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A perspectiva neoconstitucional da execução fiscal: limites e possibilidades

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Agenda 17/09/2016 às 13:04

Reflexos que a teoria do neoconstitucionalismo exerce sobre a Lei de Execuções Fiscais (nº 6.830/81).

Introdução

A Lei nº 6.830 de 1981 regulamenta, em nível nacional, o processo de execução fiscal no Brasil, sendo certo que cria toda sorte de prerrogativas vantajosas às Fazendas Públicas Federal, Estaduais e Municipais.

De acordo com o artigo 16, §1º, da referida lei, os embargos à execução fiscal estão condicionados à prévia garantia do juízo, o que cria inquestionável embaraço àquele que pretende discutir o crédito fazendário, mas que não possui recursos financeiros ou bens suficientes para garantir a execução fiscal.

Diante de tal quadro, surge a dúvida se tal disposição legal encontra amparo na Constituição Federal de 1988, que, como se sabe, trouxe em seu bojo toda sorte de princípios aplicados ao processo, dentre os quais ressalta-se o do devido processo legal, em seus vieses da ampla defesa e do contraditório.

Afinal, que não se olvide que o neoconstitucionalismo é uma realidade no ordenamento jurídico brasileiro, sendo certo que impõe que todos os demais ramos que compõem e dão significado ao ordenamento jurídico brasileiro devem ser relidos e reinterpretados à luz da Constituição da República e de seus preceitos legitimadores.

Dessa forma, a lei execução fiscal, como não poderia ser diferente, não está imune ao neoconstitucionalismo, de modo que seus institutos, princípios e demais dispositivos devem ser examinados sob a perspectiva do neoconstitucionalismo. A tal análise será dedicado o presente estudo.


2. Desenvolvimento

2.1 Do Neoconstitucionalismo

O Direito há séculos se desenvolve sob a tensão dialética entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico. Aquele se preocupa em estabelecer a ligação entre direito e moral, preconizando que as normas jurídicas devem contemplar pautas jusfilosóficas, ao passo que esse apresenta proposta de divórcio absoluto e integral entre direito e moral, sendo certo que as normas jurídicas, a fim de garantir segurança aos seus destinatários, devem ser desprovidas de quaisquer valorações de índole moral.

Com efeito, em face das barbáries perpetradas ao longo da II Guerra Mundial, iniciou-se um processo de resgate do jusnaturalismo, já que evidentemente se presta a ampliar o espaço de tutela e promoção dos direitos intrinsecamente humanos, pois não se olvide que as atrocidades nazistas foram levadas a efeitos sob o crivo legal.

No entanto, “o renascimento do jusnaturalismo na segunda metade do século XX foi bastante fugaz. Como o direito natural só podia se basear em fundamentação metafísica, ele não mais se sustentava em sociedades plurais, nas quais vigoram múltiplas concepções acerca do bem, inúmeras identidades particulares, diversos projetos de vida. Por isso, a tentativa de resgate do jusnaturalismo acabou abandonada, mas as inquietações provocadas pela crise do positivismo jurídico se mantiveram acesas. Muitas têm sido as propostas formuladas desde então para oferecer uma alternativa consistente ao Direito, sem retroceder, contudo, ao antigo dilema entre positivismo e jusnaturalismo. Nesse cenário, pode ser identificada a emergência de um novo paradigma jusfilosófico, que tem sido chamado de pós-positivismo, que se caracteriza por buscar a ligação entre o Direito e a Moral por meio da interpretação de princípios jurídicos muito abertos, aos quais é reconhecido pleno caráter normativo.”[1]

Percebe-se, assim, que o pós-positivismo se apresenta como teoria jusfilosófica intermediária entre o jusnaturalismo e o positivismo, na medida exata em que prestigia pautas morais, impregnadas de intensa carga valorativa, mas o faz através de normas-princípios, não se desgarrando, por completo, portanto, do ordenamento jurídico positivo.

Em sede constitucional, mormente em cartas prolixas e fortemente influenciadas por princípios semântica e axiologicamente abertos, como é o caso da Constituição brasileira de 1988, o pós-positivismo redundou na elaboração de um novo projeto constitucional, ao qual emprestou-se a nomenclatura de neoconstitucionalismo.

O professor Daniel Sarmento bem sintetiza os elementos informadores da teoria neoconstitucionalista:

a) reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito;

b) rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou ‘estilos’ mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da argumentação, etc.;

c) constitucionalização do Direito, com a irradiação de normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento;

d) reaproximação entre o Direito e a Moral; e

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e) judicialização da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário.[2]

Da exposição acima disposta extrai-se que é da essência neoconstitucionalista a irradiação dos princípios e valores constitucionais sobre os demais ramos componentes do universo jurídico brasileiro, em ordem a que bem se promova uma releitura dos institutos jurídicos nacionais à luz das prescrições constitucionais.

Ademais, preceitua a teoria em questão que os princípios constitucionais ostentam inegável força normativa, pelo que podem ser invocados e aplicados ao caso concreto a despeito da existência de regra jurídica intermediária.

Sobre o tema, o professor Luís Roberto Barroso pontua que, “em suma: o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito.”[3]

Em interessante ensaio, o professor Fredie Didier apresenta a noção do chamado “Neoprocessualismo”, que, nas suas palavras, “destaca a importância que se deve dar aos valores constitucionalmente protegidos na pauta de direitos fundamentais na construção e aplicação do formalismo processual.”[4]

O neoprocessualismo corporificaria a quarta fase de desenvolvimento da ciência processual, eis que precedida pelo sincretismo, processualismo e instrumentalismo.[5]

O termo em questão, conforme explicitado pelo professor baiano, nada mais significa do que a releitura do direito, instrumento processual, nos termos e à luz dos princípios insertos na Carta Constitucional de 1988.

Por tudo quanto exposto, é certo que o artigo supramencionado na lei de execução fiscal (art. 16, §1º) deve ser analisado sob o ângulo dos mais diversificados princípios processuais constitucionais.

No entanto, ao fazê-lo, é fácil constatar que a exigência de prévia garantia do juízo, tal como definido e exigido pela lei fiscal, não se coaduna com os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, como se passará a demonstrar a seguir.

2.2 Do princípio do contraditório

O artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, expressa que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

O professor Fredie Didier Júnior entende que o princípio do contraditório “é reflexo do princípio democrático na estruturação do processo. Democracia é participação, e a participação no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório. O princípio do contraditório deve ser visto como exigência para o exercício democrático de um poder”, ao passo que o princípio da ampla defesa é “direito fundamental de ambas as partes, consistindo no conjunto de meios adequados para o exercício do adequado contraditório.”[6]

As disposições legais e doutrinárias acima colacionadas nos permite concluir que não se pode admitir, atualmente, que qualquer procedimento, seja ele judicial ou administrativo, se desenvolva ao arrepio do princípio do contraditório.

No entanto, é evidente que a exigência de prévia garantia do juízo colide, frontalmente, com o princípio do contraditório, pois impede que as afirmações levadas a efeito pelo fiscal, no bojo de sua Certidão de Dívida Ativa – CDA, sejam questionadas e relativizadas pelo contribuinte desprovido em recursos.

Que não se olvide, ademais, que a própria lei de execução fiscal – LEF é expressa ao afirmar que a certidão de dívida ativa goza tão somente se presunção relativa de exigibilidade, certeza e liquidez. No entanto, de que todo será possível a elisão da referida presunção se não se admitir ao contribuinte o exercício pleno, livre e desembaraçado dos embargos à execução fiscal?

Daí a conclusão de que os artigos em questão -- que atribui presunção relativa à CDA e aquele outro que impõe a prévia garantia do juízo para fins de exercício dos embargos à execução fiscal -- estão em descompasso e incoerência lógica, pois a exigência de prévia garantia do juízo vulnera a relatividade ostentada pela CDA.

No entanto, sabe-se que as modernas pautas hermenêuticas não admitem incompatibilidades lógicas dentro de um único diploma legislativo, pelo que deve-se buscar a interpretação que melhor satisfaça o ideal preconizado pelo legislador quando da edição da lei. A isso atribui-se o nome de interpretação teleológica.

Sabe-se que o direito, enquanto ciência social, não é um fim em si mesmo, de sorte que suas normas, regras ou princípios, ostentam inquestionável valor instrumental, na medida exata em que se prestam a tutelar as mais variadas circunstâncias da vida social.

Com efeito, no direito moderno, a forma cedeu espaço à substância, sendo certo que a interpretação jurídica deve ser, por isso mesmo, compromissada com os valores e finalidades subjacentes ao texto legal, a fim de que dele se extraia a norma mais adequada e vocacionada a concretizar, a um só tempo, a Constituição da República, o Código de Processo Civil e a justiça, porquanto fim último do direito.

O professor Daniel Sarmento bem sintetiza a interpretação teleológica como aquela “que busca a finalidade subjacente ao preceito a ser interpretado”.[7]

No entanto, como não poderia ser diferente, há limites à perquirição das finalidades normativas. Assim é que não se pode, sob o pretexto da interpretação teleológica, realizar contorcionismo jurídico capaz de produzir normas que, absolutamente divorciada do texto expresso legal, se prestam unicamente a revestir de juridicidade toda sorte de posturas arbitrárias e unilaterais.

Válidas, portanto, as advertências de Luís Roberto Barroso, para quem “a intepretação teleológica não pode servir para chancelar o utilitarismo, o pragmatismo e o consequencialismo quando isso importe em afronta aos direitos fundamentais protegidos constitucionalmente”. [8]

Desse modo, os valores inerentes à interpretação devem ser aqueles com assento constitucional.

Portanto, deve-se perquirir, dentre as possível, acerca da interpretação que melhor e mais amplamente satisfaça a Constituição da República.

Com efeito, a melhor interpretação da LEF, aquela que mais prestigia o princípio do contraditório, é, sem dúvida, aquela no sentido da desnecessidade de prévia garantia do juízo como forma idônea e juridicamente legítima de afastar a presunção de liquidez e exigibilidade d a CDA.

2.3 Do princípio da ampla defesa

Ao lado do princípio do contraditório, existe também o princípio da ampla defesa, igualmente componente do substrato material do devido processo legal, que autoriza o litigante o uso irrestrito de todos os mecanismos juridicamente legítimos para provar a veracidade das afirmações por ele levadas a efeito no processo judicial.

Nesse sentido, dúvidas não há de que a exigência de prévia garantia do juízo é medida a fragilizar o princípio da ampla defesa, na medida exata em que impede que o polo passivo da execução fiscal se utilize de meios juridicamente adequados para fazer demonstrar a idoneidade de seus argumentos.

2.4 Do princípio da igualdade

Prescreve o art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988 que todos são absolutamente iguais perante a lei, não sendo lícita a distinção discriminatória entre concidadãos.

A tal conceito atribui-se o qualificativo de igualdade formal, pois prevista em instrumento formal, no caso, a lei constitucional.

No entanto, ao lado da noção geral de igualdade formal reside uma outra, qualificada, produto da observação histórica de que, do ponto de vista fático, as pessoas nem sempre estão em situação de igualdade absoluta, seja por questões econômicas, regra geral, seja em virtude de elementos outros, tais como o racial ou de gênero.[9]

Assim, ambicionando a garantia da efetiva igualdade entre pessoas faticamente desniveladas, surge o conceito de igualdade material, traduzido na máxima aristotélica de que os iguais devem ser tratados de maneira idêntica, ao passo que os desiguais deverão ser desigualados na medida de suas desigualdades.

Coexistem, portanto, harmoniosamente, os conceitos de igualdade formal e material no direito positivo brasileiro.

Com efeito, é certo que a exigência de prévia garantia do juízo ofende o princípio da igualdade, pois permite que apenas aquele devedor com maior disponibilidade financeira tenha condições de discutir o valor em juízo, ao passo que ao devedor menos afortunado nada será possível fazer.

Assim, também o princípio da igualdade é fragilizado pela atual redação do art. 16, §1º, da LEF.          


3. CONCLUSÃO

Nos termos assentados no presente estudo, percebe-se que o art. 16, §1º, da Lei de Execução Fiscal, ao impor a prévia garantia do juízo para fins de se legitimar o manejo dos embargos à execução fiscal, acaba por fragilizar diversos princípios processuais com assento na Constituição da República de 1988, notadamente o do devido processo legal, contraditório, ampla defesa e igualdade.

Não obstante, adota-se no Brasil, hoje, a teoria do neoconstitucionalismo, que, ao situar a Constituição da República no ápice do ordenamento jurídico brasileiro, exige que toda legislação infraconstitucional seja adequadamente relida à luz do texto constitucional.

Dessa forma, o art. 16, §1º, da LEF não passa pelo filtro do neoconstitucionalismo, pois, repisa-se, ofende toda sorte de princípios constitucionais, pelo que deve-se reconhecer a sua recepção pelo texto republicano atual, de sorte a se permitir que os embargos à execução fiscal sejam ajuizados a despeito de prévia garantia do juízo.

Sobre o autor
Luiz Fernando Pereira de Oliveira

Bacharel em direito pela UFJF<br>Pós-graduado pela UCAM<br>Procurador do Município de Ouro Preto<br>Advogado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Luiz Fernando Pereira. A perspectiva neoconstitucional da execução fiscal: limites e possibilidades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4826, 17 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51088. Acesso em: 24 nov. 2024.

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