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O desconhecimento do injusto e a possibilidade de exclusão da culpabilidade por erro de proibição nas leis penais em branco heterogêneas

Agenda 09/07/2016 às 14:06

Em decorrência de inúmeras alterações de complementos das leis penais em branco heterogênea, quanto a remissão total à norma de complementação, poderá ocasionar escusável desconhecimento da ilicitude do fato por parte dos destinatários das lex imperfecta.

O delito é concebido para a maioria dos autores, como fato típico, ilícito e culpável, conforme o conceito analítico tripartite de crime. A corrente tripartida é amplamente majoritária na doutrina brasileira, abrangendo os teóricos casualistas, finalistas e funcionalistas. Importante pontuar que o Brasil adota a teoria finalista da ação de Hans Welzel, com a reforma ocorrida no Código Penal em 1984.  

Importa a concentração de análise, no que tange ao terceiro elemento do conceito analítico de crime, ou seja, a culpabilidade. Segundo Guilherme de Souza Nucci, a culpabilidade trata-se de elemento essencial do conceito analítico de crime, por apresentar relevante fator ético para a concretização da figura delituosa, visto representar o juízo de censura atribuível ao autor do fato típico e ilícito (injusto penal); sem a reprovação social, pouco importa haver injusto, pois, crime não é.

Portanto, quando ausente a culpabilidade, não há que se falar em delito, tampouco, em punição estatal por intermédio do Estado-juiz.

Ainda, o direito impõe a todos o prévio conhecimento da lei, a partir do momento em que esta é devidamente publicada no Diário Oficial e passado, conforme o caso, o período de vacatio legis, se houver previsão em lei. Após a publicação, torna-se a lei penal, em tese, presumivelmente conhecida por todos os destinatários.

A culpabilidade se encontra na fórmula nullum crimen sine culpa, que demonstra a impossibilidade de atribuir ao agente fato, que não esteja revestido de reprovabilidade social, verificado quanto a análise do terceiro elemento do conceito analítico de crime. Assim, para que não ocorra à imputação de um delito culpável, deve-se recorrer ao chamado erro de proibição, que incide sobre a punibilidade do fato, pelo desconhecimento escusável da infração constante na lei penal. 

 Inicialmente, neste primeiro artigo, limita-se na conceituação das denominadas leis penais em branco e a sua respectiva correlação com o erro de proibição. Já no segundo artigo, será abordada a possibilidade de exclusão da culpabilidade (pelo mencionado erro de proibição), nas leis penais em branco heterogêneas ou heterovitelíneas, tocante a remissão total à norma de complementação.  

Assim, as denominadas leis penais em branco (Blankettstrafgesetz, em alemão), trata-se de expressão criada por Karl Binding, concebidas como normas que embora cominem sansão penal descrita no preceito primário do tipo penal incriminador, dependem de complementação por outra norma, geralmente de nível inferior, tais como regulamentos, portarias ministeriais, decretos, entre outros, a modo de precisar-lhe o significado e o conteúdo do preceito primário.

A gênese conceitual apresentada por Binding refere-se às leis penais branco heterogênea, devido à norma de complementação ser proveniente, de Poder distinto ao Poder Legislativo da União, que possui competência constitucional privativa para legislar em matéria penal, conforme prescreve o art.22, I, da Constituição Federal.

Edmund Mezger contribuiu para o desenvolvimento das leis penais em branco, antes apresentada pelo alemão Karl Binding. Para o mencionado autor alemão, a norma de complementação se encontrava em normas de nível inferior. Entretanto, Mezger apresentou outras possibilidades de técnica de reenvio das leis penais em branco, sendo esta realizada por outra lei emanada da mesma instância legislativa, pautando-se pela homogeneidade da fonte material de produção da lei penal.  

Binding se limitou a se referir às leis penais em branco em sentido estrito ou heterogêneas, todavia, Mezger criara outra modalidade denominada leis penais em branco em sentido amplo ou homogênea, colocando-as no âmbito da teoria do tipo penal. Assim, segundo Mezger, o complemento normativo poderia advir da mesma lei que estava à norma complementada ou de outra lei, contudo, de uma mesma fonte material.

O objeto do presente artigo se concentra nas leis penais em branco heterogênea, por apresentar maiores problemas de técnica legislativa. Contudo, o desenvolvimento apresentado por Mezger foi de grande importância para a ciência do Direito Penal, contribuindo com criação de uma nova técnica de reenvio normativo.

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Assim, superado a breve conceituação e desenvolvimento das leis penais em branco, será demonstrada no artigo seguinte a possibilidade de exclusão da culpabilidade por erro de proibição nas leis penais em branco heterogênea, quando ocorrer à técnica de reenvio normativo total à norma de complementação heterogênea, em flagrante desrespeito aos Princípios da Legalidade, Reserva Legal e Separação de Poderes. 

Superada a conceituação e desenvolvimento das leis penais em branco, mencionado no artigo anterior, pode-se afirmar que existem tipos penais em branco, no ordenamento jurídico brasileiro, que apresentam duvidosa constitucionalidade, por clara omissão do núcleo essencial da conduta proibida, que funciona como instrumento tipológico elementar de certeza, na descrição do tipo, para que todos os destinatários da lei penal entendam o que o Direito Penal valorou como proibido, e, por conseguinte, será objeto do ius puniendi pelo Estado-juiz.   

Exemplifica-se, a Lei 7.492/1986 que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, em seu art. 22, prescreve que “efetuar operações de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas no País”. A autorização encontra-se em norma de complementação expedida pelo Banco Central do Brasil (BACEN), por intermédio de várias circulares expedidas pelo mencionado órgão (como exemplo, apresenta-se as circulares 2.836/98 e a 3.234/04.), vindo a acarretar o fenômeno da sucessão das leis penais em branco no tempo. As circulares mencionadas apresentavam tecnicismo exacerbado, e dificultava, portanto, o conhecimento destas por parte dos destinatários da lei penal em branco, devido à rápida alteração e a utilização de termos técnicos altamente especializados, constantes nos instrumentos normativos administrativos.   

O mesmo ocorre com o art. 34 da Lei 9.605/1998, que define os Crimes Ambientais, ao mencionar “art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente”. Igualmente, não há clara demonstração do elemento de certeza, conforme preleciona o Tribunal Constitucional espanhol, pois, a depender do caso concreto, incorreria o pescador em erro de proibição, diante do desconhecimento constante na lei penal e pela baixa reprovabilidade da conduta do agente.

Assim, o órgão ambiental competente, que pertence ao Poder Executivo, mencionará se o ato de pescar (que para o homem médio é lícito), se tornará ilícito a depender da discricionariedade do administrador, contendo, portanto, o ato administrativo conteúdo proibitivo, que enseja ofensa aos Princípios Constitucionais da Legalidade,  Reserva Legal e Separação de Poderes.    

Assim, a remissão total à norma de complementação das leis penais em branco heterogêneas, pode ensejar conforme o caso, escusável desconhecimento da ilicitude do fato, e o conseqüente entendimento pela inexistência de crime.

Defende-se nos casos apresentados, duvidosa constitucionalidade das leis penais em branco heterogênea, com remissão absoluta à norma de complementação administrativa. Todavia, o Supremo Tribunal Federal (STF), ainda não se manifestou de forma a delinear os limites à técnica de remissão à norma de complementação extrapenal, invocando para si, a função de salvaguarda da Constituição e dos princípios constitucionais, em detrimento da falta de tecnicismo apresentado pelos legisladores, na formulação de alguns preceitos primário, constante no tipo penal incriminador

Portanto, se demonstrada à inexistência do núcleo essencial da proibição no tipo penal e a técnica de reenvio normativo ocorrer de forma absoluta, atribuindo a norma de complementação heterogênea (de natureza administrativa) toda a base descritível do delito, e não meramente regulamentativo ou complementário. Assim, poderá o agente incorrer em erro de proibição, como supramencionado, além de violação ao Princípio da Reserva Legal e ao Princípio da Legalidade, no tocante a lege certa.  

Referências

BRASIL. LEI NO 7.492 (1984). Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/LEIS/L7492.htm>, acesso: 01/06/2015

BRASIL. 9.605 (1998). Lei de Crimes Ambientais. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L9605.htm>, acesso: 02/06/2015

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Ed. Revistas dos Tribunais, 2002. 302-402 p.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar Comentado. São Paulo: Ed. Revistas dos Tribunais, 2013. 53 p. 

Sobre o autor
Paulo Henrique Ribeiro Gomes

Possui pós-graduação em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduação em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Minas Gerais). Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP).

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