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A minimização do sentire judicial sob a ótica do dever de fundamentar no novo Código de Processo Civil

Insere-se como instrumento fundamental do novo diploma processual civil o dever de fundamentar, principalmente à luz da interpretação dada ao art. 489, §1, buscando garantir uma tutela jurisdicional diferenciada, condizente com a CF/88.

Há muito se discute acerca do dever de fundamentação atribuído ao magistrado quando da prolação de suas decisões, seja a nível interlocutório, seja a nível sentenciante, de modo que o novo diploma processual civil brasileiro não apresentou um cunho inovador nesse aspecto, mas sim intensificou esta importante ferramenta democrática, trazendo dispositivos indicadores de uma nova perspectiva sobre a motivação das decisões, de maneira mais sólida e até certo ponto intimidativa, haja vista a dinâmica processual brasileira, mas sem dúvida um grande avanço para o ordenamento jurídico pátrio e para todos os envolvidos na relação processual e extraprocessual.

Embora esta relevante garantia processual tenha previsão de longa data, como se extrai do Código de Processo Civil de 1939[2], ganhou impulso e relevo social primordialmente com a Constituição Federal de 1988, através do art. 93, inciso IX, tendo em vista que, inserida sob o prisma do Estado Democrático de Direito, passou a constituir um fator de legitimação do próprio poder judiciário, diante da própria credibilidade de seus julgados, tendo em vista, principalmente, que os membros desse poder estrutural do Estado, em uma concepção clássica de legitimação popular, careceriam dessa característica, pois, ausente a sua investidura no cargo mediante processo eleitoral, surgindo a corrente afirmadora da ilegitimidade do Poder Judiciário diante do déficit de representatividade popular dos seus membros.

Com efeito, não se mostra razoável, em um Estado Democrático de Direito, a obsoleta forma de julgamento baseado no puro e simples sentimento do juiz[3], baseado nas razões pessoais do julgador, sendo prescindível, nessa concepção, exteriorizar sua forma de pensamento ou ideia pelo qual se chegou à certificação do direito das partes envolvidas. Essa característica inquisitória não encontra mais guarida no ordenamento jurídico moderno, principalmente em um modelo processual que se busca ao máximo a aproximação com os princípios e regras delineadas pela Constituição Federal.

Nesse sentido, o Código de Processo Civil de 2015 deve ser interpretado à luz da Constituição e seus valores primordiais, como se extrai da própria dicção do art. 1 do novo diploma processual civil, ao asseverar que “o processo civil será disciplinado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República”. Nessa esteira, um importante esforço trazido pelo legislador e que se relaciona sobremaneira com a temática da fundamentação judicial, na tentativa de adequar ainda mais o instituto processual ao sistema democrático constitucional, se traduz na busca de minimizar o modelo tradicionalmente adversarial do processo, passando-se a adotar um modelo colaborativo, baseado no princípio da cooperação processual[4], em que as partes efetivamente colaborassem entre si para a formação do convencimento judicial.

Nesse diapasão, é fundamental, na organização do formalismo de um modelo de processo civil inspirado na colaboração, que sejam levados em consideração os pontos de vista externados pelas partes ao longo do procedimento quando da decisão da causa (MITIDIERO, 2011, P. 155-156). Ademais, infere-se que tal princípio demanda um necessário diálogo entre o magistrado e as partes, preocupados com o proferimento de uma melhor decisão para a lide (BUENO, 2013, p. 130).

A fundamentação judicial possui duas importantes vertentes no direito processual. Voltada exclusivamente para os sujeitos processuais, em um primeiro momento, a decisão judicial, em sentido lato, sob o enfoque endoprocessual, se traduz na necessidade das partes conhecerem as razões de decidir do julgador, a fim de exercer, com a devida impugnação específica, o direito ao duplo grau de jurisdição na esfera recursal.

Sob o prisma político-social, a motivação se mostra relevante fator de legitimação das decisões judiciais, como já dito anteriormente, tendo em vista que confere um controle da atividade judicial não só do ponto de vista estritamente jurídico, mas de uma forma muito mais ampla, permitindo a supervisão por toda a coletividade (NEVES, 2016, p. 125).

Demonstrando a necessidade e crescente importância atribuída ao dever de fundamentar do Estado-juiz, e observando as hipóteses, não raras, de decisões judiciais anuladas pelos tribunais por ausência de fundamentação, sequer permitindo a compreensão dos julgados apresentados, situação que beira a perplexidade à luz do direito processual-constitucional moderno, o legislador infraconstitucional buscou enrijecer a questão da motivação, passando a estabelecer situações em que não se consideram fundamentadas as decisões judiciais, consoante se pode extrair do art. 489, §1 do Código de Processo Civil de 2015[5].

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É de grande impacto a preocupação veiculada pelo legislador em reservar um dispositivo legal específico para as hipóteses de ausência de fundamentação das decisões, de modo que irá interferir demasiadamente no cotidiano forense, não permitindo ao magistrado, como prática comum de outrora, motivar seus atos simplesmente afirmando que uma determinada situação jurídica preenche os requisitos normativos, ou ainda se limitando a indicar um mero dispositivo legal sem mencionar qualquer relação com os fatos narrados, dificultando a possibilidade recursal da parte prejudicada.

Com efeito, a tentativa de vetar o dispositivo supramencionado[6], pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), ainda que com argumentos plausíveis, não haveria de ser (e não foi) suficiente para desconstruir esse importante avanço no modelo processual brasileiro. De fato, o notório déficit de servidores públicos aliado ao elevadíssimo número de demandas judiciais[7], bem como o precário aparelhamento estrutural em diversos locais do país constituem fatores a serem observados, dificultando a gestão das unidades judiciais brasil afora. Todavia, tais condições não podem ter o condão de justificar uma ausência de prestação jurisdicional diferenciada e efetiva, assegurando ao jurisdicionado à certificação judicial de maneira clara e bem fundamentada, fatores condizentes com os ditames estabelecidos pela Constituição da República.

Acrescente-se, por oportuno, que malgrado seja relevante a preocupação dos operadores judiciais acerca da razoável duração das demandas, bem como da economia processual, que constituem importantes mandamentos constitucionais, deve-se priorizar um modelo de gestão judiciária que vise a garantir a integração de todos esses princípios constitucionais, não devendo servir como obstáculo para a produção de decisões carentes de fundamentação.

Nesse sentido, caminha o legislador em sintonia com a Constituição Federal e o Estado Democrático de Direito, ao exigir do juiz uma posição firme e bem fundamentada, capaz de permitir ao jurisdicionado o conhecimento fático jurídico, de maneira transparente e sólida, do posicionamento infirmado pelo magistrado que proferiu a decisão, para que possa exercer, ou não, o seu direito ao duplo grau de jurisdição. Negar eficácia ao art. 489, §1 do novo diploma processual civil é retroceder a ideia de um processo inquisitivo, estático, baseado no livre arbítrio pessoal do juiz, recusando o postulado do processo democrático e cooperativo, ocasionando insegurança jurídica que pode gerar inúmeras anulações de decisões judiciais pelos tribunais. 

Engana-se, contudo, quem entende pela ruptura da autonomia decisória do juiz, afirmando que o novo modelo processual em vigor retira por completo o caráter pessoal da decisão judicial, um ato de criação solitário do magistrado. O magistrado pode até encontrar-se controlado e sua atuação supervisionada pela lei, mas ao final do dia é sempre ele, no isolamento de seu gabinete ou casa, quem profere a decisão, fazendo interpretações jurídicas que são, por óbvio, influenciadas por suas opiniões pessoais, as quais irão se fazer incidir, indiretamente, na ratio decidendi do juiz (NEVES, 2016, P. 124).

Todavia, importa observar que o novo Código de Processo Civil, ao enfatizar o dever de fundamentar as decisões judiciais de maneira específica e firme, acaba, não por abolir, mas minimizar o conceito clássico atribuído às decisões judiciais, como pronunciamentos de puro sentimento pessoal do juiz em relação ao contexto fático apresentado.

Deve-se, pois, deixar de lado o antigo brocardo do “sentire”, cabendo ao magistrado debruçar-se sobre todas as teses jurídicas da relação processual, proferindo suas decisões com base em um modelo cooperativo em que se assegure a efetiva participação das partes na formação do convencimento do juiz, confrontando-se os argumentos informados pelas partes sob o prisma da verdade formal carreada aos autos do processo.


REFERÊNCIAS

Brasil atinge a marca de 100 milhões de processos em tramitação na Justiça. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-15/brasil-atinge-marca-100-milhoes-processos-tramitacao. Acesso em: 25/07/2016.

BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 1.

Código de Processo Civil 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 25/07/2016.

Juízes pedem veto a artigo que traz regras para fundamentação de decisões. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mar-04/juizes-pedem-veto-artigo-cpc-exige-fundamentacao. Acesso em: 25/07/2016.

KORENBLUM, Fábio. A polêmica acerca da efetiva motivação das decisões judiciais sob a perspectiva do novo Código de Processo Civil. Disponível em:http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI217116,91041A+polemica+acerca+da+efetiva+motivacao+das+decisoes+judiciais+sob+a. Acesso em: 25/07/2016.

MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2 ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2011. pg. 155-156.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 8. Ed. Juspodium. Salvador. 2016.


Notas

[2] Código de Processo Civil de 1939 - Art. 280. A sentença, que deverá ser clara e precisa, conterá:

(...) II – os fundamentos de fato e de direito;

3 A sentença judicial, pronunciamento judicial de maior impacto no processo, tem origem na palavra em latim “sentire”, que pressupõe um ato de sentimento pessoal do juiz acerca dos fatos para ele trazidos, caracterizando um ato de autoridade estatal.

[4] Art. 6: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. O comando normativo demonstra a preocupação do legislador em adotar um modelo de gerência processual em que as partes efetivamente colaborem entre si para uma conclusão célere e justa, participando ativamente na formação do convencimento judicial.

[5] § 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

[6] http://www.conjur.com.br/2015-mar-04/juizes-pedem-veto-artigo-cpc-exige-fundamentacao.

[7] Conforme dados levantados pelo Conselho Nacional de Justiça, através do programa “Justiça em números”, em 2014 passaram pela jurisdição dos 90 tribunais brasileiros, 99,7 milhões de processos. O grande litigante do país é o poder público. O levantamento do CNJ mostra que 15% dentre 23,7 milhões de ações que ingressaram na Justiça se referem a matéria tributária, previdenciária ou de Direito Público, todas áreas que envolvem a administração pública em seus diferentes níveis - federal, estadual e municipal; disponível em:(http://www.conjur.com.br/2015-set-15/brasil-atinge-marca-100-milhoes-processos-tramitacao).

Sobre o autor
Francisco Ney Carvalho de Araújo Júnior

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte (Uni-RN). Residente Judicial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, mediante convênio entre a ESMARN e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO JÚNIOR, Francisco Ney Carvalho. A minimização do sentire judicial sob a ótica do dever de fundamentar no novo Código de Processo Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4800, 22 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51146. Acesso em: 22 dez. 2024.

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