SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 - Fundamentos constitucionais, 2.1 - Conceito de democracia, 2.2 - Democracia no Estado brasileiro, 2.3 - Soberania popular e soberania parlamentar; 3 - A gestão democrática da cidade, 3.1 - A importância da gestão democrática, 3.2 - Poder local e participação, 3.3 - Das normas esparsas sobre gestão democrática, 3.4 - Das normas específicas sobre a gestão democrática; 4 – Conclusões; 5 - Bibliografia
1 - INTRODUÇÃO
O Estatuto da Cidade (Lei 10.705, de 10 de julho de 2001) ingressou no mundo jurídico portando um arsenal de novidades de direito urbanístico. E entre suas importantíssimas disposições incluiu normas que buscam democratizar o processo de gestão das cidades brasileiras.
Buscaremos, no presente estudo, traçar um paralelo entre estas normas, veiculadas pela novel legislação, e aquelas que há mais de dez anos estão deitadas em berço esplêndido no texto da Constituição de 1.988, ansiando por efetividade.
Serão analisadas as conseqüências dos postulados constitucionais da soberania popular, do Estado Democrático de Direito, da República, da representação e da participação popular no estabelecimento de um sistema democrático de gestão das cidades para, a seguir, analisarem-se especificamente, e sob tais luzes, as normas especificamente veiculadas pelo Estatuto da Cidade sobre o tema.
Certamente as disposições do Estatuto da Cidade surpreenderam muitos, especialmente os que encaram a democratização como um processo que pressupõe condições, requisitos, que invariavelmente nunca estão devidamente preenchidos pela sociedade brasileira. A estes fica, desde já, oposta a constatação de que, se fosse possível a consolidação de um regime democrático sem a prática democrática, nossa nação seria exemplo universal de democracia. Na insuperável lição de José Afonso da Silva sobre o tema:
"Uma visão elitista antepõe diversos tipos de pressupostos que julga necessários à existência e realização da democracia. (...) A contradição é evidente, pois supõe que o povo deve obter tais requisitos para o exercício da democracia dentro de um regime não democrático; que as elites devem conduzi-lo a uma situação que justamente se opõe aos interesses delas e as elimina. Teremos, enfim, a singularidade de aprender a fazer a democracia em um laboratório não democrático. (...) A democracia não precisa de pressupostos especiais. Basta a existência de uma sociedade. Se seu governo emana do povo, é democrática; se não, não o é"
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2 - FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS.
É um imperativo inafastável, antes de analisarmos especificamente a disciplina conferida à gestão democrática das cidades pelo Estatuto da Cidade, analisarmos quais são os fundamentos constitucionais de tal disciplina. Aí residem, soberanamente, as linhas mestras do ordenamento jurídico de um Estado, sobretudo a maneira como deverão se relacionar os poderes constituídos e a sociedade civil. Na lição de Adilson Abreu Dallari:
"É a Constituição que, ao definir as características do Estado, estabelecendo seus objetivos fundamentais, já define também os traços fundamentais dos instrumentos, meios e modos de atuação de seu ramo executivo, especialmente no relacionamento com os cidadãos".
2.1 - Conceito de democracia
Apesar de considerarmos que as opções políticas do legislador constituinte, depois de incluídas no texto de uma constituição, deixam de ser apenas opções políticas fundamentais e tornam-se normas jurídicas, sujeitas, como tal, às considerações da ciência jurídica, reputamos de todo conveniente para uma correta abordagem do tema aqui estudado que se faça uma análise, ainda que superficial, do que se entende modernamente por democracia.
A definição do que seja democracia é tormentosa. E os riscos de tal definição, para o jurista, se tornam ainda maiores, já que o tema recebe uma influência decisiva da Ciência Política, da Sociologia, da Filosofia etc. Mas podemos isolar nas mais diversas definições que o substantivo recebe um núcleo comum, que se revela presente, em essência, em todas as análises do tema: a democracia é um mecanismo de limitação e de legitimação do poder político.
Para José Afonso da Silva, a democracia é um "conceito histórico" e possui uma função instrumental de "realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem". Como conceito histórico, modifica-se a cada etapa do evolver social, preservando, entretanto, seu núcleo básico: "regime político em que o poder repousa na vontade do povo".
Referindo-se ao mesmo núcleo do conceito, escreve Norberto Bobbio:
"Da idade clássica a hoje o termo ''democracia'' foi sempre empregado para designar uma das formas de governo, ou melhor, um dos diversos modos com que pode ser exercido o poder político. Especificamente, designa a forma de governo na qual o poder político é exercido pelo povo".
O festejado professor italiano, em outra obra, vai mais além, afirmando que apesar dos mais diversos conceitos que o termo democracia vem recebendo "não se pode deixar de incluir em seus conotativos a visibilidade ou transparência do poder", e conclui com o que chama de "definição mínima de democracia":
"Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos".
Celso Antonio Bandeira de Mello vislumbra na definição do termo um conjunto de mecanismos que garantam o exercício do poder político destinado à realização dois valores fundamentais: liberdade e igualdade.
"Independentemente dos desacordos possíveis em torno do conceito de democracia, pode-se convir em que dita expressão reporta-se nuclearmente a um sistema político fundado em princípios afirmadores da liberdade e da igualdade de todos os homens e armado ao propósito de garantir que a condução da vida social se realize na conformidade de decisões afinadas com tais valores, tomadas pelo conjunto de seus membros, diretamente ou por meio de representantes seus livremente eleitos pelos cidadãos, os quais são havidos como os titulares da soberania. Donde resulta que Estado democrático é aquele que se estrutura em instituições armadas de maneira a colimar tais resultados".
O fato é que, quer se agregue ao conceito puramente "formal" de democracia os valores fundamentais que tal regime visa proteger, quer se faça abstração de tais valores para encará-la apenas sobre o ponto de vista do exercício do poder político, a razão de ser do conceito é a mesma: limitar o exercício do poder político e justificar a sua existência em termos racionais (ou seja, legitimá-lo).
Hoje, em termos mundiais, apesar dos avanços e retrocesso que se sucedem em matéria de respeito aos direitos fundamentais, constatamos que a forma democrática de exercício do poder político é quase que universalmente aceita, o que leva Paulo Bonavides a encarar a democracia sob uma faceta de "direito fundamental" dos povos: um direito de quarta geração, surgido na linha de evolução dos direitos individuais (de primeira geração), dos direitos econômicos, sociais e culturais (de segunda geração) e dos direitos à paz, ao desenvolvimento, à qualidade de vida etc. (de terceira geração).
Apesar de tal "conteúdo mínimo" relativamente uniforme que encontramos nas definições do que seja democracia, a forma pela qual tais idéias foram aplicadas nos mais diversos Estados no decorrer dos tempos foi e é muito diversa.
Dentre as diversas classificações que podem ser formuladas para a democracia, nos interessa, aqui, a que leva em conta o grau de participação do povo no exercício do poder político. Sob tal aspecto, a democracia costuma ser classificada em direta, representativa (ou indireta) ou semidireta (participativa), sendo que na primeira modalidade o povo exerce o poder político diretamente; na segunda, através de representantes eleitos para tal fim; e na última, através de representantes eleitos e também diretamente.
O primeiro dos modelos citados costuma ser definido como uma mera reminiscência histórica da Grécia antiga, atualmente impraticável pelas dimensões que assumiram os Estados modernos.
Já a democracia indireta ou representativa foi o modelo adotado pelo Estado Liberal - em que pese a antipatia que por ela nutria o maior dos teóricos liberais: Rousseau. Baseada na representação sem vinculação do eleito à vontade do eleitor (mandado representativo, apenas), foi a modalidade que imperou após a Revolução Francesa, perfeitamente adequada a uma concepção de Estado mínimo, a uma sociedade minimamente conflituosa e a um sufrágio muitas vezes restrito.
Entretanto, as modificações trazidas pela Revolução Industrial acarretaram uma necessidade imperiosa de alargamento da esfera de participação política das classes menos favorecidas, cuja pressão sobre o aparato estatal fazia-se cada vez maior. Assim, como forma de garantir a sua legitimidade, o Estado passou admitir a participação de tais extratos sociais na vida política (ampliação do direito de voto) e a atender diretamente as demandas de tais classes, realizando prestações positivas cada vez intensas para atendimento das demandas sociais igualmente mais amplas a cada dia.
"Sob pena de perder a legitimidade, o Estado incorporou o aumento dos limites democráticos impostos pela nova ordem social. A participação política foi, assim, garantida pela democracia representativa, como uma forma de apenas se delimitar demandas, sem haver real influência na tomada de decisões. O Estado tomou para si a atividade de garantir a igualdade e a dignidade. Incluiu, assim, os novos grupos sociais na sua atividade previdenciária, havendo um evidente alargamento das demandas sociais".
Demandas cada vez maiores versus limitadas possibilidades concretas de atendimento, somadas à distância do representante eleito dos interesses de seus eleitores geraram, obviamente, o que se convencionou chamar de "crise de legitimidade" do Estado moderno. Leciona Roberto Amaral:
"O desvanecimento do poder representante do cidadão, limitado no seu poder de escolha do mandatário, e a liberdade do mandatário, agindo sem vínculo com a representação, agravam a falência da democracia representativa tanto mais quando outros órgãos, organismos, instituições e entidades, sem raiz na vontade popular, sem pouso na soberania do voto, sem legitimidade popular, adquirem poder constituinte e, assim, passam a gerar direitos e poder, numa flagrante usurpação de mandato, que fratura de forma irremediável a democracia e a representação popular, sem a qual aquela falece por inanição".
Efetivamente, a representação pura e simples propiciou condições para que as oligarquias se fortalecessem, a ponto de Dalmo de Abreu Dallari utilizar-se da expressão "partidocracia" para referir-se ao produto final da adoção desmesurada da democracia representativa:
"Especialmente a partir do Século XIX enveredamos pelo caminho dos partidos políticos, começamos a exigir a participação do povo através de partidos políticos. E chegamos a um ponto em que o partido não é mais um representante do povo, ele é um substituto do povo, e aquilo que no começo se propunha como democracia, degenerou em partidocracia. E assim decisões da mais alta relevância são tomadas sem que o povo participe e sem que o povo saiba exatamente porque foram tomadas".
Se tais conseqüências atormentaram até mesmo nações desenvolvidas, com um regime democrático já consolidado, em Estados ainda em desenvolvimento e sem instituições sólidas, com uma conflituosidade exacerbada na base da sociedade, a representação gerou resultados funestos. Nossa sociedade não foi admitida a participar das grandes conquistas políticas da nossa história, que via de regra se caracterizaram como "concessões benevolentes" das elites, que sempre souberam antecipar-se na concessão dos direitos, "frustrando a conquista deles pela senzala".
"Os fracassos da Quarta República provocaram em todo o País uma considerável descrença da Sociedade no aparelho representativo tradicional. O emprego deste, ao longo de quatro repúblicas, por mais de um século, não eliminou as oligarquias, não transferiu ao povo o comando e a direção dos negócios públicos, não fortaleceu nem legitimou nem tampouco fez genuína a presença dos partidos no exercício do poder. Ao contrário, tornou mais ásperas e agudas as contradições partidárias em matéria de participação governativa eficaz. Do mesmo passo fez, também, do poder pessoal, da hegemonia executiva e da rede de interesses poderosos e privilegiados, a essência de toda uma política guiada no interesse próprio de minorias refratárias à prevalência da vontade social e sem respaldo de opinião junto das camadas majoritárias da sociedade".
Como antídoto para tal enfermidade do Estado, buscou-se legitimar as ações estatais através de mecanismos que garantissem uma vinculação entre as decisões políticas e a vontade da população. Inseriram-se, pois, nos ordenamentos jurídicos das nações modernas, instrumentos para que o povo participasse diretamente da formulação da vontade governamental, originando o conceito de democracia semidireta ou participativa, definida como "um processo de construção gradual que não compreende o banimento de todas as formas de representação, mas sua substituição por aqueles instrumentos de participação popular que implicam intervenção do governado na governança e seu controle sobre os governantes".
Buscou-se, com isso, sem que houvesse o completo banimento da representação, uma atenuação da dicotomia entre governantes e governados, uma retomada do conceito rousseauniano povo, "povo-ícone, o povo do contrato social, donde a democracia compreendida como regime que possibilita a participação dos governados na formação da vontade governativa".
Temos para nós que somente através de uma análise histórica da deformação operada no conceito de democracia durante o passar dos séculos é que podemos compreender esta graduação da quantidade de participação popular em suas diversas espécies. Racionalmente não é concebível dentro de um regime democrático uma construção argumentativa que retire a possibilidade do povo participar diretamente do exercício do poder, já que é o próprio povo que detém a titularidade de tal poder. A expressão "democracia participativa", portanto, revela-se tautológica:
"A democracia não é apenas uma forma de governo, uma modalidade de Estado, um regime político, uma forma de vida. É um direito da Humanidade (dos povos e dos cidadãos). Democracia e participação se exigem, democracia participativa constitui uma tautologia virtuosa. Não há democracia sem participação, sem povo. O regime será tanto mais democrático quanto tenha desobstruído canais, obstáculos, óbices, à livre e direta manifestação da vontade do cidadão".
2.2 - Democracia no Estado brasileiro
Dentro do contexto histórico acima descrito, devemos debruçarmo-nos, agora, sobre a opção política escolhida pelo texto constitucional em vigor.
Iniciamos nossa análise pelo preâmbulo e pelo artigo 1º e seu parágrafo único, onde o constituinte autodenomina-se representante do povo brasileiro, de onde afirma emanar o poder político do Estado Democrático de Direito que proclama instituído, sob a forma republicana.
Tais proclamações não constituem apenas declarações políticas vagas e imprecisas, mas sim verdadeiros princípios constitucionais, que "ocupam o lugar mais alto e nobre na hierarquia dos ordenamentos jurídicos" e norteiam a interpretação e aplicação tanto das próprias regras constitucionais, como de toda a legislação infraconstitucional, inclusive, como é cediço, das normas sobre gestão participativa da cidade veiculadas pelo Estatuto da Cidade.
Dos princípios da soberania popular, da democracia e da república várias e importantes conseqüências devem ser extraídas, sobretudo o direito do povo a uma participação direta na condução da coisa pública.
A constituição de um Estado Democrático de Direito supera a simples noção tradicional de Estado submetido às leis, para indicar um caminho de democratização do poder, invariavelmente destinado à participação popular:
"Por outras palavras, o Estado, sem deixar de ser ''Estado de Direito'', protetor das liberdades individuais, e sem deixar de ser ''Estado Social'', protetor do bem comum, passou a ser também ''Estado Democrático''. Daí a expressão Estado de Direito Social e Democrático. Não que o princípio democrático já não fosse acolhido nas concepções anteriores, mas ele passa a ser visto sob nova roupagem. O que se almeja é a participação popular no processo político, nas decisões do Governo, no controle da Administração Pública".
"A legitimação popular, sem dúvida, decorre lógica e diretamente da forma de governo (República), do tipo de Estado (Democrático de Direito) eleitos pelo constituinte, além é claro da titularidade do poder que lhe foi conferida. Mas não só disso. A cidadania, parece-nos, é o grande fator de legitimação do povo, permitindo que haja em defesa das instituições democráticas".
E a democracia - a ser vista pelo jurista como verdadeiro princípio jurídico - também fundamenta a exigência de participação popular, ao propugnar pela chamada "identidade democrática", ou seja, "a identidade entre ''povo'' e ''governo''".
"No que tange à realidade institucional brasileira, a junção da noção de democracia à de Estado de direito, levada a efeito pela atual Constituição, muito mais que estabelecer um qualificativo do modo de ser do nosso Estado Federal, foi responsável pela atribuição aos cidadãos de um direito de primeiríssima grandeza, de importância inquestionável: o direito de participação nas decisões estatais".
De fato, parece-nos ter sido a opção do constituinte de 1.988 a adoção de um sistema democrático semidireto ou participativo. Independentemente da razão de ser das disposições constitucionais sobre a participação popular, tidas por alguns como um verdadeiro descuido do constituinte conservador, a análise sistemática dos princípios e normas constitucionais que se referem ao tema apontam para um sistema que se aparta da representatividade tradicional, e em muitos pontos a supera.
A modificação de redação experimentada pelo artigo 1º, parágrafo 1º da Carta, se comparado aos textos similares constantes dos anteriores textos magnos brasileiros, revela uma modificação substancial na forma de exercício do poder político. Deixou-se de lado o tradicional "Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido" para, mantendo-se a soberania popular, expressamente alterar-se a forma de exercício do poder que passa a ser exercido por meio de representantes eleitos ou diretamente, ambas as formas submetidas à clausula final "nos termos desta Constituição".
Com argúcia, Anderson Sant''Ana Pedra refere-se a tal modificação de redação da seguinte forma:
"Observa-se que o legislador constituinte conferiu nova redação à cláusula que, desde a Constituição de 1934, consagra o princípio da soberania popular em nossas constituições. Assim, à tradicional afirmação de que ''todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido'', enunciado emblemático de um modelo de democracia predominantemente representativa, não conduziu o Constituinte de 1988 que preferiu declarar que ''todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição''. Estaria assim assinalada a passagem ao que tem sido interpretado como um modelo de democracia participativa, semidireta ou plena, em que o exercício da soberania popular se estende para além do voto, com a preservação da potencial constituinte dos cidadãos".
Também Laís Almeida Mourão foi sensível à utilização do advérbio diretamente em nosso texto fundamental:
"É exatamente do desdobramento desse promissor advérbio diretamente que emergem os mecanismos institucionais de participação popular, considerada um princípio democrático que concretiza a realização da soberania popular, exercida de modo combinado por instituições de Democracia Direta e Representativa, de forma que uma não exclua a outra – ao contrário, para que se conjuguem e se completem em prol do bem comum, fim último a ser buscado pela Administração Pública".
E não é só. O artigo 14 da Constituição, num desdobramento das disposições fundamentais constantes do artigo 1º e seu parágrafo único, estabelece, em rol que reputamos apenas exemplificativo, outras formas de exercício direto da soberania popular, concorrentemente ao sufrágio universal.
Além disso, em diversas outras passagens o direito de participação popular é expressamente referido, v.g na exigência de participação das associações representativas no planejamento municipal (artigo 29, XII), no gerenciamento da seguridade social (art. 194, parágrafo único, VII), da saúde (art. 198, III), da assistência social (artigo 204, II) e da educação (artigo 206, VI), entre outros inúmeros dispositivos que se ligam, direta ou indiretamente, ao tema.
Portanto, é mister afirmar que a vigente Constituição da República estabeleceu um sistema de exercício do poder político que conjuga a tradicional representação com a intervenção direta do povo no desempenho de todas as funções estatais (administrativa, legislativa e judiciária), superando a "velha dicotomia Estado e sociedade civil", com o que os "particulares, os cidadãos, os destinatários finais das ações estatais, paulatinamente estão deixando de ser considerados como intrusos nas atividades administrativas, especialmente nos processos de tomada de decisões".
Vivemos, pois, numa democracia participativa.
Mas é evidente que tal constatação, apesar de afinada com uma moderna tendência do mundo ocidental não basta a uma transformação de nossa sociedade, ainda imersa em ranços oligárquicos que surpreendem pela persistência, e polarizada por um debate inútil sobre estatismo e privatismo. É necessário que os chamados "operadores do direito" sejamos suficientemente corajosos para extrair do texto constitucional suas efetivas possibilidades, a fim de "impedir que a Constituição se avilte ao ponto de funcionar como instrumento de exclusão social, quando oposta é a sua razão de ser, e para a qual foi concebida na sociedade democrática de direito".
A cidadania ativa deve superar sua condição de mito; deve ser mais que uma promessa, apesar da qual "conservam-se problemas crônicos, como a truculência policial, abusos de autoridades administrativas, inoperalidade, corrupção, impunidade", pois "se não temos cidadania (e, por conseqüência, cidadãos), se não temos participação consciente (um amplo contingente de pessoas conscientes e dispostas a participar da e) na condução da sociedade organizada em Estado, não temos democracia".
A participação popular, muito mais do que uma nova forma de exercício do poder político no Estado, muito mais do que mecanismo que permite a correção da oligarquia, muito mais do que princípio jurídico norteador do processo interpretativo, é mecanismo que garante a eficácia social da Constituição, sobretudo em constituições analíticas como a nossa, povoadas de diretrizes programáticas cuja inaplicabilidade sempre foi a aposta - vencedora - de todos os que buscam perpetuar o estado de desigualdade presente em nossa sociedade.
"Não há efetividade possível da Constituição, sobretudo quanto à sua parte dogmática, sem uma cidadania participativa. Veja-se que a ordem jurídica, como já afirmamos em outro estudo, na generalidade das situações, é instrumento de estabilização, e não de transformação. Sem deixar de reconhecer-lhes um ocasional caráter educativo, as leis, usualmente, ''refletem'' - e não promovem - conquistas sociais longamente amadurecidas no dia-a-dia das reivindicações populares".
2.3 - Soberania popular e soberania parlamentar
Dentro do quadro acima descrito, fácil é a constatação de que o princípio da participação popular enfraquece - ou ao menos impõe uma reavaliação da importância - de alguns outros princípios constitucionais tradicionais, sobretudo a soberania parlamentar. Mas a tensão entre princípios constitucionais (onde não é cabível falar-se em antinomia) deve ser encarada como um acontecimento natural dentro de constituições democráticas, "que forçosamente precisa apresentar tensão interna congênita, sob pena de não traduzir, de modo legítimo e em permanente legitimação, os multifacéticos anseios alojados no corpo e na alma da sociedade, suscitando ou impondo o permanente trabalho interpretativo de compatibilização e de dação de vida organizada às prescrições fragmentárias". (p. 234).
Marcelo Campos Galuppo expõe com clareza a questão:
"No plano da justificação, a Constituição desempenha um papel especial quanto aos princípios no Estado Democrático de Direito. Apesar de não poder ser concebida como o único repositório dos mesmos, é tarefa sua, por excelência, indicar (e preservar) aqueles princípios reputados mais importantes pelos cidadãos por meio do representante constituinte sensível à sociedade. A concorrência entre os princípios constitucionais revela uma característica fundamental da sociedade em que existe um Estado Democrático de Direito".
Tradicionalmente, o princípio da participação popular, quando em tensão com o princípio da soberania parlamentar, tem sido postergado, o que reputamos uma completa inversão dos valores consagrados pelo constituinte de 1.988. A soberania popular, remodelada pela nova dicção do artigo 1º, parágrafo único da Carta de 1.988, somada às inúmeras referências à participação popular espalhadas pelo texto magno, demonstram que o exercício direto da soberania popular é valor prestigiadíssimo, que deve prevalecer quando confrontado com outras formas de exercício do poder político.
Por outro lado, a sonora declaração constitucional de que "todo poder emana do povo", belo resquício contratualista, deve sempre nortear toda e qualquer interpretação sobre as formas de exercício do poder político, sempre prestigiando a solução que aponte para a maximização do exercício direto das funções estatais pelos verdadeiros detentores do poder soberano.
A interpretação jurídica pressupõe a hierarquização, seja de normas, seja de princípios. Hierarquizar é "a nota suprema da interpretação jurídica como um todo". A hierarquização de princípios constitucionais, entretanto, demanda uma atenção especial ao chamado princípio da proporcionalidade, como bem nos mostra Willis Santiago Guerra Filho:
"Para resolver o grande dilema da interpretação constitucional, representado pelo conflito entre princípios constitucionais, aos quais se deve igual obediência, por ser a mesma a posição que ocupam na hierarquia normativa, preconiza-se o recurso a um ''princípio dos princípios'', o PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, que determina a busca de uma ''solução de compromisso'', na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo o(s) outro(s), e jamais lhe(s) faltando totalmente com o respeito, isto é, ferindo-lhe(s) seu ''núcleo essencial'' onde se acha insculpida a dignidade humana".
Não se olvida aqui destas preciosas lições de hermenêutica constitucional. Mas o que refutamos, por completo, é a fragilização justamente do princípio da participação popular, que deriva diretamente da afirmação da soberania popular, quando em conflito com os mecanismos tradicionais de representação parlamentar. Ora, o sistema representativo apenas deve ser encarado - numa sociedade que proclama o povo como titular da soberania - como um mecanismo suplementar de exercício do poder político, que cede sempre que esteja presente uma via direta de exercício desse poder pelo seu próprio titular.
Podemos afirmar, portanto, com suporte em Maria Victoria de Mesquita Benevides, que qualquer atividade de interpretação constitucional somente estará afinada com os valores prestigiados pelo texto constitucional de 1.988 se tiver como pressuposto o "postulado da soberania popular, à qual deve estar submetida a representação, para que esta seja efetivamente uma representação democrática".