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Um Estado, dois sistemas: dualidade jurídica e unidade nacional nas regiões administrativas especiais chinesas

Agenda 09/07/2016 às 14:46

Macau e Hong Kong, como RAEs, se adaptam em relação à soberania estatal chinesa e, diante do modelo capitalista, estabelecem as bases para: um estado, dois sistemas.

Desde a revolução socialista, instaurada pelo Partido Comunista, em 1949, sob o comando do ditador Mao Tse-Tung, as divergências políticas e dificuldades econômicas na China têm se provado grande empecilho para o pleno desenvolvimento da grande potência asiática. A grande extensão territorial do país, a constante luta por recursos para o financiamento da máquina estatal, assim como a grande influência exercida pelas nações colonialistas europeias entre o século XVI e o século XX, acabaram por impossibilitar o exercício uniforme do modelo socialista em todo o território chinês.

Sob o comando de Deng Xiaoping, frente ao declínio do socialismo evidenciado no fim do século XX, e considerada a cultura política e econômica herdada dos séculos de colonização europeia no país, o Partido Comunista Chinês elaborou, no início da década de 1980, o modelo político-econômico conhecido como “Um país, dois sistemas”. Sob tal princípio, o Estado chinês manteria sua organização política socialista, fundada em uma economia planificada e no estrito controle da vida civil pelo aparelho estatal, designando, no entanto, regiões específicas dentro de seu território dotadas de maior abertura econômica, possibilitando a constituição de pequenas economias de mercado.

As Zonas Econômicas Especiais, localizadas na faixa continental chinesa e caracterizadas pelos diversos incentivos fiscais e financeiros para a atração de capital estrangeiro, visam suplementar a economia nacional por meio de manufatura e exportação de produtos e tecnologias para as grandes potências ocidentais, de forma sempre subordinada ao governo central chinês. As Regiões Administrativas Especiais (RAEs), por outro lado, gozam de muito mais autonomia organizacional, possibilitando a construção de um regime político e econômico próprio, patentemente destoante do que encontramos na China continental.

Respectivamente colonizadas por Portugal e pelo Reino Unido, e só recentemente retornadas à soberania territorial da China, Macau e Hong Kong são hoje os grandes símbolos da dualidade política do país.

Dotadas, cada uma, de uma lei básica própria e competentes para regulamentar a grande maioria de seus assuntos internos, como organização política e judiciária, além de fixação de medidas fiscais e monetárias próprias, as RAEs encontram-se à margem da autoridade nacional chinesa.

Frente às restrições impostas pelo governo central chinês sobre as eleições democráticas previstas para 2017, têm surgido diversos protestos em Hong Kong não muito destoantes daqueles observados na chamada “primavera árabe”, de 2010 a 2014, em pleito pelas liberdades civis e pela democracia. Questionam-se as imposições do Estado soberano, assim como a legitimidade da sobreposição dos sistemas políticos em si.

Sobressai, portanto a indagação acerca da real natureza da política dualista chinesa. Existe mesmo alguma forma de soberania unitária em um país regido por ordenamentos jurídicos diametralmente opostos e conflitantes ou só existiria ali um espantalho, travestido de sistema político, mascarando a impossibilidade de coexistência de duas propostas de Estado incompatíveis?

Para que possa ser plenamente compreendido o fenômeno da dualidade política adotada pelo Estado Chinês a partir do final do século XX d.C., é necessário que se promova, antes de mais nada, o breve escorço não apenas histórico, mas sociopolítico e geográfico do desenvolvimento da região.

Logo de início, ao tentar buscar as origens e os fundamentos mais básicos do povo e da cultura que viríamos a conhecer como China, nos deparamos com um grande problema. A mitologia local, principal meio para a obtenção de informações históricas sobre a região, apesar de se preocupar em descrever detalhadamente a origem do universo e o trajeto traçado pelo povo chinês em suas conquistas, nunca realmente se dedicou a relatar os fatos que deram origem a tal população em primeiro lugar[1]. Desta maneira, resta somente o que podemos encontrar por meio de descobertas arqueológicas para realmente compreender o que ocorreu em tal período.

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A análise de documentos históricos somente começa a tomar alguma forma de consistência quando chegamos às proximidades dos anos 1500 a.C. Tem-se que nesta época os povos que viriam a formar a cultura chinesa viviam espalhados pela região norte do atual país, já dominando tecnologias importantes, como a domesticação de animais, o arado e rudimentares noções de direito e moral. Da interação de tais povos, num período de constante guerra entre os “reinos” ali existentes, surgiu eventualmente um governo monárquico central. Tratava-se da linhagem do mítico “Imperador Amarelo”, Huang-ti.

Diz a lenda que Huang-ti, por vencer heroicas batalhas contra os povos “bárbaros” que disputavam os territórios locais, foi geralmente aceito pelas tribos que ali habitavam como o primeiro real líder dos povos do Rio Amarelo[2].

Ocorre que, apesar do aumento de poderio militar e econômico conquistado com a consolidação das tribos que habitavam as planície, Huang-ti não foi capaz de dar a seu povo a segurança e superioridade bélica que eles esperavam frente aos povos estrangeiros. Durante os próximos mil anos, a região foi incessantemente disputada, mudando diversas vezes de mão entre os povos que ali viviam. Dessa maneira, com a ascensão e a queda das Três Dinastias: Xia, Shang e Zhou (ou Hsia, Shang e Chou), nomeadas de acordo com suas capitais[3], sobreveio o povo chinês, ainda que fragmentado em diversos pequenos reinos, a assimilar, inteiramente, as regiões dos vales do Rio Amarelo e do Rio Yangtze.

Considerado este período de formação da identidade nacional e de consolidação territorial chinesa, partimos para um dos períodos mais importantes da história do país, a “Era Imperial”. Nessa nova etapa, marcada por grandes avanços tecnológicos, políticos, econômicos e militares, os chineses vieram, finalmente, a organizar-se como um único Estado.

O consenso entre os historiadores é o de que a Era Imperial chinesa compreendeu-se entre 221 a.C. e 1911 d.C., tendo como marco inicial a ascensão ao poder do Imperador Qin Shi Huang. Shi Huang, proveniente da província de Qin, fortalecido econômica e militarmente por reformas administrativas de caráter legalista, foi capaz de, a exemplo dos Zhou, assimilar sob o seu comando a totalidade do território ocupado pelas seis províncias chinesas existentes à época. Desta maneira, tomando proporções comparáveis à da China continental dos dias de hoje, o reino de Qin deu início à mais longa e mais próspera era da civilização chinesa, moldando, sem dúvida, o Estado Chinês que conhecemos hoje[4].

Contando com os avanços políticos e econômicos proporcionados pela adoção de um governo único e centralizado, fortemente influenciado pelos ideais confucianistas de uma sociedade estratificada e rígida, assim como pelas legalistas impostas pelo Estado[5], a China Imperial (principalmente durante os períodos de 212 a.C. a 220 d.C. e de 1368 a 1644 d.C.), apesar da constante ameaça externa dos mongóis, foi capaz de expandir de forma extremamente eficaz a sua esfera de influência ao redor do mundo, tanto do ponto de vista diplomático quanto do ponto de vista mercantil. Tal expansão se mostra categoricamente exemplificada pelo domínio exercido pelos comerciantes chineses nos ambientes de troca por toda a região do então Hindustão e o do norte da África[6].

Foi nesta era, também, que a China estreitou os seus laços com as grandes nações europeias. Com a chegada das primeiras navegações portuguesas (1513), espanholas (1575) e britânicas (1637) ao continente asiático, firmaram-se diversas relações comerciais e políticas entre o povo sino e os distantes estrangeiros, incluindo o estabelecimento de diversas missões diplomáticas e da primeira colônia europeia em solo chinês (Macau, em 1513)[7].

Desmoralizado após uma série de eventos entre os anos de 1842 (Guerra do Ópio, que resultou na cessão do território de Hong Kong ao Reino Unido) e 1900 (Revolta dos Boxers), foi afligido o Império Chinês por extrema inquietação popular, de forma que, em 12 de maio de 1912, sucumbiu a dinastia imperial à República da China.

Após cerca de três décadas de indeterminação política e de guerra civil pelo poder no país, travada pelo Partido Nacionalista, Kuomintang, e o Partido Comunista Chinês (apoiado pela União Soviética), deu lugar a recém criada república ao regime atual, conhecido como República Popular da China, sob a liderança de Mao Tsé-Tung.

Mao, inspirado pelas teorias de Marx, no que tange à luta de classes e à ditadura do proletariado, buscou, logo na sua tomada do poder, estabelecer severas reformas de cunho social, político e econômico, com o intuito de transformar o Estado Chinês, até então eminentemente agrário e estratificado, em uma modernizada “utopia socialista”. Com o fracasso, no entanto, na imposição das medidas socializantes inerentes ao “grande salto adiante”, restou o país em frangalhos, acometido por imensurável e devastadora fome.

Fechada aos mercados externos pelos motivos ideológicos de seus governantes, a República Popular da China acabou se afundando cada vez mais na própria ineficiência econômica durante toda a extensão do governo de Mao, de forma que, à data de sua morte, já era claro que não havia mais ao país qualquer possibilidade de auto-sustento.

Devido, em grande parte, aos grandes custos de manutenção da máquina estatal, assim como às crescentes pressões internacionais pelo fornecimento de mão de obra e pela penetração dos mercados consumidores asiáticos, a China, como gigante potência asiática, se viu obrigada a abrir as portas para o mundo capitalista.

Com fundamento nas circunstâncias econômicas do país e sob as rédeas do socialista moderado Deng Xiaoping, foram providenciadas diversas medidas transicionais, de forma a possibilitar uma mais suave integração da China socialista ao mundo exterior, para o qual estivera fechada pelas últimas décadas.

Devido principalmente ao impressionante avanço tecnológico conquistado pelo mundo capitalista durante os anos em que estivera fora do jogo, já não existiam, há anos, as convenções e paradigmas comerciais a que a China estava acostumada.

É neste contexto que nasce a noção das Regiões Administrativas Especiais (RAEs), como seletos territórios subordinados à soberania territorial chinesa, mas com autonomia política e econômica suficiente para se mostrarem competitivos no panorama econômico internacional.

Retornadas recentemente à soberania territorial chinesa, Hong Kong e Macau se apresentavam como valiosíssimo recurso estratégico para o governo central de Beijing. Conciliando os interesses das grande empresas ocidentais em penetrar o ambiente asiático com as pretensões chinesas de capitar recursos para a sua modernização com a ampliação da capacidade produtiva, essas pequenas ilhas se mostravam perfeitas portas de entrada para o Estado chinês na economia mundial.

Exemplificando a aludida situação, Jack Chan[8], Deputy Director da Hong Kong Economic and Trade Office, aduz:

“Hong Kong is now the largest source of outside investment in China, accounting for about 60% of utilized foreign investment in China. Hong Kong also provides one-third of China’s total foreign exchange earnings. Additionally, China has increased its investments in Hong Kong and is now the third largest source of foreign investment in Hong Kong”

Tendo sido colonizadas há mais de um século, por exploradores portugueses e britânicos, respectivamente, Macau e Hong Kong estão plenamente adaptadas às constantes mudanças tecnológicas e logísticas que pautam o mercado moderno. E a independência total frente ao Estado chinês, até o fim da década de 1990, lhes poupou, apesar do evidente prejuízo quanto às relações comerciais locais, do desastre econômico sofrido pela China continental na constância da Grande Revolução Cultural.

Sobre esse assunto, é interessante a observação anotada por Gary S. Becker[9]:

"since the communist revolution in 1949, Hong Kong's economy has been greatly affected by what was happening in mainland China. During the Korean War, the Cultural Revolution, and other periods until the late 1970’s, Hong Kong was essentially cut off from mainland, so that it’s economy had to depend mainly on the West and Japan. As a result, it became a major exporter of textiles and other manufactured goods, and an important tourist attraction.”

Percebe-se, por aí, que, apesar do prejuízo comercial de estar impedida de negociar com o seu mais próximo vizinho durante os anos mais duros do regime comunista, Hong Kong teve a fortuna de, durante o período mais segregado da história chinesa, fortalecer relações diplomáticas e mercantis com as grande potências capitalistas, tanto no hemisfério ocidental, quanto na Ásia.

Por estas e outras é que, no momento de reabertura da China à comunidade global, regiões como Hong Kong e Macau são tão essenciais. Aproveitando-se dos meios de comunicação abertos com as grandes economias globais, a China potencializa a sua capacidade de escoamento de produtos e serviços provenientes de terras continentais, exercendo uma posição cada vez mais dominante no mercado mundial.

É clara, no entanto, a disparidade entre as realidades vividas nos territórios continentais e nas Regiões Administrativas Especiais. Tendo sido os seus governos quase que completamente organizados nos modelos de seus países colonizadores, os sistemas jurídicos das pequenas ilhas diferem, em quase tudo o que é relevante, dos vigentes nos territórios submetidos ao crivo do governo central.

É especialmente relevante fazer menção a tais diferenças quando se for discutir a questão da aplicabilidade dos diversos direitos fundamentais, seja de caráter político, seja de caráter social.

 Ao escolher mudar o seu domicílio de Macau para Beijing, o cidadão chinês pode estar, por exemplo, abrindo mão do seu direito de ter mais de um filho sem intervenção estatal. Pode também estar declinando dos seus direitos de anonimidade e de livre acesso à internet.

Essas consequências até podem parecer pequenas, mas quando as restrições começam a tocar assuntos como o direito à participação em eleições diretas pluripartidárias e à restrição da obtenção de propriedade privada, percebemos quão diferentes realmente são os sistemas[10].

Considerados os níveis de autonomia dado às províncias e as diferenças culturais observadas entre elas e as demais regiões chinesas, é justificável mesmo pensar que não se trata de um só país. Com a liberdade de emitir os próprios documentos de identidade e passaportes, assim como de eleger os seus próprios representantes, de fato, só estão os entes administrativos vinculados ao governo central chinês no que se refere a algumas questões de segurança nacional.

Fica difícil dizer, portanto, que exista motivo bastante para justificar a permanência de Hong Kong e Macau sob a soberania chinesa, exceto o seu extraordinário poderio econômico. E, se for este o caso, não são facilmente compreensíveis os motivos pelos quais esses entes administrativos aceitariam submeter-se a tratamento tão unilateral; mas se espera que, caso os dois sistemas decidam por se manterem em conjunto, possam coexistir de forma construtiva e complementar.

referência bibliográfica

LEI BÁSICA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA

THE BASIC LAW OF THE HONG KONG SPECIAL ADMINISTRATIVE REGION OF THE PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA

BECKER, G. S. In: WONG, Y. C. R. Diversity and Occasional Anarchy: On Deep Economic and Social Contradictions in Hong Kong. [S.l.]: Hong Kong University Press, 2013. p. 13.

CHAN, J. Hong Kong's Role after 1997. Loyola of Los Angeles International and Comparative Law Journal, Los Angeles, v. 12, p. 57, 1990.

HUCKER, C. O. China's imperial past: an introduction to Chinese history and culture. [S.l.]: Stanford University Press, 1975. p. 22-24.

LEVANTHES, L. When China Ruled the Seas: The Treasure Fleet of the Dragon Throne, 1405–33. Oxford: Oxford University Press, 1997.

THE BERTELSMANN FOUNDATION, GÜTERSLOH. Timeline of Chinese-European Cultural Relations. [S.l.]: [s.n.], 2004.

WILKINSON, E. P. Chinese History: A Manual. [S.l.]: Harvard University Asia Center, 2000. p. 95.

36 Colum. J. Transnat'l L. 495 (1998) Hong Kong Democracy; Fiss, Owen M.

SCOTT, Ian. Political change and the crisis of legitimacy in Hong Kong. University of Hawaii Press, 1989.

Ghai, Yash P. Hong Kong's new constitutional order: the resumption of Chinese sovereignty and the Basic Law. Vol. 308. Hong Kong: Hong Kong University Press, 1999.


[1] HUCKER (1975, p.22)

[2] HUCKER (1975, p.23)

[3] (WILKINSON (2000, p. 95)

[4] HUCKER (1975, p. 41-43)

[5] HUCKER (1975, p. 69)

[6] (LEVANTHES, 1997)

[7] (THE BERTELSMANN FOUNDATION, GÜTERSLOH, 2004) p. 3

[8] CHAN (1990, p. 57)

[9] BECKER (2013, p. 15)

[10] LEI BÁSICA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA

Sobre o autor
Mateus Henrique Andrade de Carvalho

Bacharelando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), estagiou, nos anos de 2014/2015, na 13a Procuradoria Cível do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

Informações sobre o texto

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