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A interpretação do Direito Administrativo face aos princípios que o orientam

Agenda 27/03/2004 às 00:00

1.INTRODUÇÃO

As leis positivas na medida em que são formuladas em termos gerais, em linguagem clara e precisa, porém amplas, sem minúcias, torna necessário a intervenção do interprete no processo de aplicação da norma jurídica, para que, com fundamento nos pressupostos fornecidos pela hermenêutica e da pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto extraia o sentido apropriado da norma para a vida real, e conducente a uma decisão correta.

Nessa esteira, é necessário fixarmos alguns conceitos que serão indispensáveis para a exata compreensão do tema a ser desenvolvido neste artigo ou, mais precisamente, o significado dos termos: hermenêutica jurídica, interpretação e aplicação do direito.

A hermenêutica jurídica é um domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação, o estudo e a sistematização dos princípios e regras de interpretação do direito. Hermenêutica é a teoria da interpretação das leis.

Interpretação é atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto. Nas palavras de Carlos Maximiliano (2002:7), "interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém".

A aplicação de uma norma jurídica é o momento final do processo interpretativo, sua concretização, pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato.

Esses três conceitos são marcos do itinerário intelectivo que leva à realização do direito. Nesses termos, é possível afirmar que "toda norma jurídica, seja clara ou obscura, precisa ser interpretada, pois não se deve confundir, a interpretação com dificuldade de interpretação (FERRARA, 1987: 150)".

Dessa forma, a parêmia latina in claris cessat interpretatio não pode mais ser aceita, pois tanto as leis claras como as ambíguas comportam interpretação. Nesse sentido, bastante convincente são os dizeres de Degni:

"A clareza de um texto legal é coisa relativa. Uma mesma disposição pode ser clara em sua aplicação aos casos mais imediatos e pode ser duvidosa quando se aplica a outras relações que nela possam enquadrar e às quais não se refere diretamente, e a outras questões que, na prática, em sua atuação, podem sempre surgir. Uma disposição poderá parecer clara a quem a examinar superficialmente, ao passo que se revelará tal a quem a considerar nos seus fins, nos seus precedentes históricos, nas suas conexões com todos os elementos sociais que agem sobre a vida do direito na sua aplicação a relações que, como produto de novas exigências e condições, não poderiam ser consideradas, ao tempo da formação da lei, na sua conexão com o sistema geral do direito positivo vigente (apud DINIZ, 2002: 145-146)."


2.MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO

Há consenso entre a generalidade dos autores de que a interpretação, a despeito da pluralidade de elementos que devem ser tomados em consideração, é una. Nenhum método deve ser absolutizado: os diferentes meios empregados ajudam-se uns aos outros, combinando-se e controlando-se reciprocamente.

Assim, "não basta conhecer as regras aplicáveis para determinar o sentido e o alcance dos textos. Parece necessário reuni-las e, num todo harmônico, oferecê-las ao estudo, em um encadeamento lógico (MAXIMILIANO, 2002:4)".

Destarte, não obstante os métodos clássicos de interpretação, que remontam ao magistério de Savigny, fundador da Escola Histórica do Direito, em que, em seu Sistema, de 1840, distinguiu os métodos gramatical, sistemático, histórico e teleológico, o ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios do direito administrativo, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia do ordenamento jurídico, seus postulados básicos e seus fins.

A atividade de interpretação deve começar pela identificação dos princípios maiores que regem o tema a ser apreciado, do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie.

Assim, a interpretação do Direito Administrativo serve-se de alguns princípios próprios e apresenta especificidades e complexidades que lhe são peculiares. Todavia isso não a exclui do espectro de incidência da interpretação geral do direito, de cuja natureza e características partilha. Tal inferência se impõe, à vista do princípio da unidade da ordem jurídica e do conseqüente caráter único de sua interpretação.

Nesse diapasão, é importante registrar que "a doutrina converge no sentido de que as normas sobre interpretação, ainda quando constantes do Código Civil ou de um texto que se lhe anteponha, reveste-se de cunho materialmente constitucional" (BARROSO, 2002:105).

Nesse ponto, sem perdemos de vista o objetivo específico de nosso trabalho – enfocarmos a interpretação do direito administrativo face aos princípios que o orientam -, faremos uma breve análise dos métodos de interpretação do direito.

Com efeito, de acordo com a técnica gramatical (literal, semântica ou filológica) o hermeneuta procurará o sentido literal do texto normativo, buscando as regras da gramática e da lingüística, examinará o aplicador ou intérprete cada termo do texto normativo, isolada ou sistematicamente, atendendo à pontuação, colocação dos vocábulos, origem etimológica etc., para, ao final, formular os significados que possa ter o preceito analisado. "Na feliz formulação de Karl Larenz, ela consiste na compreensão do sentido possível das palavras, servindo esse sentido como limite da própria interpretação" (Barroso, 2002: 126-127).

No que pertine ao processo lógico, "o que se pretende é desvendar o sentido e o alcance da norma, estudando-a por meio de raciocínios lógicos, analisando os períodos da lei e combinando-os entre si, com o escopo de atingir perfeita compatibilidade" (DINIZ, 2002:156-157).

A técnica interpretativa histórica funda-se na análise dos antecedentes da norma, pesquisando todo o seu itinerário legislativo, às circunstâncias fáticas que a predeceram e lhe deram origem, às causas ou necessidades que induziram o órgão a elaborá-la. Essa investigação é bastante útil a fim de captar o exato significado das normas (ratio legis) e os resultados que tencionam alcançar.

Por sua vez, no processo sistemático, o intérprete partindo do pressuposto que o sistema jurídico não se compõe de um único sistema normativo, mas de vários, que constituem um conjunto harmônico e interdependente, considerará o sistema em que se insere a norma, relacionando-a com outras normas concernentes ao mesmo objeto. Deve-se, por conseguinte, cotejar o texto normativo, em análise, com outros do mesmo diploma legal ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto, pois por umas normas pode-se desvendar o sentido de outras. Examinando o conjunto das normas é possível desvendar o sentido de cada uma delas.

Por fim, o processo teleológico objetiva adaptar a finalidade da norma às novas exigências sociais. "A técnica teleológica, assentado que o escopo e a razão da lei são indicados pelas exigências sociais, conduz à compreensão de que o fim prático da norma coincide com o fim apontado pelas exigências sociais (fim social, tendo em vista o bem comum. (DINIZ, 2002: 160))".

Com efeito, delineado os contornos dos métodos interpretativos clássicos e levando em consideração há impossibilidade de se estabelecer uma hierarquização segura das múltiplas técnicas de interpretação – uma vez que elas não operam de forma isolada, mas, ao revés, se complementam -, doravante, analisar-se-ão as peculiaridades da técnica interpretativa no Direito Administrativo.


3. OS PRINCÍPIOS E A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

É importante assinalar, seguindo o entendimento de Luís Roberto Barroso (2002: 149), "que já se encontra superada a distinção que outrora se fazia entre norma e princípio. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as norma-princípio e as norma-disposição. As normas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já às normas-princípio, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema".

Nesse ponto, para tentarmos aclarar a diferença entre princípios e regras, é importante destacarmos os seguintes aspectos. A uma, as regras jurídicas são aplicáveis por completo ou não são, de modo absoluto, aplicáveis. Trata-se de um tudo ou nada. Desde que os pressupostos de fato aos quais a regra se refira se verifiquem, em uma situação concreta, e sendo ela válida, em qualquer caso há de ser ela aplicada. Já os princípios jurídicos atuam de modo diverso: mesmo aqueles que mais se assemelham às regras não se aplicam automática e necessariamente quando as condições previstas como suficiente para sua aplicação se manifestam. A duas, os princípios possuem uma dimensão que não é própria das regras jurídicas: a dimensão do peso ou importância. Assim, quando se entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um deles. De outra banda, em caso de conflito de regras não podemos dizer que uma norma-disposição é mais importante do que a outra, de sorte que deverão ser aplicadas as regras dirimentes ordinárias dos conflitos de lei.

Registradas tais diferenças, é importante assinalar que não há entre os princípios e regras hierarquia no sentido normativo. Isso não impede, todavia, que normas da mesma hierarquia tenham funções distintas dentro do ordenamento.

Aos princípios cabe, além de uma ação imediata, quando diretamente aplicáveis a determinada relação jurídica, uma outra, de natureza mediata, que é a de funcionar como critério de interpretação e integração. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos. Dessa forma, podem-se indicar as três funções principais dos princípios:

1.impedir a criação de regras contrárias ao princípio;

2.amoldar a interpretação das regras;

3.aplicação direta ao caso concreto ante a inexistência de regras.

Nesse sentido, leciona Geraldo Ataliba (1985:6):

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Mesmo no nível constitucional, há uma ordem que faz com que as regras tenham sua interpretação e eficácia condicionada pelos princípios. Estes se harmonizam, em função da hierarquia entre eles estabelecida, de modo a assegurar plena coerência interna do sistema. Cuida-se, aqui, de hierarquia substancial, diversa da hierarquia puramente formal, que resulta dos critérios de distribuição de competências entre os órgãos do Estado..

Os princípios do direito administrativo consubstanciam as premissas básicas de um dado regime jurídico administrativo. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos.

Assim, podemos compreender o significado do termo princípio, seguindo o ensinamento de Bandeira de Mello (2000:747-748), da seguinte forma:

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

Registre-se, ainda, o seguinte entendimento de José Joaquim Gomes Canotilho, fundamental para podermos sustentar a eficácia dos princípios que se encontram em estado de latência no sistema jurídico positivo.

Os princípios constitucionais fornecem sempre diretivas materiais de interpretação das normas constitucionais. E, mais, os princípios beneficiam de (1) uma objetividade e presencialidade normativa que os dispensa de estarem consagrados expressamente em qualquer preceito particular (por ex., não era pelo fato de CRP em 1976 não ter consagrado o princípio do Estado de Direito que ele deixava de ter presença normativa e valor constitucional, dado que ele podia deduzir-se de vários preceitos constitucionais); (2) os princípios carecem de uma mediação semântica mais intensa, dada a sua idoneidade normativa irradiante ser, em geral, acompanhada por uma menor densidade concretizadora (por ex.: o princípio democrático pode ser esgrimido com o princípio de interpretação, mas, em geral, ele está concretizado em outras normas da Constituição). (Direito Constitucional, 3 ª edição, Almedina, Coimbra, 1983, p. 199-200).

Em outros termos, professa Barroso (2002:151-152) sobre os princípios em estado de latência no ordenamento jurídico:

Os grandes princípios de um sistema jurídico são normalmente enunciados em algum texto de direito positivo. Não obstante, e sem pretender enveredar por discussão filosófica acerca de positivismo e jusnaturalismo, tem-se, aqui, como fora de dúvida que esses bens sociais supremos existem fora e acima da letra expressa das normas legais, e nelas não se esgotam, até porque não têm caráter absoluto e se encontram em permanente estado de mutação. No comentário de Jorge Miranda, ‘o Direito nunca poderia esgotar-se nos diplomas e preceitos constantemente publicados e revogados pelos órgão do poder’.

Nesse diapasão, torna-se fundamental trazer a lume o ensinamento de Judith Martins-Costa (2000: 319) acerca deste tema que, ainda, apresenta-se inçado de dúvidas na doutrina e na jurisprudência:

A validade no sistema é atribuída mesmo aos princípios inexpressivos, do que decorre uma outra classificação. Superado o direcionamento doutrinário que conotava ao termo princípios a idéia de implicitude ou latência – vale dizer, o que pleiteava a reserva do emprego do termo apenas para os princípios inexpressos no ordenamento, de onde seriam retirados abstratamente das normas particulares expressas –, admite-se hoje que cada ordenamento jurídico inclui duas espécies de princípios: aqueles que vêm expressos por dicção legislativa e os que estão (ainda) inexpressos ou implícitos, sendo recolhidos, retirados ou formulados por dicção judicial.

Com efeito, solapadas as dúvidas acerca da eficácia dos princípios em estado de latência no ordenamento jurídico, é insofismável destacar, que conforme afirma Hely Lopes (2002: 47), "no Direito Administrativo, como ramo do Direito Público, nem todos os princípios de hermenêutica do direito privado lhe são aplicáveis. A diversidade do seu objeto, a natureza específica de suas normas, os fins sociais a que elas se dirigem, o interesse público a que ela visa sempre tutelar, exigem regras próprias de interpretação e aplicação das leis, atos e contratos administrativos".

Nessa esteira de raciocínio, para que possamos propriamente precisar as peculiaridades impostas pelos princípios de Direito Administrativo sobre a interpretação da matéria, é necessário sistematizarmos os princípios administrativos conforme o seu grau de destaque no âmbito do regime jurídico administrativo e sua conseqüente abrangência. Aos princípios calha a peculiaridade de se irradiarem pelo sistema normativo, repercutindo sobre outras normas administrativas e daí se difundindo para os diversos escalões normativos. Nem todos os princípios, no entanto, possuem o mesmo raio de atuação. Eles variam na amplitude de sua aplicação e mesmo na sua influência. Dividem-se, assim, em princípios fundamentais, princípios gerais e princípios setoriais

Os princípios fundamentais são os que conferem identidade ao Direito Administrativo conferindo-lhe coerência e unidade, fazendo com que possa ser identificado um regime jurídico-administrativo com as peculiaridades que lhe sejam inerentes. Nesses termos, dispõe Bandeira de Mello (2000:26):

Acredita-se que o progresso do Direito Administrativo e a própria análise global de suas futuras tendências dependem, em grande parte, da identificação das idéias centrais que o norteiam na atualidade, assim como da metódica dedução de todos os princípios subordinados e subprincípios que descansam, originariamente, nas noções categoriais que presidem sua organicidade.

A essas noções categoriais do Direito Administrativo, que irão compor o núcleo de seu regime jurídico-administrativo, podemos afirmar trata-se dos princípios fundamentais da disciplina, quais sejam: a supremacia do interesse público sobre o particular e a indisponibilidade, pela administração, dos interesses públicos. Esses princípios são realçados pelas suas repercussões no ordenamento jurídico administrativo, uma vez que a partir deles é possível extrair as prerrogativas e sujeições a que se submetem os gestores da Administração Pública.

Os princípios administrativos gerais, embora não integrem o núcleo do regime jurídico administrativo, são, normalmente, importantes especificações dos princípios fundamentais. Apresentam um menor grau de abstração e possibilitam, em muitos casos, a tutela imediata das situações jurídicas que contemplam. São exemplos dos princípios gerais: o princípio da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência.

E, por último, os princípios setoriais, que são os que presidem um específico conjunto de normas afeto a determinado tema do direito administrativo. Eles se irradiam limitadamente, mas no seu âmbito de atuação são supremos. Podem ser assim agrupados:

I – Administração Pública:

a) Segurança Jurídica;

b) Motivação;

c) Ampla defesa e contraditório;

d) Presunção de legitimidade e veracidade;

e) Especialidade;

f) Controle ou tutela;

g) Autotutela;

h) Hierarquia;

i) Razoabilidade e Proporcionalidade:

II - Atos administrativos:

a) Presunção de legitimidade e veracidade;

b) Imperatividade;

c) Auto-executoriedade;

d) Tipicidade.

III – Licitação:

a) Igualdade;

b) Legalidade;

c) Impessoalidade;

d) Moralidade e probidade;

e) Publicidade:

f) Vinculação ao instrumento convocatório;

g) Julgamento objetivo;

h) Adjudicação compulsória;

i) Ampla defesa;

j) Obrigatoriedade da licitação.

IV - Serviços Públicos:

a) Continuidade do serviço público;

b) Generalidade;

c) Eficiência;

d) Modicidade;

e) Cortesia.

V- Responsabilidade do Estado:

a) Responsabilidade Objetiva.

VI - Processo Administrativo:

a) Publicidade;

b) Oficialidade;

c) Obediência à forma e aos procedimentos;

d) Gratuidade;

e) Ampla defesa e contraditório;

f) Atipicidade;

g) Pluralidade de instâncias;

h) Economia processual;

i) Participação popular.

Delineado esse amplo quando dos princípios que informam o direito administrativo, que funcionam como balizas para nortear a atividade do intérprete, neutralizando o subjetivismo dos sentimentos pessoais e das conveniências políticas, reduzindo a discricionariedade dos gestores públicos e impondo-lhes o dever de motivar as suas decisões, passa-se a analisar de forma específica os seguintes princípios administrativos, que devem necessariamente ser levados em consideração no momento de ser interpretado as disposições do direito administrativo:

1.supremacia do interesse público sobre o interesse privado;

2.indisponibilidade dos interesses públicos pela Administração;

3.a presunção de legitimidade dos atos da Administração;

4.a necessidade de poderes discricionários para a Administração atender ao interesse público.

3.1. Supremacia do interesse público sobre o interesse privado

Para que possa ser entendido esse princípio, é preciso que inicialmente fixemos o conceito de interesse público. Para tanto, insta reconhecer que quando pensamos em interesse público, intuitivamente – ou de acordo com o senso comum -, temos por confrontá-lo com o interesse privado, isto é, ao interesse pessoal de cada um.

Contudo, ao se analisá-lo de uma forma mais aprofundada, percebemos que não é possível atribuir um status autônomo ao interesse público, como se fosse uma categoria que existisse por si só, ou seja, uma realidade independente e estranha aos interesses das partes. Em verdade, para compreendermos qual o conceito de interesse público é necessário partirmos da seguinte lição de Bandeira de Mello (2000:58):

Ë que, na verdade, o interesse público, o interesse do todo, do conjunto social, nada mais é do que a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto se abrigando também o depósito intertemporal destes mesmos interesses, vale dizer, já agora, encarados eles em sua continuidade histórica, tendo em vista a sucessividade das gerações de seus nacionais.

...

O que fica visível, como fruto destas considerações, é que existe, de um lado, o interesse individual, particular, atinente às conveniências de cada um no que concerne aos assuntos de sua vida particular – interesse, este, que é o da pessoa ou grupo de pessoas singularmente consideradas -, e que, de par com isto, existe também o interesse igualmente pessoal destas mesmas pessoas ou grupos, mas que comparecem enquanto partícipes de uma coletividade maior na qual estão inseridos, tal como nela estiveram os que os precederam e nela estarão os que visam sucedê-los nas gerações futuras.

Registrados esses ensinamentos, podemos conceituar o interesse público como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem.

Nessa esteira de intelecção, podemos afirmar que no Direito Público, há a supremacia do Poder Público sobre os cidadãos, dada a prevalência dos interesses coletivos sobre os individuais. Dessa desigualdade originária entre a Administração e os particulares, resultam inegáveis prerrogativas para o Poder Público, que não podem ser desconhecidas nem desconsideradas pelo intérprete ou aplicador das regras e princípios desse ramo do Direito. Sempre que entrarem em conflito o direito do indivíduo e o interesse da comunidade, há de prevalecer este, uma vez que o objetivo primacial da Administração é o bem-comum. Ao aplicador da lei compete interpretá-la de modo a estabelecer o equilíbrio entre os privilégios estatais e os direitos individuais, sem perder de vista aquela supremacia. Nesse sentido, é importante trazer a baila o ensinamento de Di Pietro (2000:69):

Apesar das críticas a esse critério distintivo (direito privado, normas de interesse individual; direito público, normas de interesse público), que realmente não é absoluto, algumas verdades permanecem: em primeiro lugar, as normas de direito público, embora protejam reflexamente o interesse individual, têm o objetivo primordial de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo. Além disso, pode-se dizer que o direito público somente começou a se desenvolver quando, depois de superados o primado do direito civil (que durou muitos séculos) e o individualismo que tomou conta dos vários setores da ciência, inclusive do Direito, substitui-se a idéia do homem como fim único do direito (própria do individualismo) pelo princípio que hoje serve de fundamento para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões: o de que os interesses públicos têm supremacia sobre os individuais.

Dessa forma, as prerrogativas conferidas à Administração Pública para que possa realizar seu mister de dar prevalência aos interesses públicos sobre os individuais, devem ser objeto de ponderação e servir como um pressuposto para se analisar qualquer norma administrativa, uma vez que tais prerrogativas são confiadas aos gestores públicos para que possam implementar e materializar o interesse público nas mais diversas situações.

4.2. Indisponibilidade dos interesses públicos pela Administração;

Ressaltado que o interesse público não é uma categoria autônoma de interesse, mas sim a dimensão coletiva dos interesses individuais, resulta que os administradores públicos gerem interesses alheios - vez que o titular desses interesses é a sociedade e não a figura dos gestores públicos – e, por conseguinte, não podem dispor de um interesse que não lhes pertencem. Assim, o próprio órgão da Administração que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que é também um dever – na estrita conformidade do que determinar a norma jurídica.

Destarte, o princípio da indisponibilidade dos interesses públicos vai servir como um contraponto ao princípio da superioridade dos interesses públicos sobre os particulares, uma vez ao jungir o administrador público a agir em estrita conformidade com o que dispuser a lei – princípio da legalidade – salvaguarda os interesses dos administrados contra possíveis desmandos na gestão da coisa pública. Nesse sentido leciona Di Pietro (2000: 65):

Mas, ao lado das prerrogativas, existem determinadas restrições a que está sujeito a Administração, sob pena de nulidade do ato administrativo e, em alguns casos, até mesmo de responsabilização da autoridade que o editou. Dentre tais restrições citem-se a observância da finalidade pública,bem como os princípios da moralidade administrativa e da legalidade, a obrigatoriedade de dar publicidade aos atos administrativos e, como decorrência dos mesmos, a sujeição à realização de concursos para seleção de pessoal e de concorrência pública para elaboração de acordos com particulares.

Ao mesmo tempo em que as prerrogativas colocam a Administração em posição de supremacia perante o particular, sempre com o objetivo de atingir o benefício da coletividade, as restrições a que está sujeita limitam a sua atividade a determinados fins e princípios que, se não observados, implicam desvios de poder e conseqüente nulidade dos atos da Administração.

Com efeito, ao se partir do pressuposto que um dos fundamentos do Estado de Direito é a submissão de todos – governantes e governados – ao império da lei, ressalta-se a importância do princípio da indisponibilidade dos interesses públicos pela administração, uma vez que tal mandamento nuclear será de fundamental importância na atividade interpretativa do aplicador do direito para que possa por fim a possíveis abuso e desvios de poder que maculariam não só os interesses e direitos individuais, mas, principalmente, o estado de direito.

4.3. Presunção de legitimidade dos atos administrativos

A presunção de legitimidade dos atos administrativos, embora relativa, dispensa a Administração da prova da legitimidade de seus atos na atividade pública. Presumida a legitimidade, cabe ao particular provar o contrário, demonstrando cabalmente que a Administração Pública obrou fora ou além do permitido em lei, isto é, com ilegalidade flagrante ou dissimulada sob a forma de abuso ou desvio de poder.

Tal presunção é de fundamental importância para atender o interesse público – que é o norte da Administração Pública – uma vez que possibilita celeridade no cumprimento dos atos administrativos. Assim, na atividade interpretativa há que ser sempre levado em consideração, que até prove em contrário, o ato administrativo é válido, devendo ser cumprido e respeitado pelos seus destinatários até a declaração de sua invalidade pelo Judiciário ou pela própria Administração.

Nas palavras de Cassagne (apud Maria Sylvia Zanella Di Pietro, 2000:183):

A presunção de legitimidade constitui um princípio do ato administrativo que encontra seu fundamento na presunção de validade que acompanha todos os atos estatais, princípio em que se baseia, por sua vez, o dever do administrado de cumprir o ato administrativo. Se não existisse esse princípio, toda a atividade administrativa seria diretamente questionável, obstaculizando o cumprimento dos fins públicos, ao antepor um interesse individual de natureza privada ao interesse coletivo ou social, em definitivo, o interesse público.

4.4. A necessidade de poderes discricionários para a Administração atender ao interesse público

O quarto princípio é o de que a Administração Pública precisa e se utiliza freqüentemente de poderes discricionários na prática rotineira de suas atividades. Esses poderes não podem ser recusados ao administrador público, embora devam ser interpretados restritivamente quando colidirem com os direitos individuais dos administrados. Reconhecida a existência legal da discricionariedade administrativa, cumpre ao intérprete e aplicador da lei delimitar seu campo de atuação, que é o do interesse público - bem assim, reconhecer que a discricionariedade é sempre relativa, uma vez que a competência, a finalidade e a forma serão elementos do ato administrativo sempre vinculados. A finalidade pública, o bem-comum, o interesse da comunidade é que demarcam o poder discricionário da Administração. Extravasando desses lindes, o ato administrativo descamba para o arbítrio, e o próprio Direito Administrativo lhe nega validade, por excesso ou desvio de poder.

A discricionariedade é, segundo os ensinamentos de Bandeira de Mello (2000:761), "a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente".

A autoridade judiciária comum deve sempre poder examinar se a Administração exerceu seu poder discricionário como estava obrigada a fazê-lo, isto é, se agiu de modo a alcançar o fim para o qual esse poder lhe havia sido concedido, se escolheu meios idôneos para conseguí-lo, ou se, e pelo contrário, causou danos a terceiros, por ignorância ou por errônea apreciação das condições técnicas ou administrativas normais, ou se por ter procedido de modo inadequado, deliberando ou resolvendo, ou por ter ocasionado prejuízos ou lesões de interesse em maior escala do que aquela que podia ser predeterminada, mediante cuidadosa previsão, ou por deixar-se levar por motivos errôneos e não pertinentes ao caso, ou por haver feito uma errônea apreciação das circunstâncias de fato, ou por haver decidido sem suficiente notícia das mesmas. Todas estas condições entram no exame da pura legitimidade da ação administrativa; em nenhuma delas a apreciação se refere ao mérito, ou seja, não implicam um juízo de conveniência e oportunidade. Se tal competência for negada à autoridade judiciária e se continuar sendo proclamada a não revisão do exercício do poder discricionário da Administração Pública, acabar-se-á por deixar caminho livre às providências que assumem o deplorável caráter de despotismo administrativo e podem comprometer o prestígio - que há de ser mantido, pelo contrário, zelosamente intacto- daquele organismo estatal como atento promotor dos interesses da coletividade, não os separando do que concerne a cada indivíduo.

Na mesma linha de raciocínio, dispõe Bandeira de Mello (2000:765) que, "nada há que de surpreendente, então, em que o controle judicial dos atos administrativos, ainda que praticados em nome de alguma discrição, se estenda necessária e insuperavelmente à investigação dos motivos, da finalidade e da causa do ato. Nenhum empeço existe a tal proceder, pois é meio – e, de resto, fundamental – pelo qual se pode garantir o atendimento da lei, a afirmação do direito".

Ressalte-se assim, que, o não pode ocorrer é o Poder Judiciário substituir o administrador e fazer as opções que a lei faculta tão somente à Administração. Não pode, assim, substituir a emissão do mérito administrativo, que é o juízo de conveniência e oportunidade de se realizar o ato administrativo discricionário, uma vez que o julgamento sob o ângulo da conveniência do ato administrativo usurpa competência da administração.

Há que se distinguir brevemente a discricionariedade da aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados. A lição de Eduardo Garcia de Enterria (1990: 150-151) é bastante esclarecedora:

A discricionariedade é essencialmente uma liberdade de eleição entre alternativas igualmente justas, ou, se se prefere, entre indiferentes jurídicos, porque a decisão se fundamenta em critérios extrajurídicos (de oportunidade, econômicos, etc...), não incluídos na lei e remetidos ao julgamento subjetivo da Administração. Pelo contrário, a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados é um caso de aplicação da lei, já que se trata de subsumir a uma categoria legal (configurada, não obstante sua imprecisão de limites, com a intenção de demarcar uma hipótese concreta) umas circunstâncias reais determinadas, justamente por isso é um processo regulado, que se esgota no processo intelectivo de compreensão de uma realidade no sentido que o conceito legal indeterminado tem pretendido, processo no qual não interfere nenhuma decisão da vontade do aplicador, como é próprio de quem exerce uma potestade discricional.

No mesmo sentido, anote-se o ensinamento de Judith Martins-Costa (2000: 326):

Ocorre que os conceitos formados por termos indeterminados integram, sempre, a descrição do fato em exame com vistas à aplicação do direito. Embora permitam, por sua vagueza semântica, abertura às mudanças de valorações (inclusive as valorações semânticas) –devendo, por isso, o aplicador do direito averiguar quais são as conotações adequadas e as concepções éticas efetivamente vigentes, de modo a determiná-los in concreto de forma apta -, a verdade é que, por se integrarem na descrição do fato, a liberdade do aplicador se exaure na fixação da premissa. Por essa razão, uma vez estabelecida in concreto, a coincidência ou não-coincidência entre o acontecimento real e o modelo normativo, a solução estará, por assim dizer, predeterminada. O caso é, pois, de subsunção. Não haverá, aí, "criação do direito" por parte do juiz, mas apenas interpretação.

Assim, embora Celso Antônio Bandeira de Mello entenda que a aplicação de conceito jurídico indeterminado é uma discricionariedade mais limitada, consideramos que não se trata de discricionariedade mas de vinculação.

Com efeito, esposado em linhas gerais os contornos do princípio da discricionariedade e levando-se em consideração a importância de se controlar e de se reduzir a margem de liberdade do gestor público na edição de atos administrativos e na formulação de políticas públicas, torna-se de fundamental importância para o intérprete das normas de direito administrativo que se atenham de forma profunda no cotejo dos atos discricionários para que a partir do exame dos seus elementos vinculados e dos demais princípios que informam o direito administrativo e o ordenamento jurídico possam resguardar os direitos dos administrados e, principalmente, velar pela indisponibilidade dos interesses públicos pela Administração.


5. CONCLUSÃO

Ressaltado a importância dos princípios para conferir o caráter de organicidade e de unidade a um sistema jurídico, bem assim, delineado os principais princípios que informam o direito administrativo, em suas diferentes categorias – princípios fundamentais, princípios gerais e princípios setoriais -, resta ao interprete e ao aplicador do direito conscientizarem-se da imprescindibilidade de se agregar aos métodos clássicos de interpretação do direito um sólido estudo acerca do instituto jurídico, denominado princípio. Para que, compreendidos os contornos e a importância dos princípios jurídicos na dogmática moderna, efetuem uma releitura dos métodos interpretativos que deverão ter, a partir de agora, como ponto de partida o exame dos princípios – em suas diferentes espécies - que informam o direito administrativo.


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Notas

01 Seguindo os ensinamentos de Bandeira de Mello (2000: 59).

02 Auto-executoriedade dos atos administrativos, autotutela, o poder de expropriar, o de requisitar bens e serviços, o de ocupar temporariamente o imóvel alheio, o de instituir servidão, o de aplicar sanções administrativas, o de alterar e rescindir unilateralmente os contratos, o de impor medidas de polícia, a imunidade tributária, prazos dilatados em juízo, juízo privativo, processo especial de execução, presunção de veracidade de seus atos, entre outras prerrogativas.

03 Liberdade no sentido de editar atos que não possam ser apreciados pelo Poder Judiciário.

Sobre o autor
Erick Menezes de Oliveira Junior

Advogado. Procurador Jurídico do Município de Vitória da Conquista. Professor de Direito Internacional Público e Privado da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA JUNIOR, Erick Menezes. A interpretação do Direito Administrativo face aos princípios que o orientam. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 263, 27 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5010. Acesso em: 22 nov. 2024.

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