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Normas constitucionais inconstitucionais

(Verfassungswidrige Verfassungsnormen)

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Agenda 01/04/2004 às 00:00

Escorada no sentimento de justiça que deve permear toda a sociedade, a norma constitucional só será legítima se ela mesma respeita esses valores. A preservação do Estado de Direito coloca-se na necessidade de garantir um mínimo existencial de justiça a todos, sem discriminações.

"I went to the woods because I wanted to live deliberately... I wanted to live deep and suck out all the marrow of life! To put to rout all that was not life and not, when I came to die, discover that I had not lived."

By Henry David Thoreau

SUMÁRIO: I – Introdução histórica; II – A Constituição e o Ordenamento Jurídico; III – As incompatibilidades; III.1 – As antinomias – conflito de normas; III.2 – A colisão de princípios; III.3 – As incoerências – conflitos de valor; IV – Inconstitucionalidade e ilegitimidade; V – A Ordem de Valores Supralegais; V.1 – O Conceito de Valor; VI – Direito constitucional escrito; VI.1 – Norma constitucional de grau inferior em face de norma constitucional de grau superior; VI.2 – Norma constitucional violadora de direito supralegal positivado na Constituição; VII – Direito constitucional não escrito; VII.1 – Violação aos princípios constitutivos não escritos perante o sentido da Constituição; VIII – Sistema Misto de controle; VIII.1 – Controle de legitimidade da norma; IX – Jurisprudência do STF – Adin nº 815-3; X –Conclusão; XI – Bibliografia.


I – INTRODUÇÃO HISTÓRICA

Inicialmente, uma retomada histórica se faz mister para indicar a época em que se desenvolveu a formulação teórica das normas constitucionais inconstitucionais, tentando compreender a importância e preocupação do jurista alemão Otto Bachof (elemento fundador dessa polêmica), seu ambiente político e as aspirações da Alemanha no pós-Guerra, transmudando de um Estado Totalitário para um Estado de Direito.

Assim, partindo do ponto em que a história da humanidade é feita pelos homens, e como seres racionais que são, extremamente mutáveis e de ambições das mais criativas, a Europa dos anos 40 não poderia ser diferente. Vivenciou o holocausto de uma Alemanha dominada pelo medo e pelo regime totalitário irracional, em que as pessoas perderam seu senso de pessoalidade dentro do sistema.

Impulsionados pela força propulsora de uma crise econômica decorrente da perda na 1º Grande Guerra, os alemães impuseram-se um Estado de não-direito, alicerçado em bases discriminatórias e preconceituosas, que não correspondiam aos anseios primários de um poder legítimo e justo.

Superada essa fase totalitária de anulação da individualidade humana, o pós-Guerra na Alemanha determinou aos juristas da época toda uma reformulação de sua Ordem Jurídica Constitucional, objetivando a criação de um Estado Social de Direito.

Assim exposto, foi nesse contexto de transição, de mudanças na Ordem Jurídica da Alemanha, que o professor Otto Bachof apresentou suas idéias sobre o tema em uma conferência em Heidelberg, precisamente em 20 de julho de 1951.

A grande virtude desse renomado jurista fora sua preocupação com que não houvessem, no corpo da Constituição, normas que conflitassem com os preceitos fundamentais de justiça, lastreados pelo Direito Natural, uma vez que é o próprio povo, titular do poder constituinte, que deve consentir com as propostas constitucionais, no intuito de que seja um puro reflexo daquele sentimento de justiça incrustado em cada membro da coletividade. Ainda a esse respeito, Karl Schimid diz, no Congresso Jurídico de Constança, em 1947: "Temos que aprender de novo que a justiça está antes do direito positivo e que são unicamente as suas categorias intocáveis pela vontade dos homens que podem fazer das leis direito – seja o legislador quem for, um tirano ou um povo" [1].

Talvez, preliminarmente, sob a ótica política, o cerne do questionamento encontra seu nascedouro na seguinte indagação: Como pode um Estado de Direito conceder direitos e determinar obrigações a seus cidadãos, se tal Direito não está alinhado com os preceitos fundamentais de justiça de um povo? Qual a legitimidade desse direito? Como torná-lo obrigatório? Como aplicá-lo efetivamente?

Acredito que pode ter sido essa a real preocupação do jurista alemão, que vivenciando uma troca de regime jurídico, tenta resguardar aquilo que de mais intocável existe na sociedade: seus valores fundamentais. Escorada no sentimento de justiça que deve permear toda a sociedade, a norma constitucional só será legítima se ela mesma respeita esses valores.


II – A CONSTITUIÇÃO E O ORDENAMENTO JURÍDICO

Nas relações de direito constitucional, compreendemos que a Teoria do Ordenamento Jurídico está intimamente ligada às questões de: Unidade, Coordenação, Validade, Antinomias e relações entre Ordenamentos. Ainda nessa trilha, é fundamental a apresentação da idéia filosófica sobre a Teoria Tridimensional do Direito, do professor Miguel Reale. Assenta-se a idéia do Direito ser uma integração normativa de fatos segundo valores, concedendo os postulados fundamentais de um povo como parâmetros ou nortes orientadores do Constituinte Originário e Derivado.

Por esse prisma, um Estado de Direito caracteriza-se pela obrigatoriedade em que são colocadas e conservadas todas as normas jurídicas provenientes de um Poder Soberano, que se diz legítimo pela soberania popular que assim o consagrou.

A obrigatoriedade das normas advém da situação em que todos as seguem por terem a profunda convicção de que tais normas são válidas, isto é, possuem validade formal (vigência), validade social (efetivas) e validade ética (fundamento).

Sob esta ótica, enfileiramos nosso entendimento pelo que se entende por validade ética nas lições de Stammler, trazidas ao nosso convívio pelo professor Miguel Reale [2], como sendo: "O Direito deve ser sempre uma tentativa de Direito Justo, por visar à realização de valores ou fins essenciais ao homem e à coletividade".

Percebe-se então que o lastro da validade ética está na presença de valores expressos ou implícitos, que são eleitos, no consenso geral, por uma sociedade de homens livres como aquilo que já está sedimentado e presente na consciência coletiva. Corporifica-se em algo inalienável e irredutível, em constante aperfeiçoamento, operando assim a legitimidade e obrigatoriedade do Direito. Logo, podemos observar que o Ordenamento Jurídico possui esse conjunto de valores que geram o lastro de validade ética.

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Com arrimo nos argumentos expendidos, esse Ordenamento deve possuir características próprias que o distingue de um mero amontoado de normas. Tal fato é a própria unidade que um Sistema de Direito, como fruto de um Ordenamento, deve possuir para ter operacionalidade, ressalvando-se a hipótese de incoerências, onde haja a quebra da unidade.

Compreendendo, então, que a perspectiva do Direito deve ser entendida como um Sistema, sustentando-se na unidade e na ordenação, conceitua-se Sistema, na visão de Kant, assinalado por Claus-Wilhelm Canaris [3], como sendo a Unidade sob uma idéia de conhecimentos variados ou um conjunto de conhecimentos ordenado segundo princípios.

Por consegüinte, cabe destacar a visão Kelseniana do fundamento de validade do Ordenamento Jurídico. Nele, a Constituição em seu sentido lógico-jurídico é caracterizada como a norma fundante do Ordenamento e, no sentido jurídico-positivo, como a positivação dos preceitos reguladores dessa Ordem. Nesse passo, funciona como o fundamento de validade do Ordenamento Jurídico.

Validade assim, apresenta-se, sob uma ótica particular, como um dos graus de sanção dentro de incompatibilidades normativas realizadas dentro do mesmo âmbito normativo. Se houver incompatibilidade material ou formal com os preceitos fundamentais prescritos pela Constituição, deve ser declarada inválida essa norma, uma vez que a validade é pressuposto para a norma ser seguida. Nesta passagem, Norbeto Bobbio [4] enuncia que a validade é a pertinência de uma norma a um Ordenamento.

Seguindo esse raciocínio, escalonamos os graus de sanção das normas existentes dentro das incompatibilidades normativas, denominando-as de invalidade e ilegitimidade. A primeira, já descrita acima, encontra lugar dentro do mesmo âmbito normativo pelo conflito real que ocorra entre normas, em que a inferior não obedeça a superior, seja no conteúdo ou na forma. Já a ilegitimidade tem seu campo de atuação num plano superior e abrangente, em que a própria Constituição irá buscar sua validade para realmente ser legítima ou não.


III – AS INCOMPATIBILIDADES

As incompatibilidades podem ser classificadas em duas categorias próprias: as antinomias, que ocorrem dentro do mesmo âmbito normativo e as incoerências, que ocorrem em diferentes ambientes, numa esfera que transcende a própria órbita interna, tendo em vista uma relação norteada pela coordenação e subordinação, que indicará o rumo a ser tomado pelo legislador constituinte.

A meu ver, os conflitos podem se manifestar entre normas, entre princípios e entre valores. Para solucionar o conflito de normas usamos os critérios hermenêuticos tradicionalmente conhecidos (hierárquico, cronológico e especialidade). Para solucionar a colisão de princípios usamos a técnica da ponderação de interesses. No entanto, para solucionar a colisão de valores, estes plasmados no texto constitucional ou não, iremos nos socorrer no sistema de controle de legitimidade da norma, que é o objeto deste trabalho. Sistema esse, ainda de lege ferenda. Primeiro, falemos das antinomias.

III.1 – AS ANTINOMIAS – CONFLITO DE NORMAS

Na intenção de conceituar, chamamos ao nosso convívio os ensinamentos de Tércio Sampaio Ferraz Jr., a que alude a professora Maria Helena Diniz [5]: "A antinomia jurídica é a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo que colocam o sujeito numa situação insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado". (grifo nosso).

Nesse contexto, a Teoria Geral do Direito elenca três critérios que, em um primeiro momento, irão conseguir mostrar saídas sensatas ao intérprete para que, dentro de duas normas, possa esquecer uma e aplicar a outra, é o que se denomina de interpretação ab-rogante. Utliza-se principalmente, quando há duas normas elaboradas e promulgadas ao mesmo tempo pela mesma autoridade competente, no mesmo plano hierárquico e ambas gerais, ex. gr., dentro de uma mesma Lei Federal. Não devemos esquecer que estamos no campo da aplicação do Direito, em que o intérprete somente detém o poder de não aplicar a norma, deixando-a de lado, como o magistrado faz diante do caso em concreto, visto que só o Poder Legislativo possui a competência constitucional de revogar as normas jurídicas.

Assim, tradicionalmente o conflito de regras se desenrola na dimensão da validade e, por isso, é resolvido pela aplicação hermenêutica dos critérios hierárquicos (lex superior derogat inferiori), cronológico (lex posterior derogat priori) e da especialidade (lex specialis derogat generali).

No entanto, superado o conflito de normas, irá surgir a colisão de princípios [6], que é resolvida pela técnica da ponderação de interesses. O que veremos a seguir.

III.2 – A COLISÃO DE PRINCÍPIOS

Os princípios informam todo o sistema jurídico. Eles são normas e as normas compreendem as regras e os princípios. As regras, segundo o mestre de Harvard, Dworkin, são aplicáveis à maneira do tudo ou nada [7]. Enquanto os princípios, além de atuarem normativamente, podem ser relevantes, em caso de conflito, para um determinado problema legal, mas não estipulam uma solução particular [8]. Na feliz síntese do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, os princípios são abstrações de segundo grau, normas de normas, em que se buscam exprimir proposições comuns a um determinado sistema de leis [9]. Eles dispõem de maior grau de abstração e menor densidade normativa. Como enunciados genéricos que são, estão a meio passo entre os valores e as normas na escala da concretização do Direito e com eles não se confundem, assim observa com muita acuidade o professor Ricardo Lobo Torres [10].

Como principal característica, são funcionais. Cimentam a unidade do Ordenamento, indicam o conteúdo de direito de determinado tempo e lugar, fixando, assim, os standards de justiça [11]. As disposições principiológicas sintetizam a idéia de direito e justiça vigentes no momento social, por refletirem diretamente os valores escolhidos pela sociedade no texto constitucional. Desta sorte, dirigem-se aos Poderes de Estado, condicionando-os na aplicação e interpretação das normas [12].

Os princípios laboram como a principal ferramenta na solução de distúrbios sistemáticos que, de vez em vez, assolam o Ordenamento Jurídico. A visão formalista do passado cede a uma visão substancial na análise do Direito. O conteúdo demonstra sua força. Os intérpretes mais arraigados à visão formalista estão se curvando perante a eficácia jurídica insofismável dos princípios. A fase do pós-positivismo [13] inaugura uma nova concepção sobre a eficácia e importância dos princípios. A normatividade dos princípios [14], cada vez mais acentuada pela sua positivação em texto constitucional, traduz uma eficácia vinculativa e obrigatória sobre comportamentos públicos ou privados, bem como sobre a interpretação e a aplicação de outras normas [15]. Passamos a linha divisória da ordem jusprivatista (os princípios estavam insertos nos Códigos) para a ordem juspublicistica (inserção no texto Constitucional) [16].

Assim, os princípios podem entrar em conflito num caso concreto, como por exemplo, na aplicação da norma antielisiva. De um lado, a legalidade tributária e a liberdade privada, protegendo o contribuinte das investidas do fisco na busca de seu patrimônio e, de outro, a capacidade contributiva, autorizando o fisco a identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, como prescreve o artigo 145, § 1°, da CF 88.

Não nos resta alternativa, senão recorremos à técnica da ponderação de interesses, na busca de compor esses pontos de tensão principiológica. O professor Luis Roberto Barroso, com seu curial brilhantismo, entende tratar-se de uma linha de raciocínio que procura identificar o bem jurídico tutelado por cada uma delas (normas), associá-lo a determinado valor, isto é, ao princípio constitucional ao qual se reconduz, para, então, traçar o âmbito de incidência de cada norma, sempre tendo como referências máximas as decisões fundamentais do constituinte [17].

Essa técnica torna-se mister quando, de fato, estiver caracterizada a colisão entre, pelo menos, dois princípios constitucionais incidentes sobre um caso concreto (em pauta, na aplicação da norma antielisão, os princípios da legalidade e da liberdade conflitam com o princípio da capacidade contributiva).

Desta sorte, para solucionar o conflito, deverá o juiz aplicar o princípio da proporcionalidade [18] na sua tríplice dimensão: a) adequação, a restrição a cada um dos interesses deve ser idônea para garantir a sobrevivência do outro; b) necessidade, tal restrição deve ser a menor possível para a proteção do interesse contraposto e c) proporcionalidade estrita, o benefício logrado com a restrição a um interesse tem de compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico [19].

Na terceira dimensão do princípio da proporcionalidade, a estrita, devemos ainda, aplicar o raciocínio baseado na Lei de Ponderação [20], ordenando que quanto mais intensa for a intervenção em um direito tanto mais graves devem ser as razões que a justificam. Para isso, é necessário passar por três fases: 1) determinar a intensidade da intervenção; 2) determinar as razões que a justificam; 3) ponderação estrita, por meio de atribuição de pesos específicos aos interesses em jogo [21]. Neste caso, a restrição imposta a um interesse deve ser a mínima possível para que seja indispensável à sua convivência com o outro, de forma a que nenhum deles desapareça por completo. Se isso acontecer, não haverá ponderação de interesses, e sim, preponderância de interesses, pois o pressuposto dessa técnica é a convivência harmônica dos interesses. Logo, os dois interesses sobrevivem juntos, lado a lado. Na verdade, há um acordo de interesses, onde cada um cede espaço ao outro, sem sacrifícios por inteiro de nenhum deles.

III.3 – AS INCOERÊNCIAS – CONFLITOS DE VALOR

Neste item encontra-se o suporte principal do pensamento de nosso estudo. Primeiramente, desejo lastrear essa tese na Teoria da Argumentação de que o raciocínio jurídico é detentor. A argumentação, em oposição à tradição cartesiana, revela-se nas palavras de Chaim Perelman, descritas com muita clareza em um dos clássicos da literatura jurídica internacional, que foi traduzido para o português pelo professor Plauto Faraco de Azevedo [22], como sendo: "A argumentação tem seu sentido no verossímil, no plausível e no provável, escapando estes à certeza de um cálculo exato de que resulte uma única solução justificável em termos absolutos [...]" (grifo nosso).

A Teoria da Argumentação não nos deixa sucumbir às forças irracionais, aos canhões do poder, às vontades impostas, enfim, à violência. Pelo contrário, coloca à nossa disposição ferramentas de muita utilidade. Serviçal do Direito, colima a repulsa a qualquer ato belicoso, que possa, por vias, até oblíquas, despojar o intérprete do Direito de seus apetrechos necessários ao combate à opressão ou qualquer forma de tolhimento dos valores intrínsecos e essenciais pertencentes ao homem, por ser o próprio homem a maior fonte desses valores.

É de se notar que a argumentação jurídica tem um campo próprio de operação. Utiliza a norma como seu arrimo fundamental. Será a própria norma que indicará os limites máximos e mínimos para a argumentação, tendo em vista a sua própria elasticidade. Assim é que o intérprete poderá articular de várias formas para compreendê-la sem usurpar da Teoria, pois ultrapassando os limites do razoável, estaria deturpando a própria mens legis. Seria, então, o rompimento da norma, devendo ela ser eliminada, porque não mais condiz com os fatos reais da vida e com os valores nela realizados. Por assim dizer, haveria um choque para o sistema, podendo contaminá-lo com conceitos distorcidos sobre os valores essenciais daquele povo. Por isso devemos ir à nascente da norma constitucional, na busca de legitimá-la ou não. Desta forma, em espeque na Teoria Tridimensional do Direito, do professor Miguel Reale [23], que iremos encontrar a segunda fundamentação das normas constitucionais inconstitucionais (ilegítimas), porque, assim, assevera: "A norma jurídica é a indicação de um caminho, porém, para percorrer um caminho, devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor".

Na elaboração de uma nova Carta Constitucional, haverá o rompimento com a antiga Ordem, sendo recepcionado o Direito anterior compatível com essa nova Ordem e revogado o incompatível, partindo para uma nova produção de Direito. Desta sorte, o constituinte em sua jornada de elaboração da norma constitucional, que é um processo de integração normativa, leva em conta a forte carga de valor existente na sociedade, ficando, assim, vinculado aos valores essenciais do homem.

Tendo como o produto final desse processo a norma constitucional, deverá ela comportar-se, perante o Direito, consoante entendimento do professor Miguel Reale [24]: "A norma é a forma que o jurista usa para expressar o que deve ou não deve ser feito para a realização de um valor ou impedir a ocorrência de um desvalor".

Diante do exposto, depreende-se que o valor detém uma autonomia viva frente ao Ordenamento Jurídico. Se pensássemos numa Ordem Jurídica sem valores, ainda assim haveriam valores que determinariam o conteúdo das normas, pois eles fundam o dever ser da norma, nascem com os homens, são indissociáveis desses e possuem funções bem determinadas de criar, alterar e modificar a realidade. De toda a sorte, seriam o parâmetro para uma nova realidade.

Logo, toda a produção de Direito será oriunda de uma Carta Constitucional que deverá estar em consonância com a Ordem de Valores de um povo, inserido em determinada cultura, sob pena de ser declarada ilegítima a norma constitucional que estiver em desalinho com ela. Daí surge a preocupação do legislador constituinte originário e derivado de seguir a trilha dos valores essenciais de um povo. Assim, segundo Hessen [25]: "[...] os valores essenciais de um povo trajam as vestes da imutabilidade e permanência, em cada tempo e espaço social, autorizando o próprio povo, que é o legítimo detentor do poder constituinte, a excluir da Constituição normas que colidam com esses valores essenciais". Este é o elemento fundamental na abordagem da colisão de valores, a troca de lente.

Para concluir, propomos um modelo esquemático das incoerências:

ESQUEMA DAS INCOERÊNCIAS

ORDENS DIFERENTES, DIFERENTES AMBIENTES

Nesta linha de montagem, as incoerências seriam algo inaceitável, por colidirem com aquilo que de mais sagrado existe no corpo social. Estaríamos, portanto, frente a uma incoerência quando houvesse esse choque entre uma norma constitucional e um valor essencial (valores que são consagrados pelo direito supralegal). E, nesse conflito, ou se elimina uma das referências ou ter-se-á uma probabilidade muito grande de injustiça.

Exemplo disso, é a contradição existente entre o artigo 100 e artigo 33 dos ADCTs, ambos da Carta Política de 1988, consoante doutrina da professora Maria Helena Diniz [26].

Sobre o autor
André Luiz Carvalho Estrella

procurador do Estado do Rio de Janeiro, advogado, membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESTRELLA, André Luiz Carvalho. Normas constitucionais inconstitucionais: (Verfassungswidrige Verfassungsnormen). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 268, 1 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5021. Acesso em: 22 dez. 2024.

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