5 ESTUDO CRÍTICO DO ART. 52, X DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
5.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Conforme ensinamentos de Montesquieu, para que não haja abuso de poder e sim um equilíbrio nas funções estatais, faz-se necessário que tal poder não esteja concentrado. Partindo-se deste pressuposto, ele definiu uma tripartição das funções típicas de Estado (legislativa, executiva e judiciária), tendo em vista que o Poder é uno e indivisível. Não obstante tratar-se de uma separação de funções estatais, esta teoria ficou conhecida, hodiernamente, como "Teoria da Separação dos Poderes".
Com a Revolução Francesa, a essência da teoria de Montesquieu tornou-se um dogma do direito constitucional moderno, embora atualmente não mantenha a mesma rigidez de outrora.
O ponto principal desta Teoria resume-se no princípio dos freios e contrapesos (checks and balances) que se traduz na necessária harmonia e independência das funções típicas de Estado, de modo que cada uma delas resguarda uma esfera de competências típicas e atípicas como forma de controlarem-se mutuamente.
Com a construção jurídico-filosófica da idéia de Estado Democrático de Direito (9), aquela Teoria passou a englobar o resguardo e proteção dos direitos e garantias fundamentais da pessoa, além do aspecto relativo à concentração de poderes.
A nossa atual Constituição, em seu artigo primeiro preceitua: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...". Já em seu artigo segundo enuncia: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".
A Constituição põe à nossa disposição mais um instrumento que garante a inviolabilidade dos imperativos traçados pelos supramencionados artigos da Lex Magna, quando estabelece o controle de constitucionalidade difuso por via de
exceção, uma vez que é dado a qualquer pessoa a possibilidade de argüir, por via reflexa, a inconstitucionalidade de uma lei num caso concreto.
5.2 ANÁLISE CRÍTICA
É sabido que compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição Federal, conforme o caput do art. 102. Por sua vez, dispõe o art. 52, inciso X da Constituição: "Compete privativamente ao Senado Federal: ... suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal".
A primeira questão a ser analisada é: há conflito entre os dois retromencionados dispositivos?
Duas interpretações podem ser levantadas. Se partirmos do pressuposto de que é o Supremo Tribunal Federal o órgão de cúpula do Poder Judiciário pátrio, e que o legislador constituinte investiu a Suprema Corte de competência exclusiva para apreciar, em última instância, a constitucionalidade das leis e atos normativos, e, ao mesmo tempo, deu ao Senado competência para dispor discricionariamente sobre a decisão daquele Tribunal, podemos afirmar que, a priori, verifica-se uma certa incoerência entre os já mencionados artigos. Por outro lado, se entendermos que a competência atribuída à Câmara Alta, para suspender a execução de leis, é apenas residual e não discricionária, não vislumbraremos dissonância entre aqueles. Desde já aclaramos que nós defendemos a última interpretação.
No Brasil o Supremo Tribunal Federal agrega tanto a função de Órgão de Cúpula do Poder Judiciário quanto a de Corte Constitucional, ou seja, trata-se de um órgão híbrido. É o que se infere da análise do rol de competências que a Carta de 1988 traz elencado em seu art. 102, ou seja, competências quanto ao controle de constitucionalidade, assim como competências jurisdicionais.
Além do mais, como nos referimos anteriormente, a competência do Senado Federal é apenas residual, não sendo permitido que o mesmo venha a questionar o mérito da decisão definitiva do STF, ou seja, inexiste controle misto (político-jurisdicional) de constitucionalidade de leis no nosso país.
Não haveria incongruência entre os art. 102 e 52, X da Constituição se o Senado Federal tivesse apenas que ratificar a decisão proferida em última instância pelo Supremo, o que, infelizmente, não é a interpretação feita por ambos os órgãos.
Conforme análise apurada do texto do art. 52, X da CF/88, verificamos a imperatividade do preceito. Isto porque, quando o texto diz: "suspender", não vislumbramos que se possa extrair a idéia de "possibilidade de suspensão". Através da interpretação teleológica do citado artigo, cremos que o legislador constituinte originário não atribuiu competência discricionária ao Senado Federal para tal supressão, ou seja, a Câmara Alta não tem legitimidade para questionar se deve ou não expurgar do ordenamento jurídico a norma eivada de inconstitucionalidade. Para que se pudesse extrair uma interpretação nesse sentido, o Constituinte deveria ter, claramente, expressado a possibilidade de o Senado apreciar a conveniência ou não da suspensão.
A interpretação atualmente dada ao preceito constante no artigo em questão é tão obsoleta e retrógrada que desde o anteprojeto da Constituição de 1946, já se via a impropriedade de se prever a atuação do Senado no que diz respeito à suspensão de leis ou atos normativos já declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal. Assim sendo, se é a Constituição um corpo que deve, acima de tudo, resguardar o equilíbrio entre todos os seus dispositivos e preceitos, como então poderíamos aceitar uma interpretação que provoca um contra-senso no que diz respeito ao princípio da harmonia e independência entre os "poderes"?
Ora, o Senado já teve oportunidade para apreciar a conformidade da lei com a Constituição, através do processo legislativo, realizando o chamado "controle preventivo". No entanto, se mesmo assim permite que uma norma eivada de inconstitucionalidade ingresse no ordenamento jurídico, não é razoável que se admita que ele mesmo aprecie a conveniência da manutenção daquela norma, visto que, conforme já expusemos, não há embasamento para uma interpretação nesse sentido. Do contrário, ofender-se-ia incisivamente o princípio dos freios e contrapesos.
Sendo o STF o guardião da Constituição, por que submeter as suas decisões a uma posterior convalidação por parte do Senado Federal?
Ora, se o Supremo é o órgão máximo que tem competência constitucional para controlar a constitucionalidade das leis e, quando num caso concreto a declara inconstitucional, seria conveniente que seus efeitos fossem estendidos erga omnes por decisão do próprio Tribunal, através do Pleno. Há de se considerar que o STF ao prolatar uma decisão no sentido de atribuir à lei ou ao ato normativo o caráter de inconstitucional, o fez por entender que tais espécies são prejudiciais e causam sério desequilíbrio ao ordenamento, tanto por ferirem a Constituição como por atentarem contra a segurança jurídica. Isto porque o STF não se embasa em tecnicismos (ou, pelo menos, não deveria fazê-lo), como se fosse possível um julgamento imune a valores, mas sim em aspectos jurídico-legais.
Os que defendem que o Senado não está vinculado à decisão do STF, o fazem por entender que aquele tornar-se-ia um mero "carimbador" das decisões deste órgão jurisdicional. No entanto, não entendemos dessa forma. O Senado Federal tem legitimidade para analisar os aspectos formais (exemplo: o respeito ao quorum necessário) da decisão proferida. Sendo assim, o Senado está apto a negar, nestes termos, a suspensão da lei ou ato normativo declarado inconstitucional. Não obstante, a análise do mérito é dada exclusivamente ao Supremo.
Outro aspecto bastante relevante em nossa crítica diz respeito à seguinte questão: qual foi o objetivo do legislador constituinte originário ao manter o dispositivo em tela no texto da Carta Magna Federal de 1988?
Não podemos chegar a uma conclusão sem antes nos debruçarmos sobre todo o mecanismo do controle difuso (ver item 2). A priori, uma decisão em sede de controle difuso só gera efeitos inter partes. Na prática, verificamos que quando o STF declara a inconstitucionalidade da norma, se esta não for suspensa pelo Senado Federal, continuará eficaz e aplicável, gerando um verdadeiro tumulto no ordenamento jurídico. Imaginemos juizes aplicando uma norma que já foi declarada inconstitucional pelo Tribunal de Cúpula do Poder Judiciário, o que é plenamente possível, tendo em vista que a decisão inter partes não pode ser estendida pelo próprio STF, não vinculando os demais órgãos jurisdicionais. A segurança jurídica tornar-se-ia inócua, e a conseqüente violação do princípio da isonomia seria inevitável, porquanto dar-se-ia soluções contraditórias para casos semelhantes.
Entretanto, o espírito da norma traçado pelo constituinte originário quis, claramente, evitar que uma norma declarada inconstitucional pelo Supremo continuasse produzindo efeitos, causando instabilidade na prestação jurisdicional, bem como quis zelar pela economicidade e celeridade processuais, uma vez que evitar-se-ia que o Pretório Excelso tivesse de analisar, inúmeras vezes, casos em
que já havia se posicionado pela inconstitucionalidade (10).
Para finalizar, a manutenção de uma norma inconstitucional no ordenamento jurídico seria o mesmo que conceder uma aparência de vida a um cadáver cujo atestado de óbito já fora expedido, ou seja, constitui letra morta, uma vez que a finalidade para a qual fora criada não poderá ser alcançada, tendo em vista o posicionamento definitivo do Supremo Tribunal Federal.
6 CONCLUSÃO
Diante do exposto ao longo do estudo, duas soluções poderíamos apontar para que os efeitos da decisão sobre a inconstitucionalidade de uma lei, em sede de controle difuso, fossem estendidos erga omnes: a criação de um Tribunal Constitucional ou a mera ratificação da decisão do STF por parte do Senado Federal.
A primeira hipótese é inviável, pois de acordo com o art. 60, § 4º, III da Constituição não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir a separação dos Poderes. Destarte, haveria a criação de um novo órgão constitucional, o que suprimiria a competência precípua do Supremo Tribunal Federal, o que é claramente um atentado ao Princípio da Separação das funções estatais. Só o legislador constituinte originário é que teria legitimidade para criar um órgão daquela natureza; contudo, para que isso ocorresse, seria necessária a quebra da ordem constitucional vigente, com a conseqüente convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte.
A segunda hipótese, defendida por nós ao longo da análise crítica, e cuja aplicação não desencadearia transtornos à ordem constitucional, pois se trata de questão meramente interpretativa, consiste na vinculação do Senado Federal a suspender a execução, no todo ou em parte, de norma declarada desconforme com a Constituição por decisão definitiva do STF. É, pois, a mais sensata, uma vez que restariam resguardados princípios como: Separação dos Poderes, Freios e Contrapesos, Autonomia e Supremacia das decisões definitivas do Supremo, Estabilidade Sócio-Jurídica do ordenamento e, no campo do Direito Processual, princípios como a Economicidade e a Celeridade.
Não se pode negar a aplicação da hipótese por nós defendida com o argumento de que haveria uma superposição do Judiciário (STF) em relação ao Legislativo (Senado Federal). Pelo contrário, haveria sim uma harmonização de funções estatais, tendo em vista que, o STF é o guardião supremo da Constituição, incumbido, portanto, de resguardar a ordem constitucional e, à Câmara Alta é dado apreciar, residualmente, apenas os aspectos formais da decisão definitiva do Pretório Excelso, conforme lição de Pontes de Miranda: "o Senado Federal, para exercer a sua função pode examinar o julgado, que se lhe apresenta, em sua existência e em sua validade; não, porém, em sua rescindibilidade." (11)
Ressalte-se, porém, quisesse o legislador constituinte originário permitir ao Senado exercer um juízo de conveniência e oportunidade acerca da decisão do Supremo, teria criado um mecanismo de controle direto, similar ao controle misto. Não é o que se depreende de nossa tradição jurídica, nem do corpo jurídico-constitucional brasileiro, pois prevalece em nosso país o Princípio da Jurisdição Una, delegada exclusivamente ao Poder Judiciário.
Por último, não obstante, cabe chamar atenção para o fato de que é a Via de Exceção um instrumento coletivo de controle de constitucionalidade. Ao passo que a ADIn apresenta um rol taxativo, estrito e rígido de legitimados, o controle incidenter tantum abarca um sem número de aptos a invocá-lo. Desta maneira o juiz quando se deparar com um caso concreto em que se argui a inconstitucionalidade de uma norma, deve agir sempre com cautela e valendo-se da garantia da independência que lhe é inerente, no intuito de resguardar o ordenamento jurídico e a dignidade da pessoa humana, não permitindo, assim, que normas definitivamente declaradas afrontosas a Lex Magna pela Corte Suprema continuem sendo aplicadas, pelo simples fato de não terem sido suspensas por Resoluções Senatoriais.
Vislumbramos que, com a interpretação dada atualmente ao disposto no art.52, X da CF/88, desnatura-se o propósito do legislador constituinte quando da feitura da norma: determinar ao Senado que estenda os efeitos de uma decisão incidental definitiva de inconstitucionalidade a todos os legislados.
NOTAS
- BARBOSA, Rui. (1892). Frases e Pensamentos de Rui Barbosa. Fundação Casa de Rui Barbosa. http: //www. casaruibarbosa.gov.br.[27 set. 2003, 12:10].
- MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª ed. Atlas. São Paulo, 2002, p. 579.
- Caso típico deste modelo de controle é o que se verifica na França. Neste país cabe ao Conseil Constitutionne da vigente Constituição francesa de 1958, o controle de constitucionalidade de leis.
- Apud, MORAES, Alexandre de, op.cit, 586
- In litteris: "CF/88 Art.97 Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público" Este preceito foi introduzido na Carta Constitucional de 1934 (art.179), sendo repetido por todas as Constituições seguintes.
- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 20ª ed. São Paulo, 2002 Editora Malheiros, p. 54.
- Apud MORAES, Alexandre de. op cit. 587-588.
- Art. 13 §10 da lei nº221 de 20 de novembro de 1894.
- A concepção de Estado Democrático de Direito traz em si a idéia de convivência social justa e solidária, fundada na dignidade da pessoa humana sob a égide das regras de direito, regras estas que deverão desempenhar uma função conservadora e garantidora dos valores socialmente aceitos.
- No oitavo congresso de advogados realizado no Rio de Janeiro, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Sepúlveda Pertence afirmou que em 1990 julgou-se inconstitucional a cobrança do empréstimo compulsório, mas até hoje o STF já apreciou mais de 10.000 vezes a mesma questão. PALU, Luiz Oswaldo. Controle de Constitucionalidade: Conceito, Sistemas e Efeitos. 2. ed. São Paulo. Revistas dos Tribunais. 2001.
- Apud REIS, Moreira Palhares, Consulex, Ano VI, nº 141, 2002. p. 20-23
BIBLIOGRAFIA
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REIS, Palhares Moreira. O Senado Federal e as Leis Inconstitucionais: É obrigação ou faculdade do Senado Federal suspender as leis consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal? Consulex, Brasília, Ano VI, n. 141, p. 20-23, nov., 2002.
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.