A TODO VAPOR
Seu nome era Watt; James Watt. Engenheiro e mecânico escocês, fabricava instrumentos de precisão na Universidade de Glasgow. Em 1763, recebeu a incumbência de aprimorar a máquina a vapor. Treze anos mais tarde, no dia 11 de março de 1776, o jornal inglês Birmingham Gazette noticiava:
“Na última sexta-feira, uma máquina a vapor construída segundo os novos princípios do Sr. Watt foi
posta em funcionamento em Bloomfield Colliery... ... na presença de alguns homens de ciência cuja
curiosidade fora estimulada pela possibilidade de ver os primeiros movimentos de uma máquina tão
singular e poderosa... ...Com esse exemplo, às dúvidas dos inexperientes se dissipam e a importância
e utilidade da invenção se firmam decididamente... ... [Foi] inventada pelo Sr. Watt, após muitos
anos de estudo e grande variedade de experiências custosas e trabalhosas.” (Huberman, 1978: 183)
E por que tanto alvoroço diante de tal invento? Afinal, por que a tal máquina era assim tão singular e poderosa? Leo Huberman nos dá algumas pistas. Informa que no ano de 1800 a importância da máquina a vapor tornara-se tão patente para os ingleses que ela já era utilizada em 30 minas de carvão, 22 minas de cobre, 28 fundições, 17 cervejarias e 8 usinas de algodão. E esclarece que “a invenção de máquinas para fazer o trabalho do homem era uma história antiga, muito antiga. Mas com a associação da máquina à força do vapor ocorreu uma modificação importante no método de produção. O aparecimento da máquina a vapor foi o nascimento do sistema fabril em grande escala. Era possível ter fábricas sem máquinas, mas não era possível ter máquinas a vapor sem fábricas”(1978: 183-4).
A utilização industrial da máquina a vapor foi considerada um marco tão importante para a história da humanidade, a ponto de alguém ter afirmado: “a máquina a vapor não tem precedente, a máquina de fiar não tem ancestrais, a mule e o tear mecânico nada herdaram: eles surgiram repentinamente, como Minerva do cérebro de Júpiter” (Taylor apud Thompson, 1987: II 12-3).
O escritor Eduardo Galeano, entretanto, tem outra explicação para esse parto mítico da máquina a vapor. Segundo ele, tal invento só pode vir ao mundo graças ao capital acumulado pela burguesia, com o comércio triangular de manufaturas, escravos e açúcar, isto porque o Sr. Watt foi patrocinado pelos mercadores que assim haviam entesourado suas fortunas.
O mesmo Galeano denuncia que o tráfico de escravos enriqueceu muitas empresas inglesas e enlouqueceu a bolsa de Londres — (para ver que o nervosismo das bolsas não é coisa de hoje!). O transporte dos escravos elevou Bristol, sede dos estaleiros, à segunda cidade da Inglaterra, e transformou Liverpool no maior porto do mundo.
ge-newline"> O Direito do Trabalho é filho dessa era industrial. Disso ninguém duvida. Evaristo de Moraes Filho chega a dizer que é erro de perspectiva histórica que alguém possa atribuir a origem do Direito do Trabalho à antiguidade clássica. Entretanto, se a fábrica é filha da máquina a vapor, também pode ser considerada neta do tráfico de escravos ou bisneta das cruzadas. Por isso não é demais fazermos uma parada rápida para um flash-back. Este, diga-se de passagem, é um instrumento fundamental para o homem compreender a si mesmo, pois “a maioria dos seres humanos atua como os historiadores: só em retrospecto reconhece a natureza de sua experiência”(Hobsbawm, 1999: 253).
É por isso que, por ora, vamos largar de mão o estudo da fábrica para voltarmos aos tempos pré-históricos. Numa viagem como essa é imprescindível, num primeiro momento, o socorro dos arqueólogos, cuja tarefa — dizem eles — “é criar a pré-história a partir dos ossos secos e dos potes quebrados da Arqueologia” (Daniel apud Childe, 1978: 11).
CAÇADORES, PESCADORES E COLETORES DE ALIMENTOS
O trabalho dos primeiros homens era desenvolvido em estreita parceria com as forças da natureza: “De que viviam, não sabemos. Supõe-se que os homens mais antigos preparavam armadilhas e caçavam animais selvagens e pássaros, pegavam peixes e lagartos, coletavam frutas silvestres, moluscos e ovos, e arrancavam raízes e grãos...”(Childe, 1978: 64).
Porém, mesmo nos primórdios da civilização, era necessário um acervo de informações, adquiridas e transmitidas de geração a geração. Os homens observavam os hábitos dos animais para terem sucesso na caça; tinham que distinguir as plantas que serviam de alimento das venenosas, saber quais as estações propícias para caçar determinados animais ou para a coleta de frutos. Desse modo, “mesmo para os homens mais primitivos, o êxito na vida exigia um corpo considerável de conhecimento astronômico, botânico, geológico e zoológico. Ao adquirir e transmitir tal conhecimento, nossos predecessores estavam lançando as bases da ciência” (Childe, 1978: 64).
Presume-se que as primeiras sociedades viviam num regime de comunidade primitiva, em que havia uma divisão menos artificial do trabalho (entre homens, mulheres, crianças, adultos e velhos), e uma apropriação coletiva dos bens necessários à subsistência, aliado a um artesanato doméstico rudimentar. Conjectura-se, ainda, que num segundo momento, com a descoberta da agricultura — atribuída à mulher — e a domesticação de animais, os homens teriam passado a ser agricultores e pastores. Normalmente se diz que “o homem nômade, caçador e pescador, se tornou sedentário, por diversos motivos de ordem biológica e moral, mas, sobretudo, por um motivo econômico: a exploração da terra. A agricultura fixou a vida humana, no sentido próprio da palavra”(Russomano, 1997: 9).
Gordon Childe, todavia, adverte que o aparecimento da atividade agrícola não deve necessariamente ser confundido com a adoção de uma vida sedentária, e cita dois exemplos para comprovar esse argumento: o de tribos caçadoras e pescadoras do Canadá, que no século XIX viviam em aldeias permanentes, em casas de madeiras enfeitadas e quase luxuosas, e o dos magdaleanos, que durante a época glaciária, na França, habitavam a mesma caverna por sucessivas gerações. Lembra ainda que algumas formas de atividade agrícola coexistem com o nomadismo, caso da agricultura desenvolvida por camponeses da Ásia, África e América do Sul, para quem “o cultivo significa simplesmente abrir uma área na floresta ou na mata, escavá-la com uma enxada ou mesmo uma vara, semeá-la e em seguida colher...” (1978: 82).
LAVRADORES, ARTESÃOS E MERCADORES
Com a revolução agrícola e a conseqüente revolução urbana, os homens foram deixando a condição exclusiva de coletores de alimentos para se tornarem camponeses, artesãos e mercadores. Especialmente os povos que habitavam os vales de grandes rios, como o Nilo, Tigre e Eufrates, atingiram um elevado grau de desenvolvimento na tecnologia agrícola, o que possibilitou o surgimento do excedente de produção. Este, por sua vez, favoreceu a divisão social do trabalho e, com uma organização social mais complexa, foi surgindo a necessidade de um sistema político e econômico centralizado. Desse modo, “por volta de 3.000 a.C., o Egito, a Mesopotâmia e o Vale do Indo já não eram mais um conjunto de aldeias de agricultores auto-suficientes, vivendo sob o regime de comunidade primitiva, mas constituíam Estados, com uma complexa organização social dividida em classes rigidamente hierarquizadas” (Ribeiro, 1985: 77).
AMOS E ESCRAVOS: ENFIM, O ESTADO
Os primeiros grandes Estados foram erguidos sobre os ombros de trabalhadores submetidos ao cativeiro. Entre esses Estados escravocratas, alguns se notabilizaram. A escravidão, informa Segadas Vianna, “entre os egípcios, os gregos e os romanos, atingiu grandes proporções. Na Grécia havia fábricas de flautas, de facas, de ferramentas agrícolas e de móveis onde o operariado era todo composto de escravos. Em Roma os grandes senhores tinham escravos de várias classes, desde os pastores até gladiadores, músicos, filósofos e poetas” (1993: 27).
Mas não somente do trabalho escravo viveu o mundo antigo. Temos notícia de povos dedicados essencialmente ao comércio, como os fenícios, ou ainda da sociedade hebraica, cujo povo, segundo José Comblin, era “essencialmente um povo de trabalhadores livres que luta contra toda forma de dominação externa e interna para manter as suas liberdades. Não existe em Israel a distinção entre uma classe de trabalhadores sem direitos e uma classe de dominadores com todos os direitos. Mesmo os sacerdotes, os doutores, os escribas são trabalhadores manuais”(1985: 179).
SENHORES E SERVOS
Leo Huberman, no início de sua História da Riqueza do Homem diz ser estranho que muitos livros sobre a Idade Média, por páginas e páginas, falassem de cavaleiros e damas, adornados em suas vestes elegantes, o tempo todo entretendo-se com torneios e jogos: “Sempre viviam em castelos esplêndidos, com fartura de comida e bebida. Poucos indícios há de que alguém devia produzir todas essas coisas, que armaduras não crescem em árvores, e que os alimentos, que realmente crescem, têm que ser plantados e cuidados” (1978: 11).
Ora, armaduras crescendo em árvores, e fartura sem precisar de trabalho, só se fosse no país de São Saruê, 1 pois:
(...)
O povo em São Saruê
tudo tem felicidade
passa bem anda decente
não há contrariedade
não precisa trabalhar
e tem dinheiro a vontade (...)
Lá os tijolos das casas
são de cristal e marfim
as portas barras de prata
fechaduras de ‘rubim’
as telhas folhas de ouro
e o piso de ‘sitim’
Lá eu vi rios de leite
barreiras de carne assada
lagoas de mel de abelha
atoleiros de coalhada
açudes de vinho do porto
montes de carne guisada
As pedras em São Saruê
são de queijo e rapadura
as cacimbas de café
já coado e com quentura
de tudo assim por diante
existe grande fartura
Feijão lá nasce no mato
maduro e já cozinhado
o arroz nasce nas várzeas
já prontinho e despolpado
peru nasce de escova
sem comer vive cevado.
Mas, voltando à perplexidade de Huberman, como era então que se produziam as riquezas na época dos cavaleiros medievais? A grande expressão da organização econômica e social da Idade Média é o feudalismo, em que a propriedade da terra era o principal índice de riqueza. Da terra se produzia quase tudo de que se precisava. Para que os cavaleiros pudessem guerrear ou cortejar suas damas, e os sacerdotes pudessem entregar-se às suas orações (embora em muitos mosteiros os religiosos também se dedicassem à agricultura e pecuária), era necessário que os camponeses trabalhassem a terra. E como vivia o camponês naquele tempo? O camponês, escreve Leo Huberman, “vivia numa choça do tipo mais miserável. Trabalhando longa e arduamente em suas faixas de terra espalhadas (todas juntas tinham, em média, uma extensão de 6 a 12 hectares, na Inglaterra, e 15 a 20 na França), conseguia arrancar do solo apenas o suficiente para uma vida miserável. Teria vivido melhor, não fora o fato de que, dois ou três dias por semana, tinha que trabalhar a terra do senhor, sem pagamento” (1978: 14).
Portanto, a relação de trabalho que antes havia entre amos e escravos, na Idade Média era principalmente entre senhores e servos, relações que, apesar de se assemelharem, apresentam suas diferenças: “se o escravo era parte da propriedade e podia ser comprado ou vendido em qualquer parte, a qualquer tempo, o servo, ao contrário, não podia ser vendido fora de sua terra. Seu senhor deveria transferir a posse do feudo a outro, mas isso significava, apenas, que o servo teria novo senhor; ele próprio permanecia em seu pedaço de terra. Esta era uma diferença fundamental, pois concedia ao servo uma espécie de segurança que o escravo nunca teve. Por pior que fosse o seu tratamento, o servo possuía família e lar e a utilização de alguma terra” (Huberman, 1978: 15). Além disso, os servos tinham o direito de herança sobre os animais, utensílios pessoais e até sobre o uso de pastos, embora o imposto cobrado pelos seus senhores, geralmente extorsivo, quase sempre engolisse os bens que cabiam aos herdeiros.
MESTRES E APRENDIZES
Ao lado do cultivo da terra havia o trabalho com manufaturas, inicialmente realizado na casa do camponês. Este, juntamente com a parentela, fabricava seus próprios móveis e fiava seu próprio tecido. Afora os utensílios para uso doméstico, era preciso fabricar as armaduras dos cavaleiros, as ferraduras para os cavalos, fornecer os bens necessários ao conforto de nobres e reis, necessidades que estimularam o surgimento das corporações de ofício, unidades industriais típicas da Idade Média, em que um mestre artesão trabalhava lado a lado com ajudantes e aprendizes. Nessa nova organização industrial, “as mercadorias, que antes eram feitas não para serem vendidas comercialmente, mas apenas para atenderem às necessidades de casa, passaram a ser vendidas num mercado externo. Eram feitas por artesãos profissionais, donos tanto da matéria-prima como das ferramentas utilizadas para trabalhá-las, e vendiam o produto acabado”(Huberman, 1978: 63).
O trabalho nas corporações de ofício era distribuído em três diferentes níveis: aprendizes, companheiros e mestres:
“Os aprendizes estavam submetidos, muito estreitamente, à pessoa do mestre. Eram jovens
trabalhadores que, como sua designação indica, aprendiam o ofício. A aprendizagem era um sistema
duro de trabalho e os mestres impunham aos aprendizes um regime férreo de disciplina, usando,
largamente, os poderes que lhe eram conferidos pelas normas estatutárias da corporação. Não existia,
porém, servidão, naquele sentido dos primeiros quartéis da idade Média. Terminada a aprendizagem,
subiam eles à categoria de companheiros, que eram oficiais formados, mas sem condições de
ascenderem mestria, pela compressão exercida pelos mestres, que desejavam, dessa forma, impedir a
concorrência e, por outro lado, assegurar a transmissão dos privilégios das mestrias aos seus filhos e
sucessores”(Russomano, 1997: 12).
ABRAM ALAS! LÁ VEM A BURGUESIA!
Foi ainda na Idade Média que teve início uma grande acumulação de capital por parte da burguesia. Esta, cada vez mais poderosa, começou sistematicamente a empregar artesãos, carregadores, marinheiros, artistas, criados domésticos, dando origem a uma nova hierarquia, pela qual a burguesia passava a dominar o cenário socioeconômico mundial.
Na Idade Moderna, os burgueses patrocinaram as Grandes Navegações e o tráfico de escravos, obtendo grandes lucros com tais atividades. Também atuaram como mecenas de artistas e inventores no Renascimento e inspiraram ideologicamente tanto a formação do Estado Moderno (com o absolutismo monárquico), quanto a tomada da Bastilha. Essa mesma burguesia, com tudo o que ela trouxe de bom e de ruim para a nossa história, ainda continua, em grande parte do mundo, ditando as formas pelas quais o trabalho humano se realiza. Também foi ela que, como vimos, bancou a máquina do Sr. Watt, com o dinheiro manchado pelo sangue e suor dos cativos africanos.
E aqui termina o flash-back. Voltemos à fábrica.
INDUSTRIAIS E PROLETÁRIOS
“Todos os dias, na atmosfera esfumaçada e triste do bairro operário, o apito da fábrica lançava aos
ares o seu grito estridente. Então, criaturas toscas, com os músculos ainda fatigados, saíam
rapidamente de pequenas casas pardacentas e corriam como baratas assustadas. À fria meia luz, iam
pela rua estreita em direção aos altos muros da fábrica que os esperava implacável e cujos inúmeros
olhos quadrados e amarelos iluminavam a calçada lamacenta...(...)
À tarde, ao sol poente, os seus raios vermelhos iluminavam as vidraças do casario; a oficina
vomitava das suas entranhas de pedra todas as escórias humanas, e os operários enegrecidos pelo
fumo, espalhavam-se novamente pelas ruas, deixando atrás de si exalações ásperas do óleo das
máquinas. (...)
A fábrica absorvera o dia, as máquinas tinham sugado aos músculos dos homens todas as forças de
que precisavam. O dia fora riscado do conjunto da vida, sem deixar vestígios; o homem tinha dado
mais um passo para o túmulo, sem disso se aperceber.”
Com o trecho acima, o escritor russo Máximo Gorki inicia seu célebre Romance A
Mãe, em que é retratada a dura vida do proletário, termo empregado ainda na antiga Roma, para designar o cidadão de classe inferior, e que, segundo o professor Amauri Mascaro Nascimento, foi utilizado pela primeira vez no sentido moderno pelo filósofo e economista francês Saint-Simon.
Mas quem é o proletário? O proletário, responde Amauri Mascaro Nascimento, “é um trabalhador que presta serviços em jornadas de duração que vai a 14 e a 16 horas, não tem oportunidades de desenvolvimento intelectual, habita em condições subumanas, em geral nas adjacências do próprio local da atividade, tem prole numerosa e ganha salário em troca disso tudo” (1992: 7)
Isso tudo de que fala o jurista era a parte que cabia a quem tinha apenas a força de trabalho para alugar aos donos da fábrica. Isso tudo e muito mais. Na Inglaterra, “os menores eram oferecidos aos distritos industrializados, em troca de alimentação, fato muito comum nas atividades algodoeiras de Lancashire.” Foi também naquele país que “o industrial de algodão Samuel Oldknow contratou, em 1796, com uma paróquia a aquisição de um lote de 70 menores, mesmo contra a vontade dos pais. Yarranton tinha, a seu serviço, 200 meninas que ficavam em absoluto silêncio e eram açoitadas se trabalhavam mal ou demasiado lentamente” (Nascimento, 1992: 10-11).
Na época, algumas vozes isoladas ousaram levantar-se contra a crueldade perpetrada por grande parte dos patrões, “uma raça cujo único mérito consiste na astúcia que os habilita a conceberem as formas mais baratas possíveis para extrair a maior quantidade de trabalho dos empregados mais jovens, ao menor espaço de tempo, pagando os mais baixos salários... uma raça de homens da qual Agur teria dito: Que geração! Quanta arrogância e altivez! Esta é uma geração cujos dentes parecem espadas, e os molares, facas, para devorar todos os pobres que se arrastam sobre a terra e eliminar os desamparados do convívio dos homens” (Bull apud Thompson, 1987: II 223).
Porém, se no apogeu da Revolução Industrial, para muitos o sofrimento era de fazer clamar aos céus, para alguns a vida era um céu aberto. As estatísticas da época revelavam um progresso econômico nunca visto antes: “a produção de algodão, ferro, carvão, de qualquer mercadoria, multiplicou-se por dez. O volume e o total de vendas, os lucros dos proprietários — tudo isso subiu aos céus. Lendo tais números ficamos surpreendidos. A Inglaterra, ao que tudo indica, devia ter sido então o paraíso que os autores das canções mencionam sempre. Foi, realmente — para uns poucos” (Huberman, 1978: 188).
J. K. Galbraith, no best-seller A era da incerteza, afirma que a partir da revolução na indústria a cidade industrial passou a ser sinônimo de cidade. Londres então, símbolo da metrópole da época, chegou a ser entronizada por alguns abastados. Diz Galbraith:
“A primeira impressão que Dick Whittington (legendário mercador inglês e prefeito londrino do século XV) teve de Londres foi a da terra prometida. O Dr. Johnson (Samuel Johnson, escritor e crítico inglês do século XVIII) foi ainda mais peremptório: ‘Nada disso. Quando alguém está cansado de Londres, é porque está cansado da vida; pois Londres tem de tudo que a vida pode oferecer” (1986: 314).
É claro que para os afortunados, não apenas Londres mas qualquer metrópole tinha tudo de bom que a vida poderia oferecer. E os ricos daquele tempo não esboçavam o menor sinal de consternação diante do sofrimento do proletariado. A maioria dos endinheirados, reconhece Leo Huberman, “nem pensava nisso, absolutamente. Quando pensavam, consolavam-se com o raciocínio de que tinha de ser assim. Não dizia a Bíblia: ‘os pobres, sempre os tendes convosco?’ Não lhes importava que a Bíblia tivesse outras coisas a dizer sobre as relações entre os homens — liam apenas o que queriam ver, e ouviam apenas o que queriam ouvir” (1978: 194).
“AS VISÕES SE CLAREANDO”2
Nesse contexto, não era de se esperar que os patrões viessem a dar, de mão beijada, uma legislação para acudir o proletariado. Os próprios trabalhadores é que tiveram de lutar pelo reconhecimento de seus direitos. Inicialmente, muitos partiram para o quebra-quebra das máquinas, que, na concepção do proletariado, eram as maiores responsáveis por tirar o pão da boca de seus filhos:
“Máquinas de tecer renda, de tecer meias, máquinas de fiar — todas as máquinas que pareciam a
certos trabalhadores em certos lugares terem provocado a miséria e fome —foram destruídas,
esmagadas ou queimadas. Os destruidores de máquinas, chamados luditas, ao lutarem contra a
maquinaria sentiam que lutavam por um padrão de vida”(Huberman, 1978: 198).
Com o tempo, porém, começaram a perceber que o quebra-quebra não adiantava. Naquela conjuntura, a saída viável era unir-se para combater o inimigo comum, o que não foi nada fácil. De início, todo movimento que partisse do proletariado era reprimido pela mão de ferro da lei. Associação sindical, greve, ato público, tudo isso era sinônimo de sedição. Mas apesar das dificuldades, a união e a luta do proletariado trouxeram consigo a consciência de classe. O trabalhador foi sentindo na pele aquilo que Marx analisou conceitualmente: a alienação do trabalho.
Alienação, etimologicamente, provém da forma latina alienare, e quer dizer transferir para outrem o domínio de. No caso da industrialização, com a tomada dos meios de produção pelo dono da fábrica, o produto do trabalho foi transferido para as mãos do empresário, deixando de pertencer ao trabalhador:
“Mas não é apenas o produto que deixa de lhe pertencer. Ele próprio abandona o centro de si mesmo.
Não escolhe o salário — embora isso lhe apareça ficticiamente como resultado de um contrato livre
—, não escolhe o horário nem o ritmo de trabalho e passa a ser comandado de fora, por forças
estranhas a ele” (Aranha & Martins, 1993: 12).
A exploração injusta presente no trabalho alienado gerou indignação até no mundo da poesia. São de Shelley, conhecido poeta inglês, os seguintes versos:
Homens da Inglaterra, por que arar
para os senhores que vos mantêm na miséria?
Por que tecer com esforço e cuidado
as ricas roupas que vossos tiranos vestem?
Por que alimentar, vestir e poupar
do berço até o túmulo,
esses parasitas ingratos que
exploram vosso suor — ah, que bebem vosso sangue?
Por que abelhas da Inglaterra, forjar
muitas armas, cadeias e açoites
para que esses vagabundos possam desperdiçar
o produto forçado de vosso trabalho?
Tendes acaso ócio, conforto, calma,
abrigo, alimento, o bálsamo gentil do amor?
Ou o que é que comprais a tal preço
com vosso sofrimento e com vosso temor?
A semente que semeais, outro colhe
A riqueza que descobris, fica com outro.
As roupas que teceis, outro veste.
As armas que forjais, outro usa.
Semeai — mas que o tirano não colha.
Produzi riqueza — mas que o impostor não a guarde.
Tecei roupas — mas que o ocioso não as vista.
Forjai armas — que usareis em vossa defesa. 3
A propósito da obra de Shelley, comenta Oswaldino Marques que ela retrata os acontecimentos políticos e econômicos de sua época, tendo em vista que o poeta inglês “amava o povo e o respeitava por considerá-lo, via de regra, mais virtuoso e sempre mais sofredor do que os poderosos, por isso mesmo mais merecedor de simpatia. Ele acreditava na inevitabilidade de um choque entre as duas classes sociais e enfileirou-se sofregamente ao lado do povo”4
Não apenas Shelley, mas muitos outros homens e mulheres de boa vontade cerraram fileira nas hostes do povo. Alguns, como Marx, acreditando também na inevitabilidade da luta de classes; outros, diferentemente, haurindo seus ideais nas fontes inesgotáveis da utopia.
SONHO QUE NÃO SE SONHA SÓ
Boa parte dos autores enxerga o germe das idéias que influenciaram o surgimento e a evolução do Direito do Trabalho no socialismo utópico, sendo comum a referência a três nomes, cujas idéias estão estreitamente ligadas à gênese do direito trabalhista, dois franceses — Saint-Simon e Fourier — e um inglês — Robert Owen.
Saint-Simon foi, ao mesmo tempo, apóstolo do capitalismo, profeta da tecnocracia e, por paradoxal que pareça, um anunciador do socialismo. Para ele, “a propriedade privada não deveria ser tolerada, a menos quando produtiva socialmente, e a sociedade deveria ser formada por uma classe única: a classe industrial, a única ‘útil’. O Estado existiria não para governar, mas apenas para administrar; sua função deveria ser, por exemplo, garantir o direito ao trabalho, à assistência social e à educação” (Coelho, 1993: 108). Muitos de seus seguidores, contudo, julgavam que qualquer mudança na sociedade teria que passar necessariamente pela mediação da burguesia. As classes trabalhadoras, pensavam eles, “não se podem elevar a menos que as classes superiores lhes estendam a mão. É destas que deve partir a iniciativa.” (Huberman, 1978: 234-5).
Charles Fourier, apontado por Engels como precursor do socialismo, em suas obras deu destaque ao associonismo. Ao contrário dos outros dois, que eram adeptos do industrialismo, Fourier via na agricultura a luz no fim do túnel para a nova sociedade a ser construída. Por isso imaginava um núcleo populacional ideal, o falanstério, em que as pessoas viveriam num edifício em formato de estrela, tudo funcionando como uma espécie de cooperativa, cujo objetivo seria “garantir a seus aderentes um mínimo vital de subsistência, a ser obtido não através de um salário, mas pela participação de todos na produção da unidade” (Coelho, 1993: 109). Só que para concretizar o seu projeto, imaginava contar com a benemerência de algum milionário excêntrico. Certa vez, segundo se diz, “anunciou que ficaria em casa diariamente a determinada hora, para esperar qualquer filantropo disposto a dar-lhe um milhão de francos para uma colônia baseada nos princípios fourierísticos. A partir de então, e por 12 anos, esteve em casa diariamente, pontualmente, ao meio-dia, esperando o generoso estranho, mas nenhum milionário jamais apareceu” (Laidler apud Huberman, 1978: 234).
Por fim, Robert Owen, genuíno self-made man, não se contentou em imaginar uma sociedade ideal. Em 1813, transformou uma fábrica de sua propriedade em associação comunitária, tornando-se uma precursor do cooperativismo. Além disso, “projetou uma reforma urbanística, apresentando uma concepção de cidade provida de parques e pomares, com casas dotadas de aquecimento central e sem cozinha (as refeições deveriam ser tomadas em comum), com quatro aposentos para uma família de quatro pessoas. Como em outras utopias, a educação — de crianças e adultos — assumia para Owen um papel de destaque na nova sociedade: a 1 o de janeiro de 1816 era inaugurada uma escola em sua New Lamark. Preocupando-se com problemas concretos de sua época, muito mais que a maioria de seus colegas utopistas, Owen debruçou-se sobre as condições de trabalho em vigor, corpo legal cuja formulação só se daria no século XX...” (Huberman, 1978: 107-8).
Comenta-se, todavia, que a ação de Owen pecava por reproduzir uma tradição paternalista, e que os experimentos feitos em suas fábricas de New Lanark visavam, antes de tudo, doutrinar “indisciplinados” diaristas rurais escoceses, ajustando-os aos padrões do trabalho industrial. Percebe-se, ainda, um tom messiânico no seu discurso, principalmente depois de sua volta de uma viagem ao Estados Unidos, empreendida no ano de 1833:
“Nós (...) abandonaremos todos os arranjos gerados por interesses [seccionais], tais como grandes
cidades, vilas, aldeias e universidades. (...) Tribunais de lei e toda a parafernália e loucura do direito (...) não podem existir num estado racional de sociedade...” (Owen apud Thompson, 1987: III 390).
Para encurtar a história, podemos dizer que em todos os socialistas utópicos (nuns mais, noutros menos), detecta-se a presença de uma visão idealizadora do mundo. Mas visão utópica não precisa ser confundida com uma quimera, sem valor para a vida prática. Ao contrário, a imaginação utópica é fundamental para a existência de todos nós, haja vista que, como lembra o professor de Comunicação e Artes José Teixeira Coelho Netto, “um traço distintivo que deve caracterizar o ser humano, ainda não embrutecido pela própria fraqueza ou pela realidade tremenda, é a liberdade que ele se reserva de opor ao evento defeituoso, à situação decepcionante, uma força contraditória. Essa força poderia chamar-se ‘esperança’; esperança de que aquilo que não é, não existe, possa vir a ser; uma espera, no sonho, de que algo se mova para a frente, para o futuro, tornando realidade aquilo que precisa acontecer, aquilo que tem de passar a existir” (1993: 81). Daí por que não é justo tachar Saint-Simon de visionário quando ele afirma que a idade de ouro da humanidade não está atrás de nós, mas à nossa frente, nem Dom Hélder Câmara de ingênuo por ele ter dito: “quando alguém sonha sozinho, não passa de um sonho. Quando a gente sonha junto, é a realidade que começa” (apud Tévóédjrè, 1981: 15).
EM NOME DE DEUS, EM SINTONIA COM OS HOMENS.
Ninguém melhor que Dom Hélder Câmara simboliza o pensamento de uma Igreja cuja doutrina se ocupa não somente com a salvação de almas, mas com a libertação da pessoa em sua plenitude de ser humano e de criatura divina. Muito antes de D. Hélder, porém, a Igreja Católica já subia aos púlpitos para fazer uma pregação voltada para os problemas sociais. Sua doutrina social foi um dos fatores fundamentais para a implementação do direito trabalhista. O mal é que não raro essa doutrina é-nos apresentada como se fosse um conjunto de idéias desvinculadas da realidade, quando, ao contrário, deveria ser percebida como ela realmente é: um diálogo histórico permanente entre a Igreja e o mundo em que ela está inserida. A doutrina social da Igreja, como diz o Reverendo Bigo, “perde todo seu significado se for concebida como cultura do espírito e não como um projeto. É de sua natureza, modelar as estruturas e os comportamentos sociais de acordo com sua idéia. Neste sentido, é um pensamento comprometido” (1969: 16). Um grande marco na doutrina social da Igreja Católica ocorreu no dia 15 de maio de 1891. Naquela data, no Pontificado do Papa Leão XIII, foi publicada a Encíclica Rerum Novarum, na qual o Sumo Pontífice expunha ao mundo as causas de muitos dos conflitos sociais da época:
"Em todo o caso, estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário, com medidas
prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela
maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida. O século passado destruiu, sem as
substituir por coisa alguma, as corporações antigas, que eram para eles uma proteção; os princípios e
o sentimento religioso desapareceram das leis e das instituições públicas, e assim, pouco a pouco os
trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de
senhores desumanos e à cobiça duma concorrência desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda
mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob
outra forma por ação dos homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo isso deve
acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhão dum
pequeno número de ricos e opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão
dos proletários.”5
A Rerum Novarum foi tão marcante que outros Papas fizeram questão de reverenciá-la com a publicação de novas Encíclicas ou pronunciamentos solenes por ocasião de seu aniversário. Assim foi com a Quadragesimo Anno, de Pio XI, sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social em conformidade com a Lei Evangélica, publicada em 15 de maio de 1931. Dez anos depois, nos conturbados anos da Segunda Guerra Mundial, com a Radiomensagem no Cinquentenário da Rerum Novarum, proferida pelo Papa Pio XII, por ocasião da solenidade de Pentecostes. Nos oitenta anos, foi a vez da
Octogesima Adveniens, Carta Apostólica do Papa Paulo VI; nos noventa (15 de maio de 1981), o Papa João Paulo II havia sofrido um atentado dois dias antes e, por isso não pode estar presente às comemorações do aniversário da famosa Encíclica. No entanto, designou o cardeal Agostino Casaroli, Secretário de Estado do Vaticano, para presidir a celebração da Eucaristia e transmitir sua mensagem aos trabalhadores. Mesmo assim, depois de recuperado, em setembro daquele ano, proclamou, para reverenciar o nonagésimo aniversário da Rerum Novarum, a Encíclica Laborem Exercens, “o primeiro documento do Papa João Paulo II que tratou em profundidade a questão social e ao mesmo deu continuidade às Encíclicas Sociais dos papas anteriores e aos ensinamentos do Concílio Vaticano II.”6 Finalmente, em maio de 1991, o mesmo Papa João Paulo II, após inúmeras viagens apostólicas por todo o mundo, preocupado “com o que viu, com o consumismo europeu, com o empobrecimento de muitos países em desenvolvimento e com a miséria em muitos lugares por onde passou,”7 fez publicar a Centesimus Annus, Carta Encíclica no Centenário da Rerum Novarum, na qual expressa uma feliz síntese da doutrina social da Igreja:
“61. No início da sociedade industrial, foi o ‘jugo quase servil’ que obrigou o meu predecessor a
tomar a palavra em defesa do homem. Nestes cem anos, a Igreja permaneceu fiel a esse empenho! De fato, interveio nos anos turbulentos da luta de classes, a seguir à primeira guerra mundial, para defender o homem da exploração econômica e da tirania dos sistemas totalitários. Colocou a dignidade de pessoa no centro das suas mensagens sociais, após a segunda guerra mundial, insistindo sobre o destino universal dos bens materiais, sobre uma ordem social sem opressão e fundada no espírito de colaboração e solidariedade. Depois reiterou constantemente que a pessoa e a sociedade
não têm necessidade apenas destes bens, mas também de valores espirituais e religiosos. Além disso,
tendo verificado cada vez mais como tantos homens vivem, não do bem-estar do mundo ocidental,
mas na miséria dos Países em vias de desenvolvimento e padecem uma condição que é ainda a do
‘jugo quase servil’, sentiu-se na obrigação de denunciar essa realidade clara e francamente, embora
sabendo que este seu grito não será sempre acolhido favoravelmente por todos.”8
Na denúncia do “jugo quase servil” a que estava submetido o proletariado, outras vozes se uniram ao grito da Igreja Católica. E como nem todos — como advertira o Papa — estavam dispostos a acolher favoravelmente esse brado, muitos trabalhadores tombaram na luta, entrando para a história na condição de mártires.
DE MÁRTIRES E HERÓIS
Estávamos em 1988. Faltavam três dias para o Natal. O Brasil de Norte a Sul se emocionava diante da telinha, com a trama da novela das oito da Rede Globo. Em Xapuri, no Acre, por conta do fuso horário, a telenovela começava por volta das seis horas. Enquanto Ilzamar assistia à TV, seus dois filhos pequenos brincavam no chão da sala. Na cozinha, Chico Mendes jogava dominó com seus guarda-costas. Terminado o jogo, foram à sala ver se ainda pegavam o final da novela. Veio o jantar, e depois dele Chico resolveu se refrescar num chuveiro ao lado da casa. Pegou uma toalha azul, com a estampa de um arco- íris e notas musicais, presente de aniversário. Completara 44 anos uma semana antes. Como estava escuro, apanhou uma lanterna. Ao abrir a porta dos fundos, foi atingido pelo disparo de uma doze, a famigerada espingarda que já havia ceifado a vida de outros líderes de sindicatos rurais. Só naquele ano foram quinze. E Chico, o décimo-quinto, mesmo com quarenta perfurações de chumbo no peito e no ombro direito, cambaleando à porta da cozinha, ainda conseguiu murmurar as derradeiras palavras: — Dessa vez me acertaram. Era o desfecho de mais uma das muitas crônicas de mortes anunciadas. Chico Mendes, que até aquela quinta-feira ainda era para grande parte do nosso povo um ilustre desconhecido, a partir daquele momento tornou-se uma celebridade. Seu enterro, em pleno Natal, chegou a abalar o país, e desviar um pouco a atenção do que realmente estava comovendo a nação brasileira: as fortes emoções da novela das oito, cujo título era bastante sugestivo — Vale Tudo.
Teotônio Vilela, ao ser entrevistado por Henfil, afirmou que no Brasil nós não rendemos culto aos heróis, mas apenas aos mártires, isto é, “nós veneramos os que perderam, os derrotados. De Tiradentes a Garrincha”(Henfil, 1984: 17). E quando se trata da luta pelos direitos dos trabalhadores, o nosso martirológio não deixa nada a desejar. Nomes como Chico Mendes, João Pedro Teixeira e Margarida Maria Alves são apenas uns poucos entre os de tantos homens e mulheres que pagaram com o sangue a entronização nas páginas da história.
Mas não é só no Brasil que a história dos trabalhadores tem sido construída sobre o sangue de mártires. Na maioria dos países industrializados celebra-se o 1º de maio como dia consagrado ao trabalhador. O surgimento dessa comemoração remonta ao ano de 1886.
Foi no primeiro de maio daquele ano que operários de Chicago iniciaram uma série de manifestações em defesa de seus direitos. A mobilização do operariado foi violentamente reprimida. Vários trabalhadores morreram num sangrento confronto com a polícia, ocorrido no dia 4 de maio. Oito líderes do movimento foram presos e condenados à morte, quatro deles foram enforcados, um suicidou-se e três foram perdoados.
COM O SUOR DOS TEUS CHIPS
Da Revolução Industrial até os dias atuais o mundo mudou. E a cada dia, mais rapidamente. Antes dela vivia-se numa civilização essencialmente agrícola — a primeira onda de que fala Alvin Toffler, que teria durado até 1650 ou 1750. Depois da indústria, no entanto, a história não foi mais a mesma:
“Foi este o mundo em que irrompeu a revolução industrial, lançando a Segunda Onda e criando uma
contracivilização estranha, poderosa e febrilmente energética. O industrialismo foi mais do que
chaminés e linhas de montagem. Foi um sistema social rico, multiforme, que tocou todos os aspectos
da vida humana e atacou todas as feições do passado da Primeira Onda. Produziu a grande fábrica de
Willow Run, fora de Detroit, mas também colocou o trator na fazenda, a máquina de escrever no
escritório, a geladeira na cozinha. Produziu o jornal e o cinema, o trem suburbano e o DC-3. Deu-nos
o cubismo e música de 12 tons. Deu-nos edifícios Bauhaus e cadeiras de Barcelona, as greves
brancas, as pílulas de vitaminas e o prolongamento da duração da vida. Universalizou o relógio de
pulso e a urna eleitoral. Mais importante, interligou todas estas coisas — montou-as como uma
máquina — e formou o sistema social mais poderoso, coeso e expansivo que o mundo já conheceu: a
civilização da Segunda Onda.” (Toffler, s.d: 36).
E chegamos, por fim, aos tempos pós-modernos. Ultrapassamos a era da revolução industrial para ingressarmos na economia superindustrial, marcada não mais pela mecanização, porém pela automação do processo produtivo. No mundo de hoje, o suor do rosto humano já não conta tanto para a produção de riquezas.
“Basta o trabalho incorporado aos aparelhos de tecnologia avançada, que multiplicam enormemente
a capacidade de produção de um número sempre menor de pessoas. No conjunto dos países
capitalistas europeus, a produção da riqueza quase quadruplicou em trinta e cinco anos, sem, no
entanto, quadruplicar o trabalho. Pelo contrário: na Alemanha, a partir de 1955, o volume anual de
trabalho diminuiu em 30%. Na França, em 30 anos, a diminuição foi de 15%, passando a 10% no
espaço de seis anos. No começo do século [o XX, fique claro], um emprego de tempo integral
significava mais de 3.000 horas de trabalho por ano. Em 1960, 2.800 horas. E, em 1985, criando um
produto interno bruto 2,5 vezes maior que 25 anos antes, se gastou 1.600 horas. Nas 500 maiores
empresas americanas a proporção dos empregos permanentes e de tempo integral só representa 10%
do total. Um estudo da Federação Internacional dos Metalúrgicos prevê que, dentro de 30 anos,
menos de 2% da atual força de trabalho em todo o mundo ‘será suficiente para produzir todos os
bens necessários para atender a demanda total.”9
Ao mesmo tempo em que o suor do rosto vai sendo substituído pelo labor dos chips, as empresas vão sendo palco de um imenso processo de reengenharia tanto no setor de produção quanto no administrativo. Na fábrica não predomina mais a linha de montagem aos moldes do fordismo, em que o homem era reduzido a gestos mecânicos, imortalizados pela mudez eloqüente de Charles Chaplin no filme Tempos modernos. Em vez disso, como diz Márcio Túlio Viana, “já agora, a fábrica se horizontaliza. O ideal não é mais dominar, diretamente, toda a cadeia de produção, nem mesmo as últimas etapas. O modelo é a empresa enxuta, que elimina estoques e esperas, produz exatamente aquilo que pode vender, reduz progressivamente os custos, automatiza-se e se organiza em rede, jogando para as parceiras tudo o que lhe parece descartável.”10 Que se pode, então, esperar desse admirável novo mundo construído pelo trabalho humano desde os primeiros tempos, mas que se mostra bem mais complexo no alvorecer do terceiro milênio? Que humanidade surgirá a partir da aceleração dos mecanismos de globalização econômica e cultural? No cenário político, encontraremos finalmente a terceira via?11 Haverá um novo direito trabalhista a partir das novas relações de trabalho? E como será esse novo direito?
Fazer previsões históricas é empreitada arriscada, quando não precipitada. Mas uma coisa é certa: já vivemos na civilização da Terceira Onda, que, como afirma Alvin Toffler, é para quem crer que a história, longe de ter acabado, está apenas começando.
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AQUINO, Rubim Santos Leão de; ALVARENGA, Francisco Jacques Moreira de. FRANCO, Denize de
Azevedo & LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. História das sociedades: das sociedades modernas às
sociedades atuais. 2 ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1983.
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ed. - São Paulo: Moderna, 1993.
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Janeiro, sob orientação do Pe. Bastos D’Ávila. São Paulo: Edições Loyola, 1969.
CHILDE, Gordon. A Evolução Cultural do Homem. Trad. de Waltensir Dutra. 4 ed. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1978.
CNBB, A fraternidade e os desempregados: sem trabalho... por quê?: texto-base, São Paulo, Editora
Salesiana Dom Bosco, 1999.
COELHO, Teixeira. O que é utopia. Coleção Primeiros Passos. Círculo do Livro - vol. 3, 1993.
COMBLIN, José. Antropologia Cristã. Coleção Teologia e Libertação. Petrópolis, RJ. Ed. Vozes, 1985.
ENCÍCLICAS E DOCUMENTOS SOCIAIS. Coletânea organizada por Frei Constantino Bombo. S. Paulo:
LTr, 1993.
FERRARI, Irany, NASCIMENTO, Amauri Mascaro & MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. História do
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GALBRAITH, John Kenneth. A era da incerteza. — 7 ed. — São Paulo: Pioneira, 1986.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 32 ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra1991.
GIDDENS, Anthony. A terceira via. — Rio de Janeiro: Record, 1999.
GORKI, Máximo. A Mãe. Trad. de Araújo Neves. — Rio de Janeiro, Tecnoprint.
HENFIL. Diretas Já. Rio de Janeiro, Record, 1984.
HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos. — São Paulo: Companhia das Letras- 2 ed. 13 a reimpressão, 1999.
Notas:
1 Viagem a São Saruê, folheto de Manoel Camilo dos Santos in José de Ribamar LOPES (org.), Literatura de
Cordel: antologia. pp. 632-34.
Manoel Camilo dos Santos, nascido em Guarabira-PB, em 9/06/1905, poeta popular fundador da Academia
Brasileira de Cordel, (cadeira 25, que tem como patrono Inácio da Catingueira).
2 Título extraído da música Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, que dividiu com A banda, de
Chico Buarque, o primeiro lugar do festival de música da TV Record, no ano de 1996
3 Shelley apud Huberman, História da Riqueza do Homem, p. 206.
4. Palavras de Mary Wollstonecraft, esposa de Shelley e compiladora de suas obras completas, apud
Oswaldino MARQUES, O livro de ouro da poesia de língua inglesa., p. 161.
5. Encíclicas e Documentos Sociais, vol. 1, p. 14.
6 Encíclicas e Documentos Sociais, vol. 2, p. 173.
7 Idem, p. 561
8 Idem, p. 636.
9 CNBB, A fraternidade e os desempregados: sem trabalho... por quê?, texto base , p. 32-33
10 In: Revista LTr, 63-07, p. 886.
11 Terceira via é a expressão utilizada pelo sociólogo inglês Anthony Giddens (A terceira via, p. 36), para se
referir a “uma estrutura de pensamento e de prática política que visa a adaptar a social-democracia a um
mundo que se transformou fundamentalmente ao longo das duas ou três últimas décadas. É uma terceira via
no sentido de que é uma tentativa de transcender tanto a social-democracia do velho estilo quanto o
neoliberalismo.” Não se trata de uma expressão nova. Como explica o próprio Giddens (ob. cit., p. 7) “ela foi
usada muitas vezes na história passada da social-democracia, e também por escritores e políticos de
convicções completamente diferentes.” No entanto, é retomada pelo sociólogo inglês, que diz ser o objetivo
geral da política da terceira via “ajudar os cidadãos a abrir seu caminho através das mais importantes
revoluções de nosso tempo: globalização, transformações na vida pessoal e nosso relacionamento com a
natureza.” (ob. cit., p. 74).