Segundo o CPP, cabe apelação das decisões do Tribunal do Júri quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos (artigo 593, III, "d"). É copiosa a jurisprudência, inclusive amparada na doutrina, no sentido de que quando a prova indica mais de uma versão, a decisão não é manifestamente contrária à prova dos autos. Este dogma é repetido indiferentemente tanto para o julgamento do recurso da acusação como para o da defesa. Vale dizer, se a prova é duvidosa, a decisão dos jurados é mantida e o acusado não é enviado a novo julgamento. Esta concepção, em se tratando de recurso da defesa, não é apenas incorreta, é lamentável. Reprovável porque, em nome do sacramento da soberania dos veredictos (mal interpretado como veremos na seqüência) abre-se as comportas para o erro judiciário. Na dúvida quanto a culpa ou inocência do acusado, princípios constitucionais mais elementares e fundamentais, tais como o do in dubio pro reo, da ampla defesa, do duplo grau de jurisdição, são sacrificados no altar da sacrossanta vontade de juízes leigos, os soberanos. Uma comédia, não fosse preocupante. E uma colossal demonstração de incivilidade. Sim, porque em qualquer nação que queira se considerar civilizada é inverossímil que haja quem possa pactuar com o admissão de um cidadão para cumprir pena em presídio condenado em processo no qual havia dúvida quanto a sua culpa, no qual havia duas versões, ambas com semelhantes graus de probabilidade de serem as verdadeiras. Nessas condições, com essa compreensão doutrinária e jurisprudencial, talvez se possa concluir que é dentre os condenados por crimes dolosos contra a vida que esteja o maior número de vítimas de erro judiciário. E tudo isso é resultado de incorreta interpretação da lei.
O princípio da soberania da decisão dos jurados vem sendo interpretado desacertadamente. Diz o artigo 5º., da CF, inciso XXXVIII, que é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Primeiramente cumpre assinalar que a plenitude de defesa está assegurada juntamente com a soberania dos veredictos neste mesmo dispositivo constitucional. Efetivado esse registro, verifica-se que o artigo 5º., da CF, encontra-se posicionado no Título II, o qual versa sobre os Direitos e Garantias Fundamentais. O caput do artigo 5º., ao qual está vinculado o inciso XXXVIII que trata do soberania dos veredictos, diz que garante-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...). Ora, a dedução a que se chega é que a competência do júri e a soberania de suas decisões foram estatuídas constitucionalmente em favor do acusado, jamais contra ele e em favor dos jurados. A soberania dos veredictos está prevista no título que trata dos direitos e garantias fundamentais. Deve, portanto, ser interpretada em favor do indivíduo. A soberania do veredicto foi instituída em favor do acusado, não em seu desfavor, ou não seria uma garantia individual. Deve ser examinada sob a ótica da proteção do acusado, não para sustentar ou tornar insubstituível a decisão ao júri, e quanto menos ainda para vedar a substituição da decisão do júri por outra do próprio júri – o que confirma tanto a soberania dos veredictos como a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
E há mais um aspecto importante no que diz respeito à decisão do jurados. A soberania da decisão júri deve ser mitigada pelo princípio constitucional do duplo grau de jurisdição, vale dizer, a previsão legal de recurso reduz rigidez da soberania do primeiro veredicto do júri.
Examinando o artigo 5º., inciso XXXVIII, da CF, e, em especial, o significado da soberania do veredictos, chega-se a alguma conclusões: a) a plenitude de defesa assegurada no mesmo dispositivo que trata da soberania; b) a soberania do veredicto enquanto direito e garantia fundamental do acusado; c) a mitigação da soberania pelo regra constitucional do duplo grau de jurisdição; d) o direito do acusado de crime doloso contra a vida de ser julgado pelo júri; e) sendo duvidosa a prova de culpa do acusado (culpa em sentido amplo) a absolvição do júri não pode ser modificada; f) sendo duvidosa a prova de culpa (culpa em sentido amplo) e havendo condenação, o acusado deve ser enviado a novo júri.
Sendo duvidosa a prova de culpa do acusado, a absolvição pelo júri não pode ser modificada e isso em consequência das regras constitucionais da plenitude de defesa, da soberania dos veredictos e da competência do júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (artigo 5o., inciso XXXVIII, da CF). Mas se a prova for duvidosa e o acusado for condenado pelo júri? A decisão foi manifestamente contrária a prova dos autos a autorizar novo julgamento? Se a prova for controversa e o acusado for condenado deverá ser enviado a novo julgamento. Por um raciocínio elementar e que no transcorrer dos anos vem passando completamente desapercebida pela doutrina e jurisprudência: há uma premissa absoluta que diz respeito à prova necessária para condenar, qual seja a de que havendo dúvida o acusado deve ser sempre absolvido. É inconcebível que alguém possa ser desapossado de sua liberdade em consequência de uma prova duvidosa. Significaria abrir escancaradamente as portas dos presídios para o ingresso de inocentes.
A questão tecnicamente resolve-se da seguinte maneira: se a prova é duvidosa o acusado deve ser absolvido e se o júri condena diante de prova duvidosa, esta decisão é manifestamente contrária à prova do autos. Diante da prova duvidosa o jurado tem a obrigação jurídica de absolver. Se condena julga de forma manifesta contra a prova.
A confirmar nossa interpretação, a consideração de que se outra exegese for adotada, nenhum acusado jamais teria direito a novo julgamento pelo júri com fundamento no artigo 593, III, "d", e assim porque se foi enviado à julgamento do Plenário do Júri através da pronúncia é porque no mínimo existia dúvida quanto a culpa. Só é remetido ao julgamento popular o acusado em que há ou certeza quanto a culpa ou dúvida quanto a ela. Quando só há uma versão probatória, a de inocência, não há pronúncia. Sendo assim, a adoção de outro entendimento (o de que só vai a novo júri o acusado condenado quando só há uma versão nos autos e que lhe é favorável) que não o que expomos aqui resultaria em que seria feita letra morta do direito do acusado a novo julgamento pelo júri e, como sabido, o legislador não institui direitos (o direito a novo júri) para não serem cumpridos, exercidos, para não haver a possibilidade de serem efetivados. Todo direito processual deve ser - ao menos teoricamente - suscetível de ser exercido.
Resumindo, três são as razões pelas quais a condenação com prova duvidosa credita ao acusado o direito a novo julgamento: (1) a soberania do veredictos é uma garantia constitucional estatuída em favor do acusado, não dos jurados, sendo que essa soberania não é reduzida por um segundo julgamento, especialmente porque este será realizado novamente pelo próprio Tribunal do Júri (ser julgado uma segunda vez pelo próprio Tribunal de Júri é a própria confirmação da soberania); (2) se a prova é duvidosa, o jurado deve – constitui princípio jurídico fundamental – absolver e, por conseqüência, se condena está a decidir contrariamente à prova; (3) considerando que só é enviado a julgamento pelo Plenário do Júri acusados contra os quais pesa a certeza ou a dúvida quanto à culpa, a considerar-se correta a jurisprudência reinante, nunca haveria o direito de novo julgamento do condenado, pois que há, sempre, no mínimo, dúvida, vale dizer, existe sempre no mínimo mais de uma versão para os fatos e assim, o dispositivo legal que prevê o direito do acusado a novo julgamento quando a decisão for manifestamente contrária a prova dos autos não teria vigência legal, o que é inconcebível tecnicamente, pois que violaria a lógica do sistema a concessão de direito impossível de ser exercido. Em outras palavras, acusados que são manifestamente inocentes (em que a prova só admite uma versão) não são pronunciados, não vão a julgamento pelo Plenário do Júri e assim o recurso com fundamento na decisão manifestamente contrária a prova dos autos jamais encontraria cabimento.