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Princípios penais

Agenda 20/07/2016 às 14:13

Todo ordenamento jurídico, como tal, possui como alicerce básico um conjunto de princípios que norteiam seu entendimento, interpretação e aplicação. Não poderia ser diferente com o Direito Penal, que possui princípios que lhe são peculiares.

Todo ordenamento jurídico, como tal, possui como alicerce básico um conjunto de princípios que norteiam seu entendimento, interpretação e aplicação. Como é cediço, a ciência jurídica segmenta-se em determinados ramos, vertentes temáticas com o escopo de facilitar o estudo do direito e sua incidência no caso concreto, ramos estes que também são permeados por princípios.

Não poderia ser diferente com o Direito Penal, que possui princípios que lhe são peculiares, fundamentam toda sua análise e, valendo-se do escorreito ensinamento de Robert Alexy (2008, p. 90), servem como comandos de otimização do sistema jurídico-penal pátrio.

O Direito Penal, como qualquer outra manifestação do Direito, deve ostentar como fonte de legitimidade e do conteúdo de suas normas a Constituição Federal de 1988. Assim, o texto constitucional possui regras e, notadamente, princípios que norteiam a aplicação e interpretação daquele, de modo que os princípios penais devem refletir, em última análise, o teor das normas constitucionais.

1.1 Princípio da legalidade

Em um Estado democrático de Direito, como o Estado Brasileiro, o ius puniendi (direito de punir) é prerrogativa, direito próprio e exclusivo do Estado, tendo em vista que os meios arcaicos de solução de controvérsias não mais se encontram vigentes, e de outro modo não poderia ser. Contudo, o Estado não pode exercer esse direito de punir (os indivíduos que eventualmente tenham cometido alguma transgressão contra bens jurídicos de terceiros) de forma livre e sem parâmetros básicos e prévios.

Neste cerne, insere-se o princípio da legalidade, que visa expurgar uma intervenção aviltante levada a cabo pelo Estado e expelir a arbitrariedade e o excesso do poder punitivo, tendo em vista que este só deve interferir de forma estritamente necessária nas liberdades individuais. Assim, o mencionado princípio traduz uma limitação ao poder de punir do Estado.

De acordo com o princípio em testilha, a feitura de normas incriminadoras somente pode ocorrer mediante lei. Nenhum fato pode ser considerado como delituoso e nenhuma pena pode ser aplicada sem que exista uma lei prévia definindo-o como tal e fixando uma sanção respectiva.

Tal dicção encontra-se insculpida no artigo 1° do Código Penal Brasileiro de 1940: “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 1940). Apesar do referido artigo apresentar como rubrica “anterioridade da lei”, tal redação traduz de forma clara o mandamento inserto na melhor acepção do princípio da legalidade. Ademais, a própria Constituição brasileira de 1988, documento jurídico de maior relevância para todo o arcabouço jurídico pátrio, assevera em seu artigo 5°, inciso XXXIX a célebre redação do princípio.

Aqui, é essencial delimitar que não basta que a lei estabeleça um fato como criminoso, é imperioso que esta defina com precisão, de forma detida e objetiva a conduta que se visa evitar. Logo, o legislador, com vistas a estabelecer uma eficácia plena ao princípio da nullumcrimen, nullapoenasine lege, deve evitar a utilização de expressões dúbias, vagas ou imprecisas.

De acordo com Rogério Sanches (2014), o princípio da legalidade possui três fundamentos básicos, quais sejam: político, democrático e jurídico. Político no sentido de que os Poderes Executivo e Judiciário devem se vincular às leis formuladas abstratamente, de modo que se impeça julgamentos ou interpretações arbitrárias. Democrático em nítida consonância com o princípio da separação de poderes, uma vez que somente os representantes do povo, assim eleitos, têm a missão de elaborar as leis (incluindo-se, por óbvio, as leis penais incriminadoras). E jurídico, dado o caráter intimidatório da lei.

Assim, nos dizeres do insigne Cezar Roberto Bittencourt (2014, p. 51):                          

[...] objetiva-se que o princípio da legalidade, como garantia material, ofereça a necessária segurança jurídica para o sistema penal. O que deriva na correspondente exigência, dirigida ao legislador, de determinação das condutas puníveis, que também é conhecida como princípio da taxatividade ou mandato de determinação dos tipos penais.

O princípio da legalidade, portanto, constitui uma garantia do cidadão, material conforme prelecionam Sanches e Bittencourt, de que o Estado apenas se servirá dos meios previamente estabelecidos pela lei quando da aplicação da lei penal, tendo em vista que em nosso ordenamento jurídico a regra é a manutenção dos direitos individuais, na maior amplitude possível, somente se admitindo a intervenção estatal balizada por parâmetros claros, objetivos e prévios.

Para Luiz Régis Prado (2014), o princípio da legalidade possui como decorrência lógica garantias e consequências que consubstanciam seu aspecto material, a saber: garantias criminal e penal; garantias jurisdicional e penitenciária (de execução); princípio da irretroatividade da lei e o princípio da determinação ou da taxatividade.

As garantias criminal e penal decorrem da impossibilidade de existência de crime e pena sem lei em sentido estrito e concretizada de acordo com os ditames da Constituição. “ A lei formal, e tão somente ela, é fonte criadora de crimes e de penas, de causas agravantes ou de medidas de segurança, sendo inconstitucional a utilização em seu lugar de qualquer outro ato normativo” (PRADO, 2014, p. 162).

As garantias jurisdicional e penitenciária ou de execução, por sua vez, conjugam-se com o princípio da legalidade ou da reserva legal e traduzem direitos assegurados no bojo do texto constitucional, quais sejam: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (art. 5°, LIII, CF/88); “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (art. 5°, LVII, CF/88); “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado” (art. 5°, XLVIII, CF/88); “é assegurado aos presos o respeito  à integridade física e moral” (art. 5°, XLIX, CF/88).

A irretroatividade da lei, como é cediço, é a regra em nosso sistema jurídico, uma vez que uma lei penal só poderá retroagir para beneficiar o réu (art. 5°, XL, CF).

Por fim, o princípio da determinação e da taxatividade possuem como destinatários o legislador e o juiz, a depender do momento da análise a ser efetuada. Neste mister, irretocável a lição de Luiz Regis Prado (2014, p.163):

Através da determinação, exige-se que o legislador descreva da forma mais exata possível o fato punível. Diz respeito, em especial, à técnica de elaboração da lei penal, que deve ser suficientemente clara e precisa na formulação do conteúdo do tipo de injusto e no estabelecimento da sanção para que exista segurança jurídica. (…) Pela taxatividade, busca-se estabelecer as margens penais as quais está vinculado o julgador. Isso vale dizer: deve ele interpretar e aplicar a norma penal incriminadora nos limites estritos em que foi formulada, para satisfazer a exigência de garantia, evitando-se eventual abuso judicial. Em outras palavras, restringe-se a liberdade decisória do juiz (arbitriumjudicis) a determinados parâmetros legais, que não podem ser ultrapassados no momento da aplicação da lei ao caso concreto).

Tal posicionamento do autor se coaduna com a tese amplamente defendida na doutrina e neste, de que, dado o gravame imposto pela norma penal (que invade a esfera da liberdade individual - claro que quando perpetrado algum ilícito pelo indivíduo), a reprimenda imposta deve encontrar guarida na perfeita dicção do mandamento legislativo, com vistas a evitar, inclusive, a utilização de conceitos jurídicos vagos ou indeterminados no seio do tipo penal.

Contudo, eventuais imprecisões cometidas pelo legislador não podem servir como justificativa ou ensejo para prática de infrações penais. Outrossim, o indivíduo não pode se escusar de cumprir a lei alegando sua falta de capacidade de entendimento jurídico ou de desconhecimento desta.

 Neste mérito, insere-se a chamada valoração paralela na esfera do profano. Profano ou leigo é aquele que não detém conhecimentos acerca da ciência jurídica. O juiz deve analisar em cada caso a capacidade do agente de entender e querer, bem como se possuía condições de saber que determinado ato ou omissão configuraria uma ilicitude. Destarte, o sujeito ativo não precisa ter conhecimentos técnicos do enquadramento jurídico de seu comportamento, sendo suficiente o entendimento de que sua atitude (ou falta dela) não se coaduna com o direito. 

1.2 Princípio da Intervenção Mínima

Apesar da inegável importância conferida ao princípio da legalidade, este não é suficiente, na seara penal, para tutelar de forma plena os direitos individuais, haja vista que o Estado, utilizando-se de lei prévia, poderia, ao seu bel prazer, estabelecer tipos penais e fixar penas que maculem a dignidade da pessoa humana.

Desta feita, a intervenção penal apenas deve ocorrer quando esta se afigure como estritamente necessária para salvaguardar um direito. Neste sentido, Cleber Masson (2015, p. 48) aduz que:

[...] estatuiu a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu art. 8º, que a lei somente deve prever as penas estrita e evidentemente necessárias. Surgia o princípio da intervenção mínima ou da necessidade, afirmando ser legítima a intervenção penal apenas quando a criminalização de um fato se constitui meio indispensável para a proteção de determinado bem ou interesse, não podendo ser tutelado por outros ramos do ordenamento jurídico.

É de bom alvitre delimitar que o princípio da intervenção mínima, como bem aponta Masson, (2015), possui como destinatários precípuos o legislador e o intérprete do Direito.

Com efeito, o legislador deve ter cuidado ao selecionar as condutas merecedoras da tutela penal; considerando que o Direito Penal é a ultimaracio, somente os comportamentos que não foram suficientemente protegidos pelos outros ramos do direito é que devem ser objeto dos olhares do Direito Penal.

De outra ponta, o intérprete deve efetuar uma aplicação minuciosa da lei, mediante a análise de tipicidade do comportamento, com o escopo de averiguar a necessidade de intervenção  penal, uma vez que, se este observar que outro ramo do sistema jurídico é capaz potencialmente de solucionar o problema vigente no caso concreto, não obstante a existência de um tipo penal que incrimine aquela conduta, deverá relegar a incidência do direito penal em detrimento da aplicação das normas inerentes a outro ramo do direito.

Pode-se subdividir o princípio da intervenção mínima em dois outros, quais sejam, princípio da fragmentariedade e princípio da subsidiariedade. Tal divisão toma por base os dois vieses do referido princípio, conforme bem aponta Rogério Sanches (2014, p. 71), ao aduzir que a intervenção do Direito Penal “fica condicionada ao fracasso das demais esferas de controle (caráter fragmentário), observando-se somente os casos de relevante lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado (caráter fragmentário)”.

1.3 Princípio da fragmentariedade

O Direito Penal é fragmentário em virtude de nem todas as ilicitudes perpetradas contra os ditames do ordenamento jurídico configurarem transgressões penais, mas tão somente aquelas que maculem “valores fundamentais para a manutenção e o progresso do ser humano e da sociedade”. Em síntese, “todo ilícito penal será também ilícito perante os demais ramos do Direito, mas a recíproca não é verdadeira” (MASSON, 2015, p. 49).

Diante de seu caráter nitidamente fragmentário, o Direito Penal é considerado como a ultimaracio, última alternativa que pode ser utilizada com vistas a evitar lesões ao bem jurídico.

Este primeiro viés ou caráter do princípio da intervenção mínima se projeta no plano abstrato, uma vez que ele vai nortear a criação da norma e dos tipos penais, sendo que esta apenas se materializará quando os demais ramos do direito não tiverem logrado êxito na árdua missão de tutelar um bem jurídico. Logo, este se destina, precipuamente, ao legislador.

Consoante o princípio da fragmentariedade, a norma penal deve se ater apenas a uma parcela de condutas, fragmentos, de modo que esta somente se ocupe dos bens jurídicos mais importantes.

Neste mister, é de grande valia a ponderação contida no referido ensinamento de Masson (2015, p. 50):

Com a evolução da sociedade e a modificação dos seus valores, nada impede a fragmentariedade às avessas, nas situações em que um comportamento inicialmente típico deixa de interessar ao Direito Penal, sem prejuízo da sua tutela pelos demais ramos do Direito. Foi o que aconteceu, à título ilustrativo, com o adultério.

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Destarte, acaso um bem jurídico deixe de merecer a proteção específica e última do Direito Penal, não existe óbice à despenalização da conduta, chamada pelo autor de fragmentariedade às avessas, que se efetiva mediante a abolitio criminis.

1.4 Princípio da subsidiariedade

O princípio da subsidiariedade, por sua vez, determina que o Direito Penal apenas atue quando os demais ramos do Direito não sejam capazes de exercer o controle da ordem pública e de proteger o bem jurídico de possíveis lesões.

Assim, o Direito Penal entra em cena quando os meios de proteção mais leves e que causam uma perturbação menos significante na liberdade individual não se mostrarem suficientes para a tutela do direito na iminência de ser vilipendiado.

Diversamente do que ocorre com o subprincípio da fragmentariedade, que se materializa no plano abstrato, a subsidiariedade atua no plano concreto, uma vez que o Direito Penal apenas incidirá no caso concreto acaso os demais ramos do Direito não tenham sido capazes de efetivar a pacificação social e promover uma efetiva proteção do bem jurídico.

Nesta senda, insta trazer à baila o julgado adiante ementado do Superior Tribunal de Justiça:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA. VÍTIMA. EMPRESA CONCESSIONÁRIA. RESSARCIMENTO DO PREJUÍZO ANTES DO OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. 1. O Direito Penal deve ser encarado de acordo com a principiologia constitucional. Dentre os princípios constitucionais implícitos figura o da subsidiariedade, por meio do qual a intervenção penal somente é admissível quando os demais ramos do direito não conseguem bem equacionar os conflitos sociais. 2. In casu, pago o débito de energia antes do oferecimento da denúncia, resolvido está o ilícito civil, não se justificando a persecução penal. 3. Recurso provido para, reformando o acórdão recorrido, trancar a ação penal n. 0004217-96.2008.8.19.0068 (2008.068.004225-2), da 2.ª Vara da Comarca de Rio das Ostras/RJ (HC 27.360/RJ, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, j. 21/08/2012).

No caso julgado, considerando que os efeitos decorrentes do ilícito cometido foram equacionados na esfera civil com o pagamento do débito antes do recebimento da denúncia, não há que se falar em intervenção do Direito Penal, haja vista restar afastada a análise de tipicidade.

1.3Princípio da lesividade

O célebre Rogério Greco utilizando-se da doutrina de Nilo Batista (1996, p. 92/94, apud GRECO, 2011, p. 51) afirma que o princípio da lesividade exerce quatro funções precípuas, quais sejam:

[...]proibir a incriminação de uma atitude interna; b) proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor; c) proibir a incriminação de uma conduta de simples estados ou condições existenciais; d) proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem.

Desta feita, de acordo com o referido princípio ninguém pode ser punido por algo que pensa ou por sentimentos nutridos apenas em sua consciência. Ademais, o Direito Penal só pode punir uma conduta se esta vier a causar prejuízo a um bem de terceiro, eis o motivo pelo qual a tentativa de suicídio não constitui tipo penal.

Neste cerne, todos os atos preparatórios que não extrapolem o âmbito interno do autor e que ocorrem antes do efetivo cometimento do crime, não podem ser objeto de reprimenda, tomando-se por base que não há possibilidade de mácula ao bem jurídico que seria afetado pela conduta, que não chegou a se perfazer.

Por outro lado, a terceira função destacada pelo autor aduz que um indivíduo não pode sofrer sanções por aquilo que ele é (condição existencial), uma vez que o sistema penal brasileiro não adotou o direito penal do autor, e sim do fato. Logo, o agente somente será punido por condutas que originaram fatos, e não por meros estados ou condições existenciais, a exemplo da mendicância.

Por fim, o princípio da lesividade também visa não incriminar condutas que, não obstante desviadas (moralmente desaprovadas pelo seio social), não afetem bem jurídico de terceiros. Dessarte, o simples fato de uma conduta ser repelida pela sociedade, não conduzirá necessariamente à consequente objeção penal a esta, a exemplo do que ocorre com a já citada tentativa de homicídio e do uso de drogas.

Por todo o exposto, com o princípio da lesividade resta patente a impossibilidade de atuação do Direito Penal na ausência de lesão a um bem jurídico de terceiro, estabelecido como relevante pelo legislador.

Interessante é a problemática que concerne ao crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo. Considerando-se que o bem jurídico tutelado pela norma penal, in casu, é a segurança pública, sendo que apenas de forma mediata protege-se a integridade física e a vida da pessoa, a lesividade do delito reside puramente na potencialidade destrutiva da arma de fogo.

Destarte, irretocável o posicionamento do Colendo Supremo Tribunal Federal:

3. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA. Há, no contexto empírico legitimador da veiculação da norma, aparente lesividade da conduta, porquanto se tutela a segurança pública (art.  e 144CF) e indiretamente a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica do indivíduo etc. Há inequívoco interesse público e social na proscrição da conduta. É que a arma de fogo, diferentemente de outros objetos e artefatos (faca, vidro etc.) tem, inerente à sua natureza, a característica da lesividade. A danosidade é intrínseca ao objeto. A questão, portanto, de possíveis injustiças pontuais, de absoluta ausência de significado lesivo deve ser aferida concretamente e não em linha diretiva de ilegitimidade normativa (HC 104410/RS, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 06/03/2012, DJe 27/03/2012).

Como bem ponderou o renomado ministro, diante de determinados casos concretos a tipicidade da conduta pode ser afastada com vistas a evitar eventuais injustiças, em respeito ao princípio da lesividade e da insignificância. Neste sentido o seguinte julgado do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIADA. FALTA DE ACESSO PRONTO À MUNIÇÃO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA LESIVIDADE. ORDEM CONCEDIDA.

Como bem observado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no RHC nº 81.057-8/SP, "para a teoria moderna - que dá realce primacial aos princípios da necessidade da incriminação e da lesividade do fato criminoso - o cuidar-se de crime de mera conduta - no sentido de não se exigir à sua configuração um resultado material exterior à ação - não implica admitir sua existência independentemente de lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado pela incriminação da hipótese de fato." 2. De feito, o simples portar arma, sem que se tenha acesso à munição, não apresenta sequer perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora, no caso, a segurança pública, devendo ser reconhecida a atipicidade material da conduta, observando-se, sempre, o caráter fragmentário do direito penal. 3. Na hipótese, o paciente foi abordado portando uma espingarda, tipo carabina, desmuniciada, e na oportunidade acompanhou os policiais militares até a sua residência, onde foi encontrada a munição. Conduta atípica. 4. Ordem concedida (HC 140061/ES, rel. min. Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP), 6ª Turma, j. 25/05/2010, Dje. 21/06/2010).

No caso em apreço, como a arma de fogo encontrava-se desmuniciada e o suposto agente do fato conduziu os policiais até sua residência, onde se encontrava a munição, não há que se falar em tipicidade, consoante o entendimento dos doutos ministros do STF e STJ, respectivamente.

Por oportuno, urge mencionar que parcela doutrinária questiona a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato ou presumido, uma vez que nessas espécies de delito o legislador faz uma presunção jure et de jure do perigo à integridade do bem jurídico digno de proteção, o que traduziria, conforme entende tal corrente, verdadeira mácula ao princípio da lesividade (CUNHA, 2014). Neste diapasão, Paulo de Souza Queiroz(2001, p. 112, apud CUNHA, 2014, p. 92) dispõe:

Uma objeção a fazer aos crimes de perigo abstrato é que, ao se presumir, prévia e abstratamente, o perigo, resulta que, em última análise, perigo não existe, de modo que se acaba por criminalizar a simples atividade, afrontando-se o princípio da lesividade, bem assim o caráter de extrema ratio (subsidiário) do direito penal. Por isso há quem considere, inclusive, não sem razão, inconstitucional toda sorte de presunção legal de perigo.

Contudo, conforme assinala Rogério Sanches (2014) este não é o entendimento dos tribunais superiores, notadamente do STF e do STJ, uma vez que a jurisprudência majoritária das referidas cortes aduz que a mera criação de crimes de perigo abstrato em si não gera necessariamente um comportamento inconstitucional do legislador.

1.4 Princípio da adequação social

A jurisdição possui como uma de suas funções precípuas efetivar a pacificação social. Desta maneira, o Direito, para que seja justo e logre êxito no desempenho dessa árdua missão, deve estar em consonância com a realidade social do seu tempo, tomando como base os valores que imperam na sociedade e, de forma estrita, o almejado padrão de relacionamento interpessoal. Assim, o Direito deve ser adequado aos ditames da sociedade.

Não teria razão para ser diferente em se tratando de Direito Penal. Com efeito, para que uma conduta seja considerada delituosa, esta deve ser rechaçada pelos padrões normais ou médios prudentemente considerados, uma vez que um comportamento tido como louvável pelos cidadãos não pode ser estatuído como crime.

Nesta seara insere-se o princípio da adequação social que visa justamente afastar a tipicidade de comportamentos socialmente adequados. De acordo com Luiz Regis Prado (2013, p. 178):

A teoria da adequação social, concebida por Hans Welzel, significa que, apesar de uma conduta se subsumir formalmente ao modelo legal, não será considerada típica se for socialmente adequada ou reconhecida, isto é, se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada (v.g., restrição da liberdade ambulatória de um usuário de transporte coletivo; intervenção cirúrgica realizada com fim terapêutico e resultado favorável; exploração de indústria perigosa com afetação da saúde do trabalhador, lesão desportiva etc.).

Destarte, para que a conduta seja proibida pela norma penal aquela deve ser socialmente inadequada ao convívio entre os integrantes da sociedade. Logo, o tipo demonstra com propriedade o caráter social e histórico do Direito Penal, dada sua necessária adequação ao regime social vigente.

Pode-se concluir que o princípio da adequação exerce duas funções básicas. A primeira é a de limitar o alcance da norma penal, consoante o exposto supra.

A segunda função dirige-se ao legislador. Em um primeiro momento o mencionado princípio guia o legislador quando da escolha das condutas que serão vedadas ou impostas, com vistas à tutela dos bens de maior relevância, o que materializa o nítido liame existente deste princípio com o princípio da fragmentariedade. De outra ponta, em um segundo momento o legislador deve refletir acerca do ordenamento jurídico penal, seus tipos e reprimendas, com o objetivo de eventualmente retirar deste a proibição de comportamentos que já se coadunem com a evolução dos padrões exigidos pela sociedade (GRECO, 2011).

Contudo, impende delinear que o princípio da adequação social, por si só, não pode revogar tipos penais incriminadores. Assim, mesmo que seja reiterada a prática de determinada infração penal que já se encontra ajustada com o os ditames da sociedade, não merece prosperar a alegação do agente de que sua conduta encontra guarida no aludido princípio. Com efeito, somente mediante lei é que pode haver a chamada abolitio criminis, haja vista o teor do art. 2° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que dispõe em seu caput: “Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue” (BRASIL, 1942).

Não é outro o entendimento disposto pelo seguinte julgado oriundo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao analisar apelação criminal interposta com base na tese da suposta adequação social do chamado “jogo do bicho”, a seguir colacionado:

EMENTA: JOGO DE BICHO ADEQUAÇÃO SOCIAL - CONDUTA TÍPICA - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - SENTENÇA MANTIDA RECURSO NÃO PROVIDO.

[...] Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso de apelação. No mérito, a alegação da atipicidade imputada ao réu com base na Teoria da Adequação Social da conduta ilícita não encontra acolhida no Direito Penal Brasileiro, ou seja, o fato de que muitos descumprem a lei não a torna ineficaz, nem mesmo seu descumprimento reiterado. Somente lei nova tem o condão de revogar outra anterior, conforme reza o artigo  do Decreto-Lei nº 4.657/42[...] (APR 237479020138190204 RJ, rel. Rose Marie Pimentel Martins, 1ª Turma Recursal Criminal, p. 13/07/2015).

Dessarte, em que pese a suposta aceitação ou tolerância incutida no pensamento social em face de determinado comportamento definido no preceito primário do tipo penal incriminador, não é possível afirmar que esta terá o condão de expungi-lo do ordenamento jurídico penal, tendo em vista que, conforme falado anteriormente, apenas mediante lei é que poderá ocorrer a extinção de uma figura delitiva do direito posto (abolitio criminis), considerando, vale repisar, que um costume não pode revogar uma lei.

1.5Princípio da individualização da pena

De acordo com Greco (2011), a primeira etapa da individualização da pena se materializa na escolha levada a cabo pelo legislador das condutas que serão proibidas ou impostas por aquele. Selecionados os comportamentos, o legislador faz uma valoração, fixando as respectivas penas, de acordo com a relevância do objeto jurídico da norma.  O autor assevera que esta fase seletiva é denominada de cominação, que toma como base critérios políticos.

Avançando na análise do referido princípio, o próximo momento da individualização ocorre depois de praticada a conduta definida como criminosa, ou seja, após a conclusão de que o fato consumado é típico, ilícito e culpável. Aqui, o julgador começa a individualizar a pena que deverá ser aplicada ao agente diante do caso concreto.

Considerando o teor do caput artigo 68 do Código Penal, o magistrado deve observar um critério trifásico para chegar à pena final: “A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento” (BRASIL, 1940).

Desta forma, inicialmente o juiz deve considerar as circunstâncias judiciais estatuídas no artigo 59 do Codex, quais sejam: culpabilidade; antecedentes; conduta social; personalidade do agente; motivos do crime; circunstâncias e consequências do crime; e comportamento da vítima. A partir da análise de todas estas circunstâncias que tangenciam o fato criminoso, o juiz fixará a pena-base, que não poderá ficar aquém do mínimo ou além do máximo.

Ultrapassada a análise das circunstâncias judiciais, o magistrado passará à análise das circunstâncias agravantes (artigos. 61 e 62 do Código Penal), a exemplo da reincidência e do cometimento de crime por motivo fútil, e das atenuantes, v. g. cometimento de crime por motivo de relevante valor social ou moral e o desconhecimento da lei. Aqui, subsiste a mesma restrição de limites mínimo e máximo da fase anterior.

Por fim, a última etapa de aplicação da pena consiste no cotejo das causas de aumento e de diminuição, que podem se encontrar tanto na Parte Geral do CP como na Parte Especial. É exemplo de causa de diminuição a tentativa, considerando o teor do artigo 14, inciso II, do CP, e como exemplo de causa de aumento cabe citar a hipótese de figurar como vítima de homicídio pessoa menor de 14 (quatorze), maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência (art. 121, §7°, inciso II, CP).

Diversamente do que ocorre nas fases precedentes, as causas de aumento e de diminuição não se encontram limitadas pelos valores delimitados no tipo penal, podendo-se estabelecer pena final superior ou inferior aos respectivos limites dispostos na norma.

Greco (2011) dispõe que a individualização da pena também se apresenta no momento de sua execução, conforme a própria dicção do art. 5° da Lei 7.210/84, que versa sobre a Execução Penal: “Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal” (BRASIL, 1984).

Neste mister, salutar a lição de Mirabete(1990, p. 60/61):

Com os estudos referentes à matéria, chegou-se paulatinamente ao ponto de vista de que a execução penal não pode ser igual para todos os presos – justamente porque nem todos são iguais, mas sumamente diferentes – e que tampouco a execução pode ser homogênea durante todo o período de seu cumprimento. Não há mais dúvida de que nem todo preso deve ser submetido ao mesmo programa de execução e que, durante a fase executória da pena, se exige um ajustamento desse programa conforme a reação observada no condenado, só assim se podendo falar em verdadeira individualização no momento executivo. Individualizar a pena, em execução, consiste em dar a cada preso as oportunidades e os elementos necessários para lograr a sua reinserção social, posto que é pessoa, ser distinto. A individualização, portanto, deve aflorar técnica e científica, nunca improvisada, iniciando-se com a indispensável classificação dos condenados a fim de serem destinados aos programas de execução mais adequados, conforme as condições pessoais de cada um.

Destarte, o princípio da individualização da pena possui plena aplicabilidade no momento da execução da pena, devendo ser observado em sua plenitude. Com efeito, devem ser observados todos os elementos pessoais do indivíduo com vistas a proporcionar sua plena reinserção social.

Insta mencionar que mesmo diante dos crimes chamados de hediondos a pena deve ser executada em consonância com o princípio em epígrafe, haja vista o que dispõe a Lei n° 11.464/2007, que conferiu nova redação ao artigo 2° da Lei n° 8.072/1990, dispondo, neste mérito, que a pena aplicada em decorrência da prática de crime hediondo será cumprida em regime inicialmente fechado, a contrário sensu da antiga redação daquele artigo (que impunha o cumprimento em regime integralmente fechado), possibilitando a progressão de regime. Contudo, vale ressaltar que mesmo antes do advento da alteração legislativa, os Tribunais Superiores já se posicionavam quanto à inconstitucionalidade daquele dispositivo, dada a nítida ofensa ao princípio da individualização da pena, restando declarada a inconstitucionalidade do dispositivo pelo STF quando do julgamento do HC 82959/SP no ano de 2006.

Além disso, com vistas a evitar qualquer controvérsia o STF editou a Súmula Vinculante n° 26 no ano de 2009:

Súmula Vinculante n° 26. Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2° da Lei 8.072, de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.

Assim, mesmo diante de fatos que foram praticados antes da entrada em vigor da supramencionada alteração legislativa, deve ser reconhecida a possibilidade de progressão de regime para o agente que praticou algum crime hediondo, obedecida a gradação prevista na nova redação do art. 2° §2° da Lei 8.072/1990, sendo que esta ocorrerá após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), acaso reincidente (BRASIL, 2007).

1.6Princípio da proporcionalidade

Como visto, o Estado apenas excepcionalmente possui o condão de restringir o direito de liberdade assegurado aos cidadãos pela Carta Magna. Tal limitação, contudo, não pode ocorrer ao seu alvedrio, de forma desarrazoada ou ocasionando máculas aos direitos individuais, com fulcro na dignidade da pessoa humana.

Neste sentido, a atuação estatal em âmbito penal também deve se pautar na devida observância do princípio da proporcionalidade, tendo em vista que possíveis exacerbações perpetradas pelo Estado em matéria penal podem gerar consequências imensuráveis e até mesmo irretratáveis. Assim, o princípio da proporcionalidade, que, embora não conste expressamente no texto constitucional, decorre de outros princípios expressos, impõe nítidos limites, no plano abstrato, ao legislador quando da elaboração das normas penais.      

Não obstante, assim como ocorreu com outros princípios até aqui expostos, a proporcionalidade não serve de limitação apenas para o legislador. Neste sentido Masson (2015, p. 52) afirma que “ o princípio da proporcionalidade possui três destinatários: o legislador (proporcionalidade abstrata), o juiz da ação penal (proporcionalidade concreta), e os órgãos da execução penal (proporcionalidade executória)”.

Aqui, a função do legislador é mais complicada que a do magistrado, tomando por base que o artigo 68 do Código Penal estabelece os critérios que devem ser por este último observados quando da determinação da pena, sendo que o legislador não dispõe de tal auxílio na execução de sua tarefa, afigurando-se de considerável nível de complexidade a delimitação da pena pelo legislador, dada a exigência da proporcionalidade e ausência de parâmetros claros de atuação.

De acordo com Greco (2011), pode-se extrair duas vertentes do aludido princípio, a saber: a proibição do excesso e a proibição de proteção deficiente. A primeira visa tutelar o direito de liberdade dos indivíduos, com vistas a evitar reprimendas desnecessárias a comportamentos que, por não possuírem a relevância exigida ou por terem sido valorados deforma excessiva, não merecem a atenção do Direito Penal (nítido liame com o princípio da insignificância, tema base deste e que será esmiuçado a posteriori). A segunda aduz que não é admissível a proteção deficiente de um direito fundamental, o que pode ocorrer mediante a abolitio criminis ou mesmo pela aplicação benesses indevidas ao agente criminoso.

Destarte, consoante escólio de LenioStreck(2005, p. 180, apud GRECO, 2011, p. 78), a inconstitucionalidade pode ter origem no excesso do Estado, mediante a prática de um ato que extrapola os padrões de proporcionalidade e razoabilidade (sopesamento desproporcional entre fins e meios), ou na proteção insuficiente de um direito fundamental, a exemplo do que acontece quando o Estado não aplica as sanções penais necessárias para a tutela do bem jurídico.

Por fim, de acordo com Bittencourt (2014), o princípio em tela não se restringe a limitar o ordenamento jurídico infraconstitucional, mas serve como garantia de sua legitimidade. Ademais, aduz que este demonstra o vínculo que limita os fins do ato praticado pelo Estado com os meios por ele perquiridos, de modo que a proporcionalidade se materializa a partir de três elementos precípuos: adequação teleológica, necessidade e proporcionalidade “strictu sensu”. A adequação significa a proibição do arbítrio estatal, uma vez que a finalidade do ato é não é determinada pela vontade do agente estatal, mas pelas normas constitucionais. A necessidade aponta que o meio deve ser o menos lesivo possível para a efetivação do fim pretendido pela norma. E a proporcionalidade em sentido estrito dispõe que o Estado deve utilizar os meios adequados e, por conseguinte, não fazer uso de meios ou recursos que não sejam proporcionais.

1.7 Princípio da responsabilidade pessoal

O Direito Penal possui como ditame a responsabilidade pessoal do agente, ou seja, apenas aquele que causar ou participar do evento delituoso é que responderá pelas sanções penais correspondentes cominadas ao crime. Assim, quando o agente vem a óbito, extingue-se a pretensão punitiva estatal, como preceitua o art. 107, inciso I, do Código Penal, inserindo no rol das causas extintivas da punibilidade a morte do agente.

A pessoalidade encontra guarida no art. 5°, XLV, CF/88: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do patrimônio transferido” (BRASIL, 1988).

Desta feita, a responsabilidade pessoal se relaciona com a imputação subjetiva (decorrente de ação ou omissão do indivíduo) e com a culpabilidade (princípio que será visto adiante).

Greco (2011) adverte que mesmo com a mudança de enquadramento da pena de multa, com a edição da Lei n° 9.268/1996, que passou a ser considerada como dívida de valor, esta não perdeu seu caráter penal. Com efeito, a multa continua prevista no art. 32 do Código Penal como uma das modalidades de penas passíveis de serem aplicadas àquele que cometer um ilícito penal. Em outros termos, subsiste o impedimento de cobrança da pena de multa após a morte do agente.

Não obstante, dado seu caráter pecuniário, observa-se que não existe a garantia de que a multa será paga pelo condenado na sentença penal transitada em julgado; ou seja, o Estado não tem como impedir que outra pessoa forneça os recursos necessários  para o adimplemento da multa ao condenado para que este cumpra a sua pena, uma vez que o condenado pode não dispor da capacidade econômica para tanto, ou mesmo estar impossibilitado temporariamente de arcar com o ônus que lhe foi imposto, a exemplo da situação de estar desempregado e não dispor de meios para auferir renda.

Neste sentido, Ferrajoli(2002, p. 334, apud GRECO, 2011, p. 81) afirma que a pena pecuniária (que abarca a pena de multa e a pena restritiva de direitos na modalidade prestação pecuniária) é aberrante em vários aspectos, notadamente porque é impessoal, podendo ser adimplida por qualquer pessoa, o que vai de encontro com o princípio em testilha.

Apesar de ser formalmente impessoal, a par das considerações dispostas acerca das penalidades que possuem caráter pecuniário, as penas, inevitavelmente, possuem reflexos em outrem.

Sem dúvidas a imposição da pena privativa de liberdade, a título de exemplo, causa diversos prejuízos para a família do apenado, seja de ordem financeira, haja vista que muitas vezes este contribuía para o sustento do lar, ou mesmo de ordem psicológica, pois ter que lidar com a ausência de um ente familiar em virtude da prática de um ato criminoso é deveras tormentoso e vexatório para os pais, irmãos, filhos e companheira (o).

1.8 Princípio da culpabilidade

No Direito Penal o termo culpabilidade se relaciona com o juízo de censura, de reprovação sobre uma conduta típica e ilícita praticada, sendo considerada reprovável ou censurável a conduta cometida pelo agente que podia agir de modo diverso, tomando como base as condições e circunstâncias em que se encontrava.

Rogério Sanches (2014, p. 95) afirma que este princípio também consiste em um limitador do jus puniendi estatal, uma vez que o Estado somente aplicará a sanção penal “ao agente imputável (penalmente capaz), com potencial consciência da ilicitude (possibilidade de conhecer o caráter ilícito do seu comportamento), quando dele exigível conduta diversa (podendo agir de outra forma)”.

Para Rogério Greco (2011), o princípio da culpabilidade contém três acepções: culpabilidade como elemento integrante do conceito analítico de crime; culpabilidade como princípio medidor da pena; e culpabilidade como princípio impedidor da responsabilidade objetiva.

A primeira acepção dispõe sobre a culpabilidade como terceiro elemento integrante do conceito de crime. Como é cediço, crime é definido como fato típico, ilícito e culpável. Assim, não basta que um fato se enquadre no disposto no preceito primário da norma penal e seja definido como uma lesão a um bem jurídico e ao ordenamento jurídico para que este seja considerado crime. Deve ser feito o juízo de censura ou de reprovação sobre a conduta do agente, com vistas a se concluir pela existência do delito.

O segundo sentido se apresenta como consequência do reconhecimento da existência do crime, a partir da confirmação, pelo magistrado, da tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Assim, diante da inegável ocorrência do delito, o juiz deve determinar a pena condizente com a infração penal praticada, tomando como base a culpabilidade do agente.

Nesta fixação da pena, como já visto, aplica-se o disposto no art. 68 do Código Penal que apresenta as regras do critério trifásico de aplicação da pena. A culpabilidade, aqui, também figura como uma das circunstâncias judiciais que deverão ser analisadas pelo julgador no momento da fixação da pena-base (art. 59 do CP).

Portanto, neste segundo viés a culpabilidade impõe um limite ao julgador, tendo em vista que a pena que será aplicada não poderá extrapolar o nível de culpabilidade do agente e, por conseguinte, da necessária reprovação pelo crime perpetrado.

Finalmente, tem-se a culpabilidade como princípio impedidor da responsabilidade objetiva, ou seja, a responsabilidade penal apenas será imputada ao agente que tenha cometido o fato a título de dolo ou culpa, uma vez que se estes não se mostrarem presentes na ação do indivíduo, não há que se falar sequer em conduta e, por decorrência, não existirá crime. Logo, a responsabilidade penal deve decorrer sempre da existência do elemento subjetivo do agente, pois nosso ordenamento jurídico adotou a responsabilidade penal subjetiva.

1.9 Princípio da presunção de inocência ou da não-culpabilidade

De acordo com o ar. 5º, inciso LVII da Carta Magna, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988). Eis a dicção constitucional do princípio da presunção de inocência, basilar para toda a persecução criminal e essencial para promoção da dignidade da pessoa humana.

A doutrina não é uníssona quanto a sua denominação, podendo se delimitar como sinônimas as denominações “presunção de inocência, presunção de não culpabilidade e estado de inocência”.

Neste mérito, Rogério Sanches (2014) aduz assevera que a denominação correta para o princípio é a da presunção de não culpa (ou de não culpabilidade), tendo em vista que a Constituição se dispõe a impedir a incidência dos efeitos da condenação ao indivíduo até o momento do trânsito em julgado da sentença, e não possui o escopo de presumir a inocência de ninguém.

Analisando o princípio em testilha, Nestor Távora(2014, p. 61) aduz:

De tal sorte, o reconhecimento da autoria de uma infração criminal pressupõe sentença condenatória transitada em julgado (art. 5º, inc. LVII, da CF). Antes deste marco, somos presumivelmente inocentes, cabendo à acusação o ônus probatório desta demonstração, além de que o cerceamento cautelar da liberdade só pode ocorrer em situações excepcionais e de estrita necessidade. Neste contexto, a regra é a liberdade e o encarceramento, antes de transitar em julgado a sentença condenatória, deve figurar como medida de estrita exceção.

Desta feita, considerando que a intervenção estatal na liberdade do cidadão só pode ocorrer em último caso, dado o gravame imposto, o réu somente pode ser considerado culpado após o trânsito em julgado da sentença que termine por condená-lo pela prática de determinada infração penal. Assim, por maior que seja o aporte probatório constante do inquérito penal que esteja em curso contra um indivíduo, v. g., apto a ensejar uma futura condenação na ação penal que se seguirá, o princípio da presunção de inocência impede que o suposto agente do fato seja rotulado de culpado, evitando que todas as consequências negativas decorrentes de uma condenação penal sejam antecipadas.

Neste sentido, Távora(2014) dispõe que o referido princípio desagua em duas regras básicas, a primeira no campo probatório e a segunda no que tange ao tratamento. No âmbito instrutório, em virtude do estado de inocência, a parte que é incumbida da acusação tem o ônus de demonstrar a culpa do acusado, e não o contrário (ônus da prova). No que tange ao tratamento, o princípio impede, como já fora dito supra, a antecipação de juízos condenatórios ou de culpabilidade.

Corroborando o expendido até aqui e analisando o Estatuto de Roma (Decreto nº 4.388/2002), Rogério Sanches (2014, p. 97) extrai três consequências do princípio em comento:

  1. Qualquer restrição à liberdade do investigado/acusado somente se admite após sua condenação definitiva, não evitando, porém, a prisão cautelar ao longo da persecução criminal, desde que imprescindível, exigindo-se adequada fundamentação;
  2. Cumpre à acusação o dever de demonstrar a responsabilidade do réu, e não a este comprovar sua inocência (o ônus da prova incumbe sempre ao titular da ação penal);
  3. A condenação deve derivar da certeza do julgador, sendo que eventual dúvida será interpretada em favor do réu (in dubio pro reo).

Não obstante a inegável importância e clareza do princípio em tela, considerado basilar na análise do Direito Penal e Processual Penal, o STF, durante o julgamento do HC 126.292/SP, que teve como relator o ministro Teori Zavascki, exarou decisão que traduz nítida afronta à presunção de não culpa, mudando seu entendimento e permitindo a execução provisória da pena após a confirmação da condenação criminal em segunda instância. O relator fundamentou seu voto aduzindo que a possibilidade de exame de fatos e provas, bem como a responsabilidade criminal do acusado, exaurem-se nas instâncias ordinárias.

Tal decisão viola frontalmente o dispositivo constitucional que versa sobre a não culpa, uma vez que este é bem claro quanto ao momento em que pode ocorrer a mudança de status do indivíduo de inocente para culpado, a saber: o trânsito em julgado da sentença condenatória.

 Com efeito, considerando que a sentença só adquire tal qualidade quando não mais se afigura possível a interposição de nenhum recurso, o entendimento levado a cabo pelo Supremo é, permissa venia, inconstitucional, pois a CF/88 não questiona a possibilidade de discussão de fatos e provas no curso dos autos como marco para delimitação da culpa do agente, mas estabelece, de modo claro, o trânsito em julgado como momento em que o réu não possui mais o status quo ante de inocente. 

    REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais.Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2006.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

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_______. Decreto-Lei nº 4.657, de 7 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do direito brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm>. Acesso em: 07 mai. 2016.

_______. Lei nº 8.072/1990, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8072.htm>. Acesso: 18 mai. 2016.

_______. Lei nº 11.464/2007, de 28 de março de 2007. Dá nova redação ao art. 2o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/Lei/L11464.htm>. Acesso em: 18 mai. 2016.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte geral. 2. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2014

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 13. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.

MASSON, Cleber. Direito Penal esquematizado: parte geral.v. 1. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.

MIRABETE, Júlio Fabrini. Execução penal. São Paulo: Atlas, 1990.

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. v. 1. 12. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

TÁVORA, Nestor, ALENCAR, Rosmar Rodrigues: Curso de Direito Processual Penal. 9. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2014.

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