Muito tem se falado acerca dos procedimentos a serem adotados para adesão ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), o qual, criado a partir da edição da Lei 13.254/2016, autoriza a regularização de ativos mantidos irregularmente no exterior, desde que provenientes de atividades não ilícitas, observadas as limitações impostas pela mencionada Lei, bem como anistia a tipificação penal de condutas que tenham relação com os crimes expressamente contemplados pela norma.
Apesar de aparentemente simples os passos necessários ao aproveitamento dessa oportunidade tem se mostrado verdadeiro desafio ao mercado, na medida em que a Instrução Normativa (IN) 1.627/2016 da Receita Federal do Brasil (RFB), ao tentar regular a matéria, exacerbou os limites de sua competência e plantou novas dúvidas naqueles que estão envolvidos com o tema.
Neste trabalho pretende-se tratar exclusivamente de ponto de grande controvérsia deste programa, qual seja, a identificação do lapso temporal que compõe a declaração dos ativos objeto de regularização, tendo como fontes para avaliação os dispositivos legais concernentes, bem como o parecer emanado pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), n.º 1035/2016, objetivando, mais precisamente, abordar a ideia de ativos parcialmente consumidos e não mais existentes, sob a ótica da segurança jurídica do declarante.
O primeiro indicativo do ponto a ser discutido está elencado no art. 6º da Lei 13.254/2016, in verbis:
Art. 6o Para fins do disposto nesta Lei, o montante dos ativos objeto de regularização será considerado acréscimo patrimonial adquirido em 31 de dezembro de 2014, ainda que nessa data não exista saldo ou título de propriedade, na forma do inciso II do caput e do § 1o do art. 43 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), sujeitando-se a pessoa, física ou jurídica, ao pagamento do imposto de renda sobre ele, a título de ganho de capital, à alíquota de 15% (quinze por cento), vigente em 31 de dezembro de 2014. (g.n.)
A leitura do dispositivo acima transcrito deixa clara a limitação de abrangência do regime de regularização no que diz respeito ao marco temporal, tratando o dia 31/12/2014 como pedra de toque para determinação do momento em que se consideraria como ocorrida a hipótese tributária, exatamente por remeter este momento ao artigo correspondente no Código Tributário Nacional (CTN).
A opção pelo uso da expressão “em” deixa clara a eleição deste momento para composição da hipótese de incidência, haja visto a demarcação precisa do momento, sem que tenha sido deixada qualquer margem interpretativa para a definição do momento em que se verificaria a existência da disponibilidade da renda necessária ao estabelecimento da relação tributária.
Esse detalhe não deve ser desprezado já que é parte indispensável a completude da hipótese tributária, aspecto temporal ínsito ao nascimento do fenômeno tributário, sobretudo para fins de alcance pelo Imposto de Renda (IR), já que este depende da aquisição da “disponibilidade jurídica ou econômica da renda e proventos de qualquer natureza”, na forma do art. 43 do CTN.
Ao determinar a entrega de declaração de bens e direitos de que o declarante não seja mais titular ou não detenha saldo no momento do nascimento da obrigação tributária, pretende a RFB tributar pelo IR renda que não existe, ou, de outra forma, devemos entender que deve haver tão somente a anistia para o cometimento dos crimes encampados no dispositivo legal, desconsiderando, especificamente para esses casos, a natureza arrecadatória da medida, pela ausência de fato tributável.
Se, nos termos do art. 114 do CTN, o fato gerador é "a situação definida em lei como necessária e suficiente” à ocorrência da obrigação tributária principal, temos que todos os elementos da regra matriz devem estar presentes na hipótese de incidência, sob pena da impossibilidade do nascimento da própria relação jurídico-tributária, isto é, o texto legal deve ser preciso ao indicar os aspectos material (auferir renda), espacial (universalidade) e temporal (31/12/2014) que formarão o fato jurídico tributável.
Precioso o ensinamento de Luis Eduardo Schoueri em seu livro Direito Tributário, no sentido de que "para o Imposto de Renda exige-se um acréscimo patrimonial, este somente poderá ser medido mediante comparação da situação patrimonial em dois momentos distintos." (SCHOUERI, p. 474)
O texto legal é claro ao determinar que o aspecto temporal da regra matriz da hipótese tributária é fixado como dia 31/12/2014, de modo que qualquer aplicação diferente somente será aceitável para excluir a tipificação dos crimes previstos, independentemente de arrecadar ou não o imposto, sob pena de se desvirtuar o conceito disponibilidade jurídica e/ou econômica da renda que da azo ao nascimento da obrigação ao pagamento do IR.
Ora, se o momento eleito para o nascimento da obrigação tributária é 31/12/2014 o pagamento de tributos que tenham incidência em parcela de renda inexistente nesse período, nada mais é do que sanção pela conduta que está sendo anistiada, ao fim e ao cabo é justificar a anistia pelo pagamento de Imposto de Renda sem renda.
A regra matriz de incidência tributária não se presta a ser instrumento de justiça penal, ainda que em sua gênese subsista a ideia de justiça tributária, este não é o veículo emanador de aprovação ou reprovação de condutas sociais, sendo certo que a anistia ora proposta não é medida de natureza unicamente tributária, deve respeitar, portanto, que sejam anistiadas condutas ainda que não haja compensação tributária.
Veja bem, o que se pretende dizer é que o alcance da tributação não deve ser confundido com o alcance do perdão de natureza penal trazido pela Lei 13.254/2016, muito menos como condição sine qua non para aproveitamento do benefício, isto é, as condutas ocorridas anteriormente ao último dia de dezembro de 2014, uma vez declaradas, estarão protegidas pela impossibilidade de persecução penal independentemente da existência de imposto a ser pago, de modo que a conduta, por si só, não representa nascimento de obrigação tributária, salvo se verificada renda ainda existente na data eleita como marco temporal para a verificação da disponibilidade desta.
Além de marcada pela irregularidade narrada anteriormente, verificamos tratar-se de verdadeiro alargamento do aspecto material da regra matriz de incidência da forma como prevista no art. 4º da Lei 13.254/2016, o qual determina que o declarante deve apresentar
declaração única de regularização específica contendo a descrição pormenorizada dos recursos, bens e direitos de qualquer natureza de que seja titular em 31 de dezembro de 2014 a serem regularizados, com o respectivo valor em real, ou, no caso de inexistência de saldo ou título de propriedade em 31 de dezembro de 2014, a descrição das condutas praticadas pelo declarante que se enquadrem nos crimes previstos no § 1o do art. 5o desta Lei e dos respectivos bens e recursos que possuiu.(g.n.)
A separação do que se refere a base de cálculo para fins de tributação e ao que se refere a anistiar as condutas tipificadas em nosso Código Penal é cristalina, o legislador demonstra clara preocupação com a questão, em observância aos princípios mais básicos de nosso sistema tributário constitucional.
Há, nesse sentido, declaração expressa de que, para os bens e recursos que o declarante possuiu, devem ser pormenorizadas as condutas que se enquadrem nos crimes anistiados, dentro das quais haverá, por óbvio, indicação dos valores que estejam ligados a essas condutas, sem que haja, no entanto, nascimento de obrigação de pagar tributo, pela inexistência de verificação da ocorrência da hipótese tributária.
O Princípio da Legalidade em matéria tributária, conforme insculpido no art. 5º da CF fulmina de maneira inafastável o alargamento do aspecto temporal pelo legislador infraconstitucional, já que este pretende inserir elemento que sustente a sanha arrecadatória do Estado, ultrapassando os limites de sua competência, a qual está claramente delimitada pelo artigo supratranscrito.
Não obstante as situações acima narradas, vemos com maior gravidade a tentativa da RFB, com apoio da PGFN e seu parecer CAT 1.035/2016, de alcançar tributariamente os ativos que tenham sido parcialmente consumidos mas que ainda eram de propriedade do declarante em 31/12/2014.
Nos parece mais claro ainda que a Capacidade Contributiva do contribuinte, nestes casos, está diretamente relacionada ao acréscimo patrimonial a ser verificado em 31/12/2014, o qual servirá como componente da base de cálculo para o Imposto de Renda, agir de forma oposta é ferir frontalmente a capacidade de pagar tributos do contribuinte.
Ao se estudar a justificativa ao IR-Ganho de Capital nota-se a necessidade em verificar-se a diferença positiva entre o valor de aquisição e o valor de venda de determinado ativo, sendo, portanto, inerente à ideia do nascimento do tributo a existência de um marco inicial (aquisição do ativo) e marco final (disposição deste) para que haja possibilidade em ser medida a parcela de acréscimo patrimonial alcançável pela obrigação tributária.
Se a ideia do legislador fosse a verificação da evolução patrimonial para incidência do tributo em discussão o texto deveria contemplar essa intenção, isto é, demarcar o início da verificação (bens adquiridos a partir de determinada data) e, a partir daí, determinar os marcos de incidência tributária, ou seja, a composição do histórico e da incidência do IR.
Essa indicação permitiria ao declarante entender o quanto deveria olhar para trás em busca de identificar ativos que deveriam ser incluídos na declaração, reconstruindo o histórico de suas operações, permitindo que a adesão seja feita com segurança jurídica e confiabilidade, isto é, permitir ao declarante ter conhecimento sobre qual o período passado abrangido pela regularização de ativos.
Ao não fazê-lo parece evidente a opção em identificar o patrimônio regularizado a partir de uma fotografia, que deve ser tirada em 31/12/2014, estática, que contemple o acréscimo patrimonial verificado nessa data, sendo certo que eventuais condutas podem ser, da mesma forma, anistiadas exclusivamente para finalidade penal.
Não fosse assim seria necessária a adoção de períodos iniciais para a criação de um período que viria a ser alcançado pela tributação, recriando um filme, uma história em movimento que daria base à verificação da ocorrência das hipóteses de tributação no tempo e o consequente nascimento e dever de pagar o IR incidente.
Concluímos, portanto, que a Lei 13.254/2016 tem duas finalidades precípuas, quais sejam: arrecadar o IR incidente sobre o acréscimo patrimonial verificado em 31/12/2014 e, da mesma forma, anistiar os crimes contemplados pela norma, independentemente da existência de ativos e do pagamento do tributo, desempenhando função diferente da tributária, de modo que os ativos que não existam mais no momento da ocorrência da hipótese tributária somente devem ser considerados para a anistia penal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Código Tributário Nacional, Lei n.º 5.172 de 25 de outubro de 1966. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172.htm> Acesso em: 20 jul, 2016.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm> Acesso em: 20 jul, 2016.
SCHOUERI. Luis Eduardo. Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 2012.