante na doutrina de Mancini. O princípio da liberdade se refere ao direito das partes de escolherem livremente o direito aplicável dentro dos limites traçados pela lei (princípio da autonomia da vontade das partes). Todavia, se, conforme os dois princípios supramencionados, for aplicável o direito estrangeiro, este não será aplicado quando ofender a ordem pública, ou seja, contrariar interesses da soberania do Estado” (RECHSTEINER, 2012: p. 260)
A repercussão da doutrina de Mancini influenciou diversas legislações nacionais, bem como as primeiras convenções internacionais, elaboradas nas Conferências de Haia de Direito Internacional Privado, estando claramente delineada no Código Bustamante.
É possível afirmar que Joseph Story, Friedrich Carl von Savigny e Pasquale Stanislao Mancini foram os juristas de maior prestígio no início da história moderna do direito internacional privado. Mas, além desses nomes, surgiram outros, em todas as partes do mundo, tendo contribuído com as suas pesquisas doutrinárias para a evolução do direito internacional privado. A doutrina, aliás, é considerada na nossa disciplina uma verdadeira fonte de direito. Os trabalhos dos mais conceituados juristas do direito internacional privado influenciaram a evolução da nossa disciplina até os nossos dias, tanto pela jurisprudência dos tribunais quanto mediante os trabalhos preparatórios de convenções internacionais e de legislações novas de direito internacional privado nos diversos Estados. (RECHSTEINER, 2012: p. 260)
BIBLIOGRAFIA
DEL'OLMO, Florisbal de Souza. Curso de direito internacional privado., 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: parte geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado: teoria e prática. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.