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A construção do ideário do desenvolvimento sustentável na governança comercial global.

O sistema GATT, a organização internacional do comércio-OMC e a questão do meio ambiente

Agenda 03/08/2016 às 17:49

O presente trabalho procura fazer uma revisita ao tema do tratamento da questão do meio ambiente nos órgãos de governança comercial global, responsáveis pelo desenvolvimento do livre-comércio entre as nações.

RESUMO

O presente trabalho procura fazer uma revisita ao tema do tratamento da questão do meio ambiente nos órgãos de governança comercial global, responsáveis pelo desenvolvimento do livre-comércio entre as nações, dando-se uma especial ênfase, no sistema multilateral de comércio, à introdução do ideário do desenvolvimento sustentável, propugnado no “Relatório Brundtland”, de 1987, e na “Conferência Rio-92”, quando se passou a observar a busca de uma exegese mais comprometida com a utilização equilibrada dos recursos naturais, mediante a imposição de regras que auxiliem a implementar medidas para responder às preocupações ambientais do Planeta.

Pretende-se, especialmente, explorar a importância que é dada ao tema do desenvolvimento sustentável quando do surgimento da Organização Mundial de Comércio-OMC, criada pelo “Tratado de Marraqueche”, em 1994, em cujo preâmbulo de seu Acordo Constitutivo inclusive constou a necessidade de harmonização das funções basilares da OMC, no sentido de garantir o livre-comércio entre as nações, com a agenda ambiental internacional, sobretudo num tempo em que a noção de utilização racional dos bens da natureza passa a fazer parte não somente de vários diplomas normativos internos dos países, mas, e especialmente, de vários Acordos Multilaterais Ambientais-AMAs firmados entre os Estados, membros ou não da OMC, expressando uma tendência na formulação de políticas e regulamentações que assegure que a liberalização comercial não irá conduzir a uma maior depleção do meio ambiente.

Dividiu-se o trabalho em cinco partes: uma pequena noção introdutória; uma apresentação do histórico de criação do sistema de regulação internacional do comércio, desde o sistema GATT (“General Agreement on Tariffs and Trade”, ou, em português, “Acordo Geral de Tarifas e Comércio”) ao surgimento da OMC, em 1994; uma incursão sobre a presença do ideário da utilização racional dos bens ambientais e do desenvolvimento sustentável na OMC; uma abordagem exemplificativa sobre como algumas questões comerciais com efeitos ambientais transfronteiriços foram decididas pelos órgãos de resolução de controvérsias no sistema multilateral de comércio entre as nações (GATT e OMC); e, finalmente, uma conclusão sobre o tema, mediante a qual se demonstra que a OMC tem caminhado paulatinamente na direção de um contínuo balanceamento na ponderação entre as regras de livre-comércio e proteção do meio ambiente.

Palavras-chave: Sistema de regulação internacional do comércio; sistema multilateral de comércio; livre-comércio; GATT; “General Agreement on Tariffs and Trade”; Acordo-Geral de Tarifas e Comércio; OMC; Organização Mundial de Comércio; “Tratado de Marraqueche”; preâmbulo; Acordo Constitutivo da OMC; meio ambiente; bens ambientais; proteção do meio ambiente; agenda ambiental internacional; desenvolvimento sustentável; sustentabilidade; utilização racional; Acordos Multilaterais Ambientais-AMAs; Direito Ambiental Internacional; questões ambientais com efeitos transfronteiriços; proteção do meio ambiente.

ABSTRACT

This paper seeks to make a revisit to the issue of environmental issue of treatment in global trade governance bodies, responsible for the development of free trade between nations, giving a special emphasis on the multilateral trading system, the introduction of ideas of sustainable development, advocated the "Brundtland Report", 1987 and "Rio-92 Conference," when it came to observe the search for a more committed exegesis with the balanced use of natural resources, by imposing rules assist to implement measures to address the environmental concerns of the planet.

It is intended, in particular, explore the importance given to the theme of sustainable development when the emergence of the World Trade Organization-WTO, created by the "Treaty of Marrakech" in 1994 in the preamble of its Articles of Agreement including consisted the need to harmonize the basic functions of the WTO, to ensure free trade between nations, the international environmental agenda, particularly at a time when the notion of rational use of nature's goods shall become not only part of various regulatory instruments Internal countries, but, especially, of various Multilateral Environmental Agreements-AMAs signed between states, members or not of the WTO, expressing a tendency in the formulation of policies and regulations to ensure that trade liberalization will not lead to further depletion environment.

The work was divided into five parts: a short introductory notion; a presentation of the history of creation of the international regulatory system of trade since the GATT system ("General Agreement on Tariffs and Trade," or, in Portuguese, "General Agreement on Tariffs and Trade") to the emergence of the WTO in 1994; a raid on the ideas of the presence of rational use of environmental goods and sustainable development in the WTO; an exemplary approach on some trade issues with transboundary environmental effects were decided by dispute resolution bodies in the multilateral trading system among nations (GATT and WTO); and finally a conclusion on the subject, in which it demonstrates that the WTO has been moving gradually towards a continuous balancing the weighting between free trade rules and environmental protection.

Keywords: System of international trade regulation; multilateral trading system; free trade; GATT; "General Agreement on Tariffs and Trade"; General Agreement on Tariffs and Trade; WTO; World Trade Organization; "Treaty of Marrakesh"; preamble; The WTO Agreement; environment; environmental goods; environmental protection; international environmental agenda; sustainable development; sustainability; rational use; Multilateral Environmental Agreements-AMAs; International Environmental Law; environmental issues with cross-border effects; protection of the environment.

  1. Introdução.

A Organização Mundial do Comércio-OMC é a instituição responsável pela implantação e supervisão das regras do comércio entre as nações, com poderes efetivos para a adequação a estas normas pelos Estados-Membros, cuja criação, em 1º de janeiro de 1995, se dá como resultado do “Acordo de Marraqueche”, firmado por 125 países em 04 de abril de 1994, o qual foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto Legislativo nº 30, de 15 de dezembro de 1994, e promulgado pelo Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 30/12/1994. A partir de então, com personalidade jurídica própria, distinta de seus Países-Membros, a criação da OMC fez surgir, finalmente, uma base jurídica sólida para o sistema de comércio multilateral, com a extinção de derrogações históricas ao comércio entre as nações, a obrigatoriedade de subscrição dos acordos internacionais entabulados, e a instituição de um mecanismo compulsório de solução de controvérsias, o que, no seu conjunto, representa uma mudança de grande alcance ao sistema de comércio multilateral existente até então.

Como organização internacional, a OMC foi estabelecida compreendendo a estrutura do antigo Acordo-Geral de Tarifas e Comércio-GATT, incorporando os acordos temáticos aprovados até então pelos países nas mais diferentes subáreas do comércio internacional, tudo com o objetivo de administrar os mais diversos acordos comerciais firmados no âmbito das negociações multilaterais de comércio e criar mecanismos de solução de controvérsias e de revisão de políticas comerciais (PIFFER, 2011, p. 111).

Discute-se atualmente, num tempo em que se destaca a preocupação da humanidade para com a sustentabilidade dos recursos naturais e o impacto da atividade humana no Planeta, gerando questionamentos em áreas diversas na busca contínua de um estado de harmonia entre o homem e o meio ambiente, se existe compatibilidade entre a agenda ambiental e a agenda da OMC, foro onde, em várias formas e em diferentes momentos, a questão ambiental passou a constar da pauta de debates e reivindicações.

O nascedouro dessa tomada de consciência universal acerca do efeito antrópico das atividades econômicas sobre os bens ambientais tem a sua marca, registre-se desde logo, com o surgimento do “Relatório Brundtland”, em 19872, mas, e sobretudo, naquela que viria a ser a maior e a mais representativa das conferências até então promovidas pela Organização das Nações Unidas-ONU, conhecida como “Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento-CNUMAD/UNCED de 1992”3, a qual teve como base as premissas da “Convenção de Estocolmo de 1972”4, foro no qual se debateu pela primeira vez, ainda no contexto da “guerra fria”, a questão do meio ambiente planetário.

O cerne da análise aqui proposta é, pois, como têm sido harmonizadas as funções basilares da OMC no sentido de proporcionar o desenvolvimento do livre-comércio entre as nações com a agenda ambiental internacional, sobretudo num tempo em que a noção de desenvolvimento sustentável passa a fazer parte não somente de vários diplomas normativos internos dos países5, mas, e inclusive, do próprio preâmbulo do “Acordo de Marraqueche”6.

No entanto, até se chegar a esse momento, no qual se reconhece que as relações comerciais devem ser perseguidas em conformidade com padrões que busquem elevar os níveis de vida e promovam um desenvolvimento sustentável, centrado na utilização racional dos recursos naturais renováveis e não renováveis, levando-se em conta a inegável e íntima relação entre os problemas associados à degradação ambiental e o crescimento econômico, percorreu-se um longo caminho, no qual mais recentemente, segundo Niencheski (2012, p. 136), ­desponta em importância o grande número de Acordos Multilaterais Ambientais-AMAs firmado entre os Estados, membros ou não da OMC, expressando uma tendência na formulação de políticas e regulamentações que assegure que a liberalização comercial não irá conduzir a uma maior depleção do meio ambiente.

  1. O processo histórico de criação de um sistema de regulação internacional do comércio: do sistema GATT ao surgimento da Organização Mundial do Comércio-OMC.

Embora só recentemente a criação da Organização Mundial do Comércio-OMC tenha atingido a sua segunda década de existência, ela é resultado de um sistema de comércio internacional que data de mais de meio século.

De fato, em sua origem, com o final da 2ª Guerra Mundial, deparados com a necessidade de reconstruir a economia mundial abalada por anos de destruição econômica, os países aliados necessitavam urgentemente de órgãos que delimitassem o comércio entre as nações, com o intuito de criar um ambiente pacífico na área da economia internacional, prevenindo o surgimento de novos conflitos. Tal disposição possibilitou as condições para que se implantasse uma nova ordem econômica no ocidente condizente com a visão liberalizante que era predominante nos Estados Unidos, os quais, temerosos quanto à repetição do quadro de instabilidade econômica e crescente proteção comercial que havia contribuído, afinal de contas, para o surgimento dos dois conflitos mundiais que se estenderam sobre o Planeta em 1914 e 1939, e buscando novos mercados para seus produtos manufaturados, assumiram uma política externa voltada especialmente para a liberalização do comércio global.

Restou concluído, assim, ainda antes do final da 2ª Guerra Mundial, em 1944, o “Acordo de Bretton Woods” (em inglês, “Bretton Woods Agreement”), firmado por 730 delegados de todas as 44 nações aliadas em combate contra as forças do “Eixo Alemanha-Itália-Japão”, os quais se reuniram no “Mount Washington Hotel”, em Bretton Woods, New Hampshire, Estados Unidos, na chamada “Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas”, mediante a qual estabeleceram as regras para as relações comerciais e financeiras do pós-Guerra, tendo como objetivo governar as relações monetárias entre Nações-Estados independentes, como nos conta Thorstensen (2001, p. 29):

Em 1944, foi concluído um acordo, em Breeton Woods, EUA, com objetivo de criar um ambiente de maior cooperação na área da economia internacional, baseado no estabelecimento de três instituições internacionais. (...) A primeira seria o FMI-Fundo Monetário Internacional, com função de manter a estabilidade das taxas de câmbio e assistir os países com problemas de balanço de pagamentos através de acesso a fundos especiais, e assim desestimular a prática da época de se utilizar restrições ao comércio cada vez que surgisse um desequilíbrio do balanço de pagamentos. A segunda seria o Banco Mundial ou Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento, com função de fornecer os capitais necessários para a reconstrução dos países atingidos pela guerra. A terceira seria a OIC-Organização Internacional do Comércio, com função de coordenar e supervisionar a negociação de um novo regime para o comércio mundial baseado nos princípios do multilateralismo e do liberalismo.

Finalizada a 2ª Guerra Mundial em 1945, o Fundo Monetário Internacional-FMI – que posteriormente evolui em seus objetivos para promover a cooperação monetária global, a estabilidade financeira e o crescimento econômico sustentável em todo o mundo – e o Banco Internacional para Construção e Desenvolvimento-BIRD – que também evolui, passando a denominar-se Banco Mundial, com a função de financiar o desenvolvimento dos países mais pobres –, de fato foram criados e posteriormente passaram a exercer suas atividades.

A intenção era, portanto, criar uma terceira instituição para lidar com a área do comércio de cooperação internacional, pretendendo-se juntar-se com o FMI e o Banco Mundial a criação da Organização Internacional do Comércio-OIC como mais uma das agências especializadas da Organização das Nações Unidas-ONU. A ideia era efetivar-se a sua criação na “Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Emprego”, realizada em 1947, em Havana, Cuba, estabelecendo um disciplinamento sobre o comércio mundial que contivesse também regras sobre emprego, acordos sobre produtos básicos, práticas comerciais restritivas, investimentos internacionais e serviços (REALE, 2010, p. 11). Mais do que o comércio internacional, portanto, planejava-se a criação de uma instituição que cuidasse, junto com o FMI e o Banco Mundial, da cooperação econômica entre os países, ou, como diz, Ferracioli (2007, p. 02),

A Organização Internacional do Comércio complementaria o conjunto de instituições desta nova ordem internacional. A ela caberia a gerir um sistema de comércio multilateral com regras definidas, que teria por objetivo facilitar o funcionamento das forças do mercado e a redução das restrições ao comércio internacional. Este regime internacional para o comércio levaria em conta a estabilidade política e econômica dos estados nacionais e deveria resultar em um aumento do nível de emprego e em desenvolvimento econômico.

A OIC, no entanto, acabou não saindo do papel, pois o protagonista do comércio internacional à época – os Estados Unidos –, defendendo interesses próprios, nunca apoiou a sua criação, acabando a nova Organização por não ser estabelecida, particularmente porque a “Carta de Havana”, aprovada pelos 53 países presentes à Conferência, e que delimitava os objetivos e funções dessa nova instituição internacional, não foi ratificada pelo Congresso Americano, cujos representantes acreditavam que a mesma poderia restringir excessivamente a soberania do país na área do comércio internacional (THORSTENSEN, 2001, p. 30).

Reale (2010, p. 11) explica o que se desenrolou após o término da “Conferência de Havana”:

A Carta da OIC foi finalmente aprovada em Havana em março de 1948, mas a ratificação em alguns parlamentos nacionais se revelou impossível. Embora o Governo dos Estados Unidos tivesse sido um dos principais patrocinadores do projeto, a oposição mais grave foi manifestada no Congresso deste país. Em 1950, o Governo dos Estados Unidos anunciou que não pediria ao Congresso que ratificasse a “Carta de Havana”, o que se supôs a morte da OIC.

Diante da não-adesão dos Estados Unidos à criação da OIC, foi negociado um acordo provisório, em 1947, por 23 países, que adotava o segmento da “Carta de Havana” relativo às negociações de tarifas e regras sobre o comércio, visando à redução de tarifas alfandegárias no comércio internacional, segmento este denominado “Política Comercial (Capítulo IV)”, e que passou a ser chamado “Acordo-Geral sobre Tarifas e Comércio” ou “General Agreement on Tariffs and Trade-GATT”.

É o que nos conta Ferracioli (2007, p. 02):

A Organização Internacional do Comércio complementaria o conjunto de instituições desta nova ordem internacional. A ela caberia a gerir um sistema de comércio multilateral com regras definidas, que teria por objetivo facilitar o funcionamento das forças do mercado e a redução das restrições ao comércio internacional. Este regime internacional para o comércio levaria em conta a estabilidade política e econômica dos estados nacionais e deveria resultar em um aumento do nível de emprego e em desenvolvimento econômico.

De registrar, por oportuno, que o GATT nunca foi aprovado definitivamente como uma organização internacional, pois o que entrou em vigor foi um “Protocolo de Aplicação Provisória-PAP” pelo qual as partes integrantes negociaram as regras que fariam parte do GATT, sendo esta a única fórmula encontrada para se chegar a um acordo (BARRAL, 2000, p. 79). Mesmo assim, por ser um tratado internacional com coordenação equivalente a um organismo internacional, o GATT tornou-se um foro de intensas negociações e importantes rodadas, sendo reconhecido por muito tempo como a principal organização de comércio internacional existente.

Com efeito, tendo o GATT sido criado para atender ao objetivo maior de liberalização do comércio internacional, com a eliminação das barreiras comerciais aplicadas pelos países, notadamente daquelas que visam proteger a produção doméstica da concorrência internacional, na prática, embora não tivesse legalmente personalidade jurídica própria, foi progressivamente adquirindo natureza institucional, à medida em que se consolidava como principal foro para a realização de negociações sobre o comércio entre as nações.

É o que acentua Thorstensen (2001, p. 30), senão vejamos:

De simples acordo, o GATT se transformou, na prática, embora não legalmente, em um órgão internacional, com sede em Genebra, passando a fornecer a base institucional para diversas rodadas de negociações sobre comércio, e a funcionar como coordenador e supervisor das regras sobre comércio até o final da Rodada Uruguai e a criação da atual OMC.

Para atingir seu objetivo de alcançar maior liberalização do comércio internacional, com a eliminação das barreiras comerciais aplicadas pelos países, houve uma evolução no conjunto de regras que compõem o GATT, o qual foi firmado ao longo de vários anos por importantes rodadas de negociações multilaterais.

Ao todo, desde a criação do GATT, em 1947, foram realizadas oito rodadas de negociações, que culminaram na criação da OMC e no estabelecimento do sistema das regras que regem o comércio internacional, como se vê no quadro abaixo:

QUADRO 1: NEGOCIAÇÕES MULTILATERAIS DE COMÉRCIO

DATA

LOCAL

PAÍSES

RESULTADOS

COMÉRCIO AFETADO

1947

Genebra-Suíça

23

Concessões tarifárias e reduções aduaneiras (na ordem de 20%).

10 bilhões

1949

Annecy - França

13

Concessões tarifárias e reduções aduaneiras (na ordem de 2,3%)

N.D.

1951

Torquay - Reino Unido

38

Concessões tarifárias e reduções aduaneiras (na ordem de 2,3%).

N.D.

1956

Genebra

26

Concessões tarifárias e reduções aduaneiras (na ordem de 2,3%).

2,5 bilhões

1960-1961

Rodada Dillon

26

Concessões tarifárias e reduções aduaneiras (na ordem de 8%) e novos temas.

4,9 bilhões

1964-1967

Rodada Kennedy

62

Adoção do método de redução linear de tarifas para produtos industriais (na ordem de 50%), criação do “Código Anti-Dumping”.

40 bilhões

1973-1979

Rodada Tóquio

102

Novos acordos sobre antidumping, subsídios, medidas compensatórias, barreiras técnicas, reduções tarifárias para produtos industrializados com a introdução da “fórmula suíça” (1/3, na média).

155 bilhões

1986-1994

Rodada Uruguai

126

Adoção de novas regras e instrumentos, com a criação da OMC.

3,7 trilhões

Fonte: Dados extraídos de Thorstensen (2001, p. 31) e Mesquita (2013, p. 40).

As quatro primeiras rodadas, realizadas respectivamente em Genebra (1947), Annecy (1949), Torquay (1951) e novamente em Genebra (1956), se concentraram no rebaixamento das tarifas alfandegárias aplicadas a uma parte considerável do comércio internacional e na definição dos procedimentos a serem seguidos nas rodadas de negociações e para a acessão de novos Estados ao sistema multilateral de comércio, enquanto a “Rodada Dillon”, realizada entre 1960 e 1961, além da redução das tarifas alfandegárias, incluiu nas negociações assuntos relativos à criação da Comunidade Econômica Europeia (instituída pelo Tratado de Roma, em 1957), e o problema da disparidade de desenvolvimento dos países (NASSER, 2003, p. 38).

Diz-nos mais sobre esse primeiro período Mesquita (2013, p. 39):

Entre 1947 e 1961 foram realizadas cinco rodadas de negociações para reduzir tarifas (denominadas de Genebra, Annecy, Torquay, Genebra e Dillon). As negociações eram feitas por listas de produtos, com pedidos e ofertas de cada país. Como havia a expectativa de reciprocidade, as negociações privilegiavam os principais fornecedores. Não faria sentido oferecer uma vantagem a um pequeno exportador, que teria pouco a oferecer em troca, e estender em seguida a concessão tarifária aos grandes fornecedores pela “cláusula da nação mais favorecida”. Esse mecanismo concentrava a negociação entre os maiores países. Sem moeda de troca, os pequenos não tinham como obter abertura para seus produtos, mas em compensação também não eram obrigados a fazer concessões. Acabavam, assim, pegando “carona” (free riding) nas concessões negociadas pelos maiores. Mesmo para os grandes, no entanto, o método era ineficiente. Com isso, com exceção da rodada original, em que os cortes tarifários foram da ordem de 20%, nas três rodadas seguintes o corte médio nas tarifas foi de apenas 2,3%, e de 8% na Rodada Dillon.

Na “Rodada Kennedy”, realizada entre 1964 e 1967, o método tradicional de pedidos e ofertas foi abandonado em favor de uma meta de redução linear de tarifas para produtos industriais (50%), meta esta que foi alcançada em muitos setores, mas não em áreas consideradas sensíveis como têxteis, calçados, produtos químicos e aço, sendo ainda digna de registro a criação do “Código Antidumping”, o primeiro acordo adicional sobre disciplinas do GATT (MESQUITA, 2013, p. 40).

Já no sétimo ciclo de negociações, denominado “Rodada Tóquio”, que se estende de 1973 a 1979, os países negociaram reduções tarifárias e outros acordos específicos sobre medidas não-tarifárias, ciclo este conduzido em meio a um cenário econômico internacional conturbado, em função principalmente do choque do petróleo de 1973 e da crise econômica em escala global que lhe seguiu7, tratando-se, porém, da negociação mais abrangente que o sistema multipolar de comércio conheceu antes da “Rodada Uruguai". De fato, na “Rodada Tóquio” introduziu-se a chamada “fórmula suíça” para a redução de tarifas, uma construção matemática que, além de estabelecer um teto máximo para as novas tarifas, efetua cortes proporcionalmente maiores nas tarifas iniciais mais elevadas, efeito que produz uma fórmula de harmonização, reduzindo a dispersão das tarifas iniciais aplicáveis ao comércio entre as nações, processo este cujo resultado final foi a redução média de um terço nas tarifas dos países industrializados8 (MESQUITA, 2013, p. 40).

Na mesma “Rodada Tóquio” houve o primeiro esforço significativo para se levar ao âmbito do GATT os assuntos relativos à propriedade intelectual, propostas estas que, no entanto, não obtiveram sucesso, tendo havido, de qualquer forma, destacados avanços no enfrentamento das barreiras não-tarifárias, tendo-se concluído importantes acordos em setores específicos da economia: barreiras técnicas; subsídios; “antidumping”; valoração aduaneira; licenças de importação; compras governamentais; comércio de aeronaves; acordo sobre carne bovina e acordo sobre produtos lácteos (THORSTENSEN, 2001, p. 30). Esses acordos – chamados, informalmente, de “códigos” –, entretanto, eram “plurilaterais”, ou seja, voluntários, somente se aplicando aos países que os subscrevessem, numa infração permitida à incondicionalidade da “cláusula da nação mais favorecida”, o que provocou um amplo debate sobre os rumos do próprio Acordo, caracterizando o que ficou conhecido por “GATT à la carte”, como nos esclarece Mesquita (2013, p. 41),

Esses acordos eram “plurilaterais”, ou seja, voluntários, e valiam apenas para as partes contratantes que os subscreviam. Eram chamados, informalmente, de “códigos”. A maioria desses códigos foi transformada em acordos multilaterais na “Rodada Uruguai”.

A fase negocial denominada “Rodada Uruguai”, por sua vez, foi a mais ampla e complexa das rodadas do GATT, cobrindo uma extensa pauta de negociações, com alguns pontos considerados extremamente sensíveis. Iniciada em 1986 em Punta del Este, as negociações da “Rodada Uruguai” foram caracterizadas pelo antagonismo entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, com os primeiros querendo introduzir nas negociações novos temas, como comércio de serviços, direitos de propriedade intelectual e medidas de investimento relacionadas com o comércio, e os últimos defendendo a necessidade de uma nova estruturação do GATT, de forma a solucionar os problemas pendentes, principalmente em matéria agrícola.

Esclarece-nos Mesquita (2013, p. 42) as tensões que estiveram presentes nas negociações da “Rodada Uruguai”:

A preponderância norte-americana e sua disposição para acomodar os interesses de seus aliados europeus acabou resultando, no entanto, em seletividade contrária aos interesses dos países em desenvolvimento: setores como têxteis e agricultura foram virtualmente excluídos do GATT. A impossibilidade de obterem a liberalização nos mercados de seu interesse e o pessimismo em relação à contribuição do comércio exterior para o desenvolvimento levaram os países em desenvolvimento a concentrarem esforços, primeiro, na reforma das relações econômicas internacionais e, em seguida, na obtenção de tratamento especial e diferenciado, que consistia, na maioria das vezes, em isenções totais ou parciais em relação às regras. (...) Em meados dos anos 80, começou a ficar claro que o GATT – seja como arranjo institucional, seja como conjunto de regras – não era mais adequado ou suficiente para regular o comércio multilateral. O sucesso das primeiras décadas – em que o crescimento do comércio internacional ultrapassou de longe o crescimento do produto bruto mundial – deu lugar a tensões crescentes, com a multiplicação de restrições “cinzentas” (i.e., não expressamente proibidas, mas tampouco previstas no GATT), aumento no número de controvérsias – nem sempre resolvidas, devido à natureza não compulsória dos mecanismos de resolução – e críticas, de diversas orientações, aos desequilíbrios do sistema.

Em razão de todas essas circunstâncias, só depois de quase oito anos de negociações, com muitas idas e vindas e vários desencontros, é que, após a resolução de uma série de questões pendentes, foi alcançado o consenso necessário para a conclusão da “Rodada Uruguai”, cujo acordo final, sob a forma de um “pacote” apresentado pelo então Diretor-Geral do GATT, Arthur Dunkel9, denominado “Projeto Dunkel”, culminaria com a criação da Organização Mundial do Comércio-OMC, com a assinatura do “Acordo de Marraqueche”, em 15 de abril de 1994 (MESQUITA, 2013, p. 45).

A criação da OMC viria a completar o tripé da institucionalidade concebida em “Bretton Woods”, em 1944, retomando o seu Acordo Constitutivo o conceito do “single understanding”, “ao estabelecer que os países não possam escolher os acordos que subscreverão ao se tornarem membros da OMC, devendo devem aderir ao sistema como um todo”, encerrrando-se, assim, a fase do “GATT à la carte” (FERRACIOLI, 2007, p. 06).

Assim, o Acordo Constitutivo da OMC, além de criar uma organização internacional, com personalidade jurídica própria, à semelhança de outros organismos especializados da Organização da Nações Unidas-ONU, cuidou também de estabelecer um novo marco regulatório do comércio internacional, bem mais amplo e efetivo que o seu predecessor, caracterizado pelos diversos acordos plurilaterais expressos no sistema GATT. Como esclarece Costa (2013, p. 537), ao final das negociações o GATT-47 foi anexado à “Ata Final da Rodada Uruguai”, junto com o Acordo Constitutivo da OMC, passando a ser denominado “Acordo-Geral sobre Tarifas e Comércio de 1994” ou GATT-94, ou simplesmente GATT, com caráter obrigatório a todos os Estados-Membros da OMC, tratando-se, portanto, do GATT-47 ampliado por um conjunto de acordos específicos e substancialmente melhorado pela revogação do “Protocolo de Aplicação Provisória-PAP”.

A par disso, como sinalado por Thorstensen (2001, p. 39), o Tratado Constitutivo da OMC, ao englobar todas as áreas negociadas durante a “Rodada Uruguai” e as rodadas que lhe antecederam, acabou incorporando mais de duas dezenas de acordos multilaterais de liberalização de comércio, cobrindo as mais diversas áreas da economia, inclusive se estendendo ao comércio de serviços (“Acordo GATS”, em inglês, “General Agreement on Trade in Services”, ou "Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços”), investimentos ligados ao comércio (“Acordo TRIMS”, em inglês, “Agreement on Investment Measures Related to the Commerce”, ou “Acordo sobre Medidas de Investimento Relacionadas ao Comércio”), e defesa dos direitos de propriedade intelectual (“Acordo TRIPS”, em inglês, “Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights”, ou “Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio”).

Os acordos a os instrumentos legais conexos incluídos no anexo 4 (denominados “Acordos Comerciais Plurilaterais”) também formam parte do Acordo Constitutivo da OMC, mas são facultativos, não criando obrigação nem direitos para os Membros que não os tenham aceitado.

No Brasil, o Acordo Constitutivo da OMC foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto Legislativo nº 30, de 15 de dezembro de 1994, que aprova a “Ata Final da Rodada Uruguai de Negociações Multilaterais do GATT”, tendo o Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994, promulgado-o, entrando em vigor em 1º de janeiro de 1995.

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No quadro abaixo aponta-se a estrutura do acordo constitutivo da Organização Mundial de Comércio.

QUADRO 2: ESTRUTURA DO ACORDO CONSTITUTIVO DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE COMÉRCIO

ACORDO CONSTITUTIVO DA OMC

- Anexo 1

Anexo 1A – Acordos Multilaterais sobre o Comércio de Bens

Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio de 1994 (GATT 1994)

Acordo sobre Agricultura

Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias

Acordo sobre Têxteis e Vestuário

Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio

Acordo sobre Medidas de Investimento Ligadas ao Comércio (Trims)

Acordo sobre a Implementação do Artigo VI do GATT 1994 (Anti-Dumping)

Acordo sobre a Implementação do Artigo VII do GATT 1994 (Valoração Aduaneira)

Acordo sobre Inspeção Pré-Embarque

Acordo sobre Regras de Origem

Acordo sobre Procedimentos de Licenças de Importação

Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias

Acordo sobre Salvaguardas

Anexo 1B – Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS)

Anexo 1C – Acordo sobre Aspectos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS)

- Anexo 2 – Entendimento sobre Regras e Procedimentos para Solução de Controvérsias

- Anexo 3 – Mecanismo de Exame de Políticas Comerciais

- Anexo 4 – Acordos Comerciais Plurilaterais

Anexo 4A – Acordo sobre o Comércio de Aeronaves Civis

Anexo 4B – Acordo sobre Compras do Setor Público

Anexo 4C – Acordo Internacional sobre Produtos Lácteos (*)

Anexo 4D – Acordo sobre Carne Bovina (*)

Fonte: Domingues (2013).

Como se vê, as diferenças entre o GATT e a OMC são profundas: ao contrário do sistema GATT, que era constituído de uma série de acordos plurilaterais, sem personalidade jurídica própria, no qual havia “Partes Contratantes”, com as normas se restringindo ao comércio de mercadorias e que não continha regras para a solução de controvérsias, ressaltando a solução diplomática dos conflitos porventura existentes, a OMC é uma organização internacional, com personalidade jurídica própria distinta de seus Estados-Membros, com as normas abarcando não somente o comércio de mercadorias, mas também o de serviços, investimentos ligados ao comércio e defesa dos direitos de propriedade intelectual, prevendo um órgão de solução de controvérsias mais efetivo e menos sujeito à influência dos países com maior fluxo de comércio mundial, com o estabelecimento, mediante um instrumento adicional – Anexo 2 –, do “Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias-ESC” (BARRAL, 2004, p. 13).

QUADRO 3 - Principais diferenças entre o sistema GATT e a OMC:

GATT

OMC

- acordo provisório, sem personalidade jurídica;

- organização permanente, com personalidade jurídica e forte poder sancionatório;

- há “Partes Contratantes”;

- há Estados-Membros;

- o Órgão de Solução de Controvérsias é pouco eficaz;

- o Órgão de Solução de Controvérsias é mais efetivo e menos sujeito a bloqueios;

- normas se restringiam ao comércio de mercadorias;

- abarca não somente o comércio de mercadorias, mas também o de serviços e o de direitos de propriedade intelectual, assim como medidas comerciais relacionadas com investimentos;

- abrangia acordos plurilaterais.

- acordos são praticamente todos multilaterais, assinados integralmente por todos os Estados-Membros (exceto os Acordos sobre Aeronaves Civis e sobre Contratação Pública, que são acordos de adesão voluntária – plurilaterais).

Fonte: Barral (2007. p. 32).

Nos termos do Tratado Internacional que a constituiu, a OMC começou a funcionar oficialmente ao início de 1995, e atualmente coordena a “Rodada Doha”, que teve início em 2001, no Catar, e que ainda não foi concluída, tamanha a complexidade dos interesses em jogo – depois que a Organização se torna verdadeiramente global, inclusive com a entrada da China –, tendo como principais temas as tarifas de comércio internacional, os processos de facilitação de comércio, os subsídios agrícolas e as regras comerciais (MESQUITA, 2013, p. 64).

Como salientado por Cervo (2008, p. 09), a “Rodada Doha” introduz uma novidade nas negociações do comércio internacional relativamente aos ciclos negociais anteriores, pois pela primeira vez a liberalização do comércio internacional centra seu foco sobre as necessidades dos países mais pobres, isto é, sobre a possibilidade de converter o comércio internacional em um instrumento para a promoção da igualdade econômica entre as nações. No curso das negociações da “Rodada Doha” houve reuniões em Cancun (2003), Genebra (2004, 2006 e 2008), Paris (2005), Hong Kong (2005) e Bali (2013), esta última com a participação de 159 países, oportunidade em que foi eleito para a Direção-Geral da OMC o brasileiro Roberto Carvalho de Azevêdo, que não teve sucesso em conseguir coordenar a conclusão das negociações, apontando-nos Mesquita (2013, p. 93) as suas circunstâncias causais:

Uma série de fatores contribuiu para impedir a conclusão da Rodada. A emergência de novos atores criou uma dinâmica nova nas negociações, em termos de círculos decisórios, requisitos de transparência e expectativas. Igualmente relevante é o fato de que o ambiente na primeira década do século XXI tornou-se menos propício para a diplomacia multilateral do que nos anos 1990, como se verifica pelo escasso progresso em outros grandes processos negociadores. Por fim, a crise financeira e econômica iniciada em 2008 teve impacto substancial sobre a disposição dos países para assumirem compromissos que reduziriam sua autonomia para a condução da política econômica.

De tudo, o que se depreende como o grande “nó-górdio” das tratativas entre os Estados-Membros para se chegar a um consenso negocial na “Rodada Doha” é a questão agrícola, tendo vários países, com receio de prejudicar seus pequenos produtores rurais, se alinhado à Índia na questão de se estabelecer salvaguardas para a entrada de produtos agrícolas estrangeiros, travando qualquer acordo no tocante ao tema, fazendo surgir o impasse nas negociações (CERVO, 2008, p. 13).

Nos termos de seu Acordo Constitutivo, a Organização Mundial do Comércio-OMC, além de contar com o apoio de grupos de trabalho especializados, organizados na forma de “Comitês”, é composta de seis órgãos principais, a saber: Conferência Ministerial; Conselho Geral; Órgão de Solução de Controvérsias; Órgão de Revisão de Política Comercial; Conselhos para Bens, Serviços e Propriedade Intelectual; e Secretariado.

A Conferência Ministerial é o órgão máximo da OMC, sendo composta pelos Ministros das Relações Exteriores dos Estados-Membros, a qual se reúne a cada dois anos, no mínimo, tendo autoridade para decidir sobre todas as matérias dentro de qualquer dos acordos multilaterais, podendo, além disso, criar entidades subordinadas ou novos comitês (artigo IV, item 1, do Acordo Constitutivo da OMC10).

O Conselho Geral é o corpo diretor da OMC, sendo integrado pelos embaixadores, que são os representantes permanentes de todos os seus Estados-Membros em Genebra, ou por delegados das missões em Genebra (artigo IV, ítens 2 a 4, do Acordo Constitutivo da OMC11).

A criação do Órgão de Solução de Controvérsias é uma das mais importantes inovações do Acordo Constitutivo da OMC, o qual constitui um mecanismo de solução de conflitos na área do comércio mais eficaz do que o existente anteriormente, contendo um sistema de regras e procedimentos para dirimir os antagonismos entre os países, prevendo uma fase de consultas entre os Estados-Membros, e, se necessário, o estabelecimento de painéis, e, finalmente, quando solicitado, consulta para o Órgão de Apelação, sendo composto pelo próprio Conselho Geral, que aqui atua em função específica (Anexo II do Acordo Constitutivo da OMC). Observe-se, como salienta Barral (2004, ps. 15-16), que o Acordo Constitutivo da OMC determina a exclusividade do Órgão de Solução de Controvérsias para solucionar conflitos envolvendo todos os acordos da OMC, eliminando desta forma a proliferação de mecanismos distintos, como ocorria à época do GATT, para tal desiderato, terminando ainda com a possibilidade, várias vezes adotada durante o GATT, de que um Estado-Membro da OMC pudesse impor sanções unilaterais em matéria comercial, sem que a controvérsia tivesse sido previamente avaliada. No caso, o Órgão de Solução de Controvérsias trata-se de um sistema quase judicial, tornado independente das partes e dos demais órgãos da OMC, que tem natureza sui generis: possui características de arbitragem, na medida em que um Painel é estabelecido ad hoc; ao mesmo tempo, se diz “judicialiforme”, pois, quando o demandante é ouvido em um Painel, as partes podem apresentar suas argumentações de forma oral e escrita, terceiros (Estados) podem intervir nos procedimentos e as partes podem recorrer a um órgão de apelação.

Como diz Thorstensen (2001, p. 371):

O que se afirma é que, agora, a OMC “tem dentes”. Tal afirmação significa que, agora, a OMC tem poder para impor as decisões dos painéis e permitir que os membros que ganham a controvérsia possam aplicar retaliações aos membros que mantenham medidas incompatíveis com as regras da OMC. Tal retaliação, por exemplo, pode ser efetuada através do aumento de tarifas para os bens exportados pelo membro infrator, em um valor equivalente ao das perdas incorridas.

O Órgão de Revisão de Política Comercial foi criado como mecanismo para se examinar periodicamente as políticas de cada Estado-Membro da OMC, tendo como objetivo confrontar a legislação e a prática comercial dos países que dela fazem parte com as regras estabelecidas nos acordos da Organização, além de oferecer aos demais Estados-Membros uma visão global da política seguida por cada país – dentro do princípio da transparência –, sendo integrado pelos delegados das missões dos países em Genebra ou por integrantes de seus governos (Anexo III do Acordo Constitutivo da OMC).

Para acompanhar a implementação das regras negociadas em cada uma das áreas que resultaram da “Rodada Uruguai” – bens, serviços e propriedade intelectual –, a OMC possui em sua estrutura institucional três Conselhos, geralmente neles tendo assento os embaixadores permanentes dos Estados-Membros residentes em Genebra, ou integrantes dos governos enviados especialmente para as reuniões (artigo IV, ítens 5 e 6, do Acordo Constitutivo da OMC12).

Já o Secretariado da OMC compõe-se de um Diretor-Geral, designado pela Conferência Ministerial, vários Vice-Diretores, e um quadro técnico de funcionários, os quais têm responsabilidades de caráter internacional, não devendo pedir nem receber instruções de qualquer governo ou de outra autoridade externa à OMC (artigo VI do Acordo Constitutivo da OMC13).

Além dos órgãos mencionados, as atividades da OMC se desenvolvem com o apoio de 30 Comitês ou Grupos de Trabalho, subordinados aos Conselhos, onde têm assento os delegados dos Estados-Membros, normalmente os embaixadores residentes em Genebra, e técnicos dos Ministérios das Relações Exteriores dos países enviados especialmente para as reuniões de cada comitê.

Cumpre agora verificar de que modo a questão ambiental tem estado presente na regulamentação do comércio internacional, e, especialmente, se a criação da OMC, e, em especial, a proliferação de acordos multilaterais ambientais, podem ter contribuído para o surgimento de um novo locus de governança para o meio ambiente.

  1. A Organização Mundial do Comércio-OMC e a questão do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável.

A relação entre comércio e meio ambiente no sistema multilateral de comércio não configura debate recente, e vem sendo debatida desde o início dos anos 1970. Entretanto, é só a partir de 2001, com a “Declaração Ministerial de Doha”, que o tema ganhou novo “status” no contexto das negociações comerciais multilaterais, com um mandato negociador específico, sendo até então tal relação tratada no âmbito do GATT e da OMC de forma pontual, à medida que os contenciosos comerciais envolvendo questões ambientais surgiam (PATRIOTA, 2013, p. 85).

É de se dizer, ao início, que a dificuldade em tratar da matéria ambiental no âmbito de um organismo destinado a promover o livre-comércio é facilmente compreensível, pois que o direito comercial é anterior ao ambiental e arranjado para o lucro, cuja efetividade depende do grau de compatibilidade com o interesse privado, surgindo daí o motivo pelo qual muitas vezes surgirá o conflito entre as normas de um e outro campo jurídico.

Explicam a respeito Weiss e Jackson (2009, p. 297):

O sistema de comércio internacional, construído sobre o princípio da vantagem comparativa, tem o objetivo de promover o crescimento. Ele obriga os países a reduzir barreiras ao comércio eficiente – tarifas, quotas de importação, subsídios e outras barreiras não-tarifárias – de freqüência, dos processos pelos quais os produtos são produzidos ou os recursos coletados. Assim, não lhe importa tanto se os processos são ambientalmente sustentáveis; pelo contrário, as normas ambientais a respeito do tema são vistas como incomodas barreiras ao comércio. (...) Não surpreende que os dois esforços – proteger o meio ambiente e promover o comércio irrestrito – choquem-se. As interseções entre o meio ambiente e o comércio provocam colisões entre governos, organizações não-governamentais, grandes empresas e outros atores e em cada uma dessas comunidades, como, por exemplo, entre governo federal e estadual ou local, ou entre diferentes ONGs.

Como se vê, a perspectiva ambiental contrasta consideravelmente com a que predomina no comércio, sendo que a inadequação entre a natureza da lógica ambiental e a comercial se reflete na própria constituição das normas respectivas, e nos conceitos que envolvem, consistindo eventualmente na própria distinção normativa entre produto e processo, pois que, do ponto de vista ambiental, o processo de fabricação de um produto é, com muita frequência, mais importante que o produto e, em termos comerciais, o foco normativo é normalmente para o produto, como ocorre com a maioria das regras de comércio internacional (LIMA, 2012, p. 46).

De qualquer forma, a discussão sobre a possibilidade de harmonização de normas ambientais com as de livre-comércio tem o seu nascedouro a partir da institucionalização do conceito de esgotabilidade dos bens ambientais, e sobretudo diante da necessidade de promoção do “desenvolvimento sustentável”, noção esta surgida com o “Relatório Brundtland”14, em 1987, e universalizada a partir da edição da “Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento-CNUMAD/UNCED de 1992” ou “Rio-92”15, sendo que, como refere Baracat (2012, p. 12),

Como consequência da CNUMAD, quase todas as convenções editadas posteriormente acerca de cooperação multilateral incluem a proteção ambiental como um dos objetivos dos Estados-Membros, implicando uma evolução de todos os ramos do Direito Internacional para novas direções, a partir da infusão de princípios e normas ambientais.

De fato, até então eram poucos os mecanismos que contribuíam para o objetivo de harmonizar as normas de proteção do meio ambiente com aquelas reguladoras da higidez das relações comerciais internacionais, reconhecendo-se, pois, que era o PNUMA-Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas – criado pela “Conferência de Estocolmo de 1972”, e administrado pela Assembléia-Geral da ONU, com vigência até hoje – o locus privilegiado para uma eventual coordenação da governança global do meio ambiente no “Sistema Onusiano”. Esta visão, aliás, remanesce até bem recentemente, como se vê das palavras do então Diretor da Divisão de Comércio e Meio Ambiente do GATT, Richard Eglin, ao reafirmar que refoge à competência dos órgãos de regulação do comércio internacional a discussão sobre políticas ambientais:

O que são políticas ambientais apropriadas? Responder a esta questão foge à competência e ao mandato da OMC. Isto ficou claro na Decisão de Marrakesh. Não há intenção de que a OMC torne-se uma agência ambiental, nem que se envolva na revisão de prioridades ambientais nacionais, estabelecendo padrões ambientais ou desenvolvendo políticas ambientais globais; isto continuará a cargo de governos nacionais e, na medida que envolva uma dimensão multilateral, existem outras organizações internacionais melhor preparadas para tal tarefa (EGLIN, 1995, p. 771).

Ocorre que o PNUMA limita-se a propiciar informação e administração aos vários tratados ambientais firmados pelos países, e não possui uma estrutura unificada e vinculante, não tendo sequer autonomia no manejo de seu orçamento, ficando assim dificultada a sua missão de universalizar o tratamento da gestão dos bens ambientais pelas nações, e causando uma fragmentação na governança global ambiental que reflete a falta de consenso internacional sobre as prioridades, normas e soluções apropriadas no campo ambiental, com a incoerência entre os diferentes instrumentos de proteção disponíveis (LIMA, 2012, p. 47).

E assim, desde a criação do GATT, em 1947, por muitos anos o tratamento da questão ambiental ficou totalmente à margem de seu tratamento no âmbito da regulação do comércio internacional. Aliás, ao contrário, o GATT, em seus primeiros anos, sob certo aspecto, literalmente estimulava o uso desmedido dos bens ambientais, já que a sua inspiração era flagrantemente antiprotecionista, sendo a liberalização do comércio e a não-discriminação meros meios para alcançar objetivos mais amplos, como o aumento dos padrões de vida, o pleno emprego, o crescimento da renda e da demanda efetiva, e inclusive a plena utilização dos recursos.

Observe-se, nessa linha, os dizeres do preâmbulo do GATT-47:

(...) Reconhecendo que suas relações no domínio comercial e econômico devem ser orientadas no sentido de elevar os padrões de vida, de assegurar o emprego pleno e um alto e sempre crescente nível de rendimento real e de procura efetiva, para a mais ampla exploração dos recursos mundiais e a expansão da produção e das trocas de mercadorias; (sem grifo no original).

Tal ordem de prioridade faria com que, no âmbito do GATT-47, ambos os temas, regulação do comércio internacional e sustentabilidade, continuassem caminhando em paralelo por décadas, até 1971, quando do fortalecimento das questões ambientais por conta da proximidade da realização da “Conferência de Estocolmo de 1972”, ocasião em que, no âmbito do GATT, foi elaborado pelo seu Secretariado o estudo “Controle da Poluição Industrial e Comércio Internacional”, com foco nas implicações das políticas de proteção ambiental sobre o comércio internacional, o qual refletia a preocupação dos negociadores comerciais da época de que tais políticas pudessem vir a constituir obstáculos ao comércio e uma possível nova forma de protecionismo, o chamado “protecionismo verde” (PATRIOTA, 2013, p. 42). No mesmo ano, o Diretor-Geral do GATT à época, Olivier Long, apresentou o estudo às “Partes Contratantes”, e, nos debates que se seguiram, alguns países defenderam o estabelecimento de um mecanismo no GATT que pudesse analisar os efeitos das políticas ambientais sobre o comércio de forma mais detida. Nascia, assim, em novembro de 1971, o “Grupo sobre Medidas Ambientais e Comércio Internacional”, também conhecido como “Grupo EMIT” (do inglês “Group on Environmental and International Trade”), criado exatamente com o propósito de tratar de questões ambientais que de alguma forma pudessem impactar o comércio internacional (RAUCCI, 2010, p. 24).

É o que sustenta Baracat (2012, p. 09), senão vejamos:

Para a preparação da Conferência foi solicitado que o Secretariado do Acordo-Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) fornecesse suas contribuições, o que resultou no estudo “Industrial Pollution Control and International Trade”, no qual se considerou as possíveis implicações das políticas ambientais no comércio internacional. Foi então criado o “Group on Environmental and International Trade”, que seria acionado a partir das demandas das Partes Contratantes do GATT.

Todavia, como bem asseverado por Schneider e Schulze (2012, p. 422), durante 20 anos o “Grupo EMIT” ficou inativo por falta de demanda dos países, sendo só em 1991, quando se avizinhava a realização da “Conferência Rio-92”, que os Membros da “Associação Europeia de Comércio Livre” (em inglês, “European Free Trade Association”-EFTA)16 requisitaram a sua primeira reunião, o que evidencia de per se, no âmbito do GATT, a irrelevância da pauta ambiental por décadas, e que a formação do Grupo só havia se mostrado conveniente, afinal de contas, para analisar os efeitos das questões ambientais sobre o comércio internacional, invertendo a lógica contemporânea da agenda ambiental, em que o foco de análise parte usualmente dos efeitos de dada atividade humana sobre o meio ambiente, e não o contrário.

Mais diante, em 1994, com a assinatura do Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio-OMC, e com a sua efetiva criação, em janeiro de 1995, quando as regras desta última passaram a englobar as regras do GATT e os termos das negociações multilaterais de liberalização comercial até então entabulados pelos países, as relações comerciais internacionais passam a ser realizadas em maior coerência com o ideal de desenvolvimento sustentável propugnado no “Relatório Brundtland”, de 1987, e na “Conferência Rio-92”, numa inovação que se constata já no terceiro preâmbulo do Ato Constitutivo do novo Organismo Internacional, no qual se observa a busca de uma exegese comprometida com a utilização equilibrada dos recursos naturais, mediante regras que auxiliem a implementar medidas para responder às preocupações ambientais.

Confira-se o preâmbulo do “Tratado de Marraqueche”, que instituiu a OMC:

Reconhecendo que as suas relações na esfera da atividade comercial e econômica devem objetivar a elevação dos níveis de vida, o pleno emprego e um volume considerável e em constante elevação de receitas reais e demanda efetiva, o aumento da produção e do comércio de bens e de Serviços, permitindo ao mesmo tempo a utilização ótima dos recursos mundiais em conformidade com o objetivo de um desenvolvimento sustentável e buscando proteger e preservar o meio ambiente e incrementar os meios para fazê-lo, de maneira compatível com suas respectivas necessidades e interesses segundo os diferentes níveis de desenvolvimento econômico, (...) (sem grifo no original).

O disposto no preâmbulo do Acordo Constitutivo da OMC indicia que os Membros da OMC, ao assinarem o “Tratado de Marraqueche”, não ignoravam a importância da proteção ambiental como objetivo de política nacional e internacional, ou seja, a partir da criação da OMC é razoável admitir que temas como a esgotabilidade dos bens da natureza e o desenvolvimento sustentável devam ser levados em consideração nas tratativas de liberalização comercial entre as nações.

Pode-se dizer, assim, que a OMC, com o objetivo de conduzir suas relações comerciais em coerência com esse ideal, evoluiu no trato do meio ambiente, havendo, portanto, uma mudança de postura, positiva, comparando-se o antigo sistema GATT e a atual OMC, pois que, enquanto o primeiro tinha como um de seus objetivos principais incentivar a utilização plena dos recursos naturais traduzida na liberalização gradual do comércio internacional por meio da eliminação das barreiras à prática do livre-comércio, a OMC, em seu preâmbulo, incorpora os ditames da sustentabilidade à regulação do comércio transnacional.

Ainda por ocasião da assinatura do “Acordo de Marraqueche”, em 1994, é de se dar destaque à transformação do “Grupo EMIT” no “Comitê de Comércio e Ambiente” (em inglês, “Comittee on Trade and Environment”-CTE)17, respondendo diretamente ao Conselho Geral e à Conferência Ministerial da OMC, passando então a OMC a contar com um órgão voltado ao desenvolvimento sustentável em harmonia com a liberdade e igualdade comercial, evidenciando a relevância que a questão ambiental teria passado a merecer na hierarquia da Organização (SCHNEIDER e SCHULZE, 2012, p. 424).

No tocante, complementa Queiroz (2005, p. 04):

Embora se trate de um assunto cuja importância seja incontestável, o tema ‘comércio e meio ambiente’ foi tratado marginalmente dentro do GATT quase que praticamente durante toda a sua vigência.

Sua inserção ocorre somente na década de 1990, mais precisamente em 1992, quando, por meio de discussões e recomendações emanadas do “Grupo sobre Medidas Ambientais e Comércio Internacional”, e do “Subcomitê sobre Comércio e Meio Ambiente”, ambos subordinados ao “Comitê Preparatório da OMC”, chega-se ao consenso de que a criação de um órgão ambiental especializado, dentro da nova organização multilateral de comércio que então nascia, era indispensável. Foi assim que, na Reunião do Comitê de Negociações Comerciais, realizada em Marraqueche, aprovou-se, além da Ata Final que incorporava todos os resultados comerciais multilaterais obtidos durante o longo processo de negociação que marcou a “Rodada Uruguai”, a criação do “Comitê de Comércio e Meio Ambiente”.

Os termos de referência deste Comitê foram estabelecidos na “Decisão Ministerial sobre Comércio e Meio Ambiente de Marraqueche”, que estabeleceu, claramente, como sua função: examinar as relações entre os dispositivos da OMC e medidas comerciais com objetivos ambientais, bem como políticas ambientais com implicações sobre o comércio internacional e a implantação de disciplinas multilaterais com a finalidade de controlar tais políticas ambientais.

Com a criação do “Comitê de Comércio e Ambiente” da OMC, incumbindo-lhe identificar a relação entre as medidas comerciais e ambientais adotadas pelos países, fazendo as recomendações adequadas de forma a compatibilizar o desenvolvimento sustentável e a natureza não-discriminatória do sistema multilateral de comércio, se denota um claro esforço no sentido de vincular o sistema de comércio internacional com a sustentabilidade ambiental, institucionalizando a questão na pauta da OMC (SCHNEIDER e SCHULZE, 2012, p. 424).

Contudo, construir um sistema multilateral de comércio que leve em conta o estabelecimento de padrões mínimos de proteção ambiental e ao mesmo tempo seja aberto, equitativo e não-discriminatório trata-se de uma missão complexa. Nota-se claramente a veracidade dessa assertiva ao se observarem as dificuldades enfrentadas pelos países em desenvolvimento em suas atividades de exportação aos mercados dos países mais desenvolvidos, em conseqüência da aplicação, pelos últimos, de normas técnicas e legislações ambientais mais rígidas que as de seus países de origem, existindo, em contrapartida, queixas dos setores produtivos dos países desenvolvidos de que as importações provenientes dos países que dispõem de legislações ambientais mais brandas acabam se beneficiando com uma maior competitividade, numa situação de vantagem injusta que chegaria às raias do “dumping ambiental”, cujas implicações conduziriam, por exemplo, a distorções na concorrência e na relocalização industrial (QUEIROZ, 2005, p. 17).

É de Gonçalves (1998, p. 338) a seguinte lição sobre o tema:

A principal questão quanto à relação entre o meio ambiente e comércio internacional refere-se ao processo de “dumping ambiental”. Este processo significa que países obtêm uma competitividade espúria com base na degradação ambiental. Assim, países com regulamentações, normas e práticas inferiores beneficiam-se ou geram vantagem comparativa no sistema mundial de comércio que não existiria caso os custos de internalização das normas ou padrões internacionais fossem internalizados. Além disto, a existência de diferenças significativas quanto à regulamentação do meio ambiente provocaria um deslocamento de investimentos para países negligentes em detrimento dos países conscientes quanto à preservação do meio ambiente.

Feitas essas considerações, é de se lembrar que, embora com a criação da Organização Mundial de Comércio-OMC o processo de desmantelamento das barreiras protecionistas tenha se dado numa nova abordagem, com a abertura de espaço para a discussão de novos temas, dentre os quais o meio ambiente, a OMC continua sendo, no entanto, uma instituição competente tão somente para tratar das questões relacionadas ao comércio internacional, e não propriamente ao meio ambiente.

De qualquer forma, desde a sua primeira reunião, em 1996, a OMC consolidou a tarefa de buscar o equilíbrio da preservação dos recursos naturais aliada ao desenvolvimento das relações econômicas, mas, não se tratando de uma agência ambiental, ao propugnar medidas protetivas ao meio ambiente o faz através de uma competência bastante limitada, dentro de sua estrutura normativa e institucional (REALE, 2010, p. 09).

Nessa esteira, é de se dizer que é a partir de 2001, com o início da “Rodada Doha”, que a proliferação de políticas orientadas para a concretização do desenvolvimento sustentável centradas no consenso internacional, sob a forma de edição de acordos multilaterais ambientais, definidos como “compromissos assumidos por Estados que soberanamente desejam resolver ou minimizar problemas ambientais de natureza global” (CARDOSO, p. 280, 2002), acabou por ser reconhecida como importante na tentativa de compatibilizar a liberalização comercial com os ditames da proteção ambiental e do desenvolvimento sustentável.

Vai nessa linha a “Declaração Ministerial de Doha”, que comprova que as medidas comerciais contidas nos acordos multilaterais ambientais acabaram tendo especial destaque na “Conferência Ministerial”, tendo os Estados-Membros da OMC, reconhecendo a importância da alocação eficiente dos recursos naturais, de forma a proporcionar condições estáveis da abertura comercial, concordado em negociar a implementação das medidas comerciais nos acordos multilaterais ambientais (NIENCHESKI, 2012, p. 138). Por conta dessa ocasião, o tema dos acordos multilaterais ambientais ganhou novo status no contexto das tratativas comerciais multilaterais, com um mandato negociador específico estabelecido na “Declaração Ministerial de Doha”, senão vejamos:

31.  Con miras a potenciar el apoyo mutuo del comercio y el medio ambiente, convenimos en celebrar negociaciones, sin prejuzgar su resultado, sobre:

i) la relación entre las normas vigentes de la OMC y las obligaciones comerciales específicas establecidas en los acuerdos multilaterales sobre el medio ambiente (AMUMA). El ámbito de las negociaciones se limitará a la aplicabilidad de esas normas vigentes de la OMC entre las partes en el AMUMA de que se trate. Las negociaciones se harán sin perjuicio de los derechos que corresponden en el marco de la OMC a todo Miembro que no sea parte en ese AMUMA;

ii) procedimientos para el intercambio regular de información entre las secretarías de los AMUMA y los Comités pertinentes de la OMC, y los criterios para conceder la condición de observador;

iii) la reducción o, según proceda, la eliminación de los obstáculos arancelarios y no arancelarios a los bienes y servicios ecológicos (WTO, 2001)18.

O fato, no entanto, como sinalam Morosini e Niencheski (2014, p. 152), é que as normas a respeito do comércio internacional e do meio ambiente apresentam finalidades muito específicas, dentro de seus regimes, e podem muitas vezes apontar para direções conflitantes, na medida em que haja o estabelecimento de uma disposição nos acordos da OMC que terminantemente proíba uma obrigação expressa em tratado ambiental multilateral ou vice-versa, numa situação em que ambas as obrigações dispostas não possam ser conciliadas.

Complementam Morosini e Niencheski (2014, p. 154):

Apesar de existirem mais de 250 tratados multilaterais ambientais, com membros que variam de pequenos grupos até o conjunto de 180 países, apenas 20 destes acordos incluem disposições que podem influenciar e afetar o comércio, ao dispor acerca de medidas que proíbam o comércio de determinada espécie ou produto ou que permitam aos países restringir o comércio em determinadas circunstâncias.

Entre os principais acordos multilaterais ambientais que refletem a tendência da crescente preocupação com o comércio e o meio ambiente estão a “Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies em Extinção da Fauna e da Flora Silvestre-CITES”19, o “Protocolo de Montreal sobre Substâncias que afetam a Camada de Ozônio”20, a “Convenção de Basiléia sobre o Controle dos Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito”21, a “Convenção sobre Diversidade Biológica-CDB”22, a “Convenção Internacional de Proteção Fitossanitária”23 e o “Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança”24, entre outros.

Como se vê, muitos são os tratados internacionais que, ao tratar sobre meio ambiente, servem de medidas restritivas ao comércio com o intuito de promover suas finalidades, inclusive dispondo de sanções para prevenir a comercialização de determinados bens supostamente nocivos ao ambiente, autorizando os Estados – a pretexto de salvaguardar o meio ambiente – a discriminar produtos estrangeiros em comparação com os locais. Assim, em diferentes graus, realmente tem-se observado a existência de conflitos entre as normas previstas nos acordos multilaterais ambientais e aquelas oriundas da regulamentação do comércio internacional, com situações em que há uma concorrência inconciliável entre as obrigações dispostas em um e outro.

Exemplifica, neste particular, Niencheski (2012, p. 141):

Por exemplo, o Protocolo de Montreal contém medidas específicas proibindo a circulação de produtos que contenham substâncias prejudiciais à camada de ozônio com Estados que não sejam partes do Protocolo.

A CITES estabelece regras rígidas para as licenças de importação e exportação das espécies ameaçadas, que serão concedidas em circunstâncias excepcionais.

A Convenção Internacional de Proteção Fitossanitária, por sua vez, com o objetivo de prevenir a introdução e disseminação de pragas, dispõe que as partes contratantes poderão impor e adotar medidas que proíbam a importação de plantas e produtos vegetais.

Observa-se, desta forma, que muitas obrigações restritivas previstas nos acordos ambientais podem ser usadas como pretexto ilegítimo para proteger mercados, com a utilização de padrões ambientais, ou de políticas tendentes a proteger a saúde pública ou o meio ambiente para impor barreiras injustificáveis ao comércio. Nessa esteira, a alegação de violação aos princípios norteadores do sistema de comércio pelas normas dispostas nos acordos multilaterais ambientais é de ser pensada, inclusive, como ensejadora de um potencial conflito de jurisdição, visto que tanto a OMC quanto alguns dos tratados multilaterais ambientais existentes possuem mecanismos próprios de solução de controvérsias.

Verifica-se, no entanto, face à ausência de uma organização mundial ambiental com poder similar ao que a OMC exerce em matéria comercial, bem assim o fato de a inclusão de medidas comerciais ocorrer em poucos tratados ambientais, a utilização comezinha, pelas partes envolvidas, se membros da OMC, dos mecanismos do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização (MOROSINI, 2014, p. 156). Tal se dá, também, em função de que este último é compulsório para os Estados-Membros, além de gozar de alto grau de credibilidade quanto à efetivação de suas decisões (BARRAL, 2004, p. 61).

Portanto, na eventual multiplicidade dos fóruns apropriados para julgar os conflitos entre os acordos comerciais e normas de caráter ambiental, têm prevalecido neste desiderato os órgãos jurisdicionais da OMC – Painel e Órgão de Apelação –, os quais, no julgamento de dissídios entre os Estados-Membros, podem utilizar outros acordos que não sejam os promulgados pela OMC, como os tratados multilaterais ambientais.

É o que asseguram Morosini e Niencheski (2014, p. 157), como se pode ver:

Quando as normas da OMC não excluam a aplicação de determinada regra, as demais normas de direito internacional continuam a ser aplicáveis. Através do recurso a regras gerais do direito internacional, restou comprovado que, no silêncio de um acordo da OMC, podem sim ser aplicadas as demais normas do direito internacional. A dizer, Painéis e Órgão de Apelação podem aplicar princípios gerais do direito internacional quando as normas da OMC não vedem expressamente sua aplicação. Afirmar o contrário, que a OMC não pode considerar normas que não estejam expressamente referidas nos seus tratados, é ir contra o princípio básico de que as regras de direito internacional aplicam-se incondicionalmente aos tratados.

Tais conflitos têm sido julgados, no âmbito da OMC, em grande parte, a partir da interpretação das restrições comerciais estabelecidas no artigo XX, alíneas “b” e “g”, do GATT, que reconhece o equilíbrio entre a necessidade de eliminação das barreiras alfandegárias e a liberdade concedida pelos Estados para tomar decisões que protejam interesses sensíveis à população nacional, permitindo a restrição ao livre-comércio em alguns casos, senão vejamos:

ARTIGO XX - EXCEÇÕES GERAIS

Desde que essas medidas não sejam aplicadas de forma a constituir quer um meio de discriminação arbitrária, ou injustificada, entre os países onde existem as mesmas condições, quer uma restrição disfarçada ao comércio internacional, disposição alguma do presente capítulo será interpretada como impedindo a adoção ou aplicação, por qualquer Parte Contratante, das medidas:

a) necessárias à proteção da moralidade pública;

b) necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais e à preservação dos vegetais;

(...)

g) relativas à conservação dos recursos naturais esgotáveis, se tais medidas forem aplicadas conjuntamente com restrições à produção ou ao consumo nacionais;

Por força deste artigo, como se vê, medidas de restrição ao comércio podem ser tomadas para proteger, por exemplo, a saúde e a vida das pessoas e dos animais e para a preservação dos vegetais, e, ainda, para a conservação dos recursos naturais esgotáveis – exceções previstas, respectivamente, nas alíneas “b” e “g” do artigo XX, retrotranscrito.

Consoante Morosini e Niencheski (2014, p. 161), apesar de nem mencionar a palavra meio ambiente – visto que, na época de sua redação originária, em 1947, a degradação ambiental não era motivo de preocupação pública –, a função desse dispositivo normativo é favorecer o diálogo com os demais subsistemas do direito internacional, notadamente os afetos à seara do meio ambiente. Por meio dele, então, estabelece-se a primazia de medidas destinadas a proteger a saúde pública e à preservação dos recursos naturais mesmo que restritivas ao comércio, elencando-se como exceções às regras sobre a liberalização comercial “com o intuito de permitir a execução de políticas governamentais que promovam a realização de finalidades essenciais para as sociedades domésticas” (AMARAL JUNIOR, 2008, p. 191).

O fato é que essa disposição normativa possui alguns termos dúbios, que deixam margem a várias interpretações, termos estes que tem sido objeto de interpretação pelo Órgão de Solução de Controvérsias da OMC em litígios nos quais têm sido discutidos os limites e a amplitude de conceitos como “recursos esgotáveis”, e quais os critérios necessários para que uma medida de exceção seja considerada “arbitrária ou injustificável”, ou apenas uma restrição “disfarçada” ao livre-comércio, em franca violação ao “princípio da não-discriminação” entre os Estados-Membros da OMC, expresso nas cláusulas da “nação mais favorecida” e do “tratamento nacional”, tornando-se inegável o possível conflito entre esses tratados e os acordos da OMC.

Vejamos, portanto, como têm sido o reconhecimento, nos casos levados à apreciação dos Painéis e Órgão de Apelação da OMC, das medidas práticas tomadas pelos Estado-Membros ao abrigo das exceções previstas nas alíneas “b” e “g” do artigo XX do GATT.


 

  1. Questões ambientais de caráter transfronteiriço e o seu tratamento no sistema multilateral de comércio entre as nações: análise de alguns casos.

Dentre os casos analisados pelo Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial de Comércio-OMC, a partir dos quais é possível afirmar que a OMC pode passar a desempenhar um importante papel na governança ambiental, é de se mencionar os seguintes:

4.1. O “Caso Atum-Golfinhos I”, de 1991, envolvendo os Estados Unidos, a partir de reclamação do México:

Trata-se de um caso anterior à criação da Organização Mundial do Comércio-OMC, tratado ainda no sistema GATT, um dos primeiros que merece ser apontado, haja vista a sua ligação com a interpretação da exceção de questões ambientais face ao liberalismo comercial.

Nesse caso, também conhecido como “Caso Atum-Golfinho I”, o México questionou no GATT o embargo dos Estados Unidos às importações de atum provenientes daquele país, imposto com base na argumentação de que as redes utilizadas para pesca de peixe estariam ocasionando a morte de golfinhos. É que a legislação dos Estados Unidos, em especial o “Marine Mammal Protection Act”, requeria que os pescadores norte-americanos ajustassem suas práticas pesqueiras para evitar a morte dos golfinhos, ao mesmo tempo em que proibiu a importação de atum dos países nos quais o índice de mortalidade dos golfinhos superasse em 25% o de atuns (MOROSINI, 2014, p. 162).

O Painel deu ganho de causa ao México, decidindo pela inconsistência da proibição americana quanto às regras internacionais de comércio, e afirmou que os Estados Unidos não poderiam ter suspendido o direito mexicano de exportar para aquele mercado por meio de medidas unilaterais implementadas com base em “métodos e processos de produção”, também ponderando pela impossibilidade da extraterritorialidade da legislação ambiental americana, considerando que a manutenção da solidez de um sistema multilateral de comércio seria mais importante do que a necessidade de proteger os recursos naturais de qualquer país (MOROSINI, 2014, p. 163).

Apesar de o relatório do Painel não ter sido objeto de implementação, particularmente porque já se encontravam em trâmite os preparativos para a formação da NAFTA25, a decisão foi duramente criticada por ambientalistas, pois constituiria um obstáculo à adoção de medidas com vistas à proteção ambiental (PATRIOTA, 2013, p. 44).

4.2. O “Caso Atum-Golfinhos II”, de 1994, envolvendo os Estados Unidos, a partir de reclamação da União Europeia (Holanda):

Trata-se do embargo secundário a países que reexportavam atum proveniente de nações sob o primeiro embargo estadunidense, em que, mais uma vez, medidas restritivas dos Estados Unidos implantadas com o suposto objetivo de proteger o meio ambiente são questionadas no sistema multilateral de comércio, agora por parte da União Europeia (Holanda), sendo ao final consideradas inconsistentes com o sistema GATT. É que os Estados Unidos haviam aprovado na sua legislação novo ato a respeito da conservação dos gol­finhos, modificando a definição de “nações intermediárias”, excluindo França, Holanda e Reino Unido, além de outras modificações, de maneira que o embargo não seria aplicado se o país responsável pela captura chegasse a um acordo com os Estados Unidos para trabalhar pela redução da pesca acidental de golfinhos.

O “Caso Atum-Golfinho II”, Comunidade Europeia e Holanda contra os Estados Unidos, de 1994, também anterior à OMC, foi o marco da atual abordagem no que diz respeito ao chamado “teste de três etapas” para a consideração das restrições comerciais estabelecidas no artigo XX, alíneas “b” e “g”, do GATT, permitindo a restrição ao livre-comércio em alguns casos, como nos explica Patriota (2013, p. 51):

Primeiro, deveria ser determinado se a política acusada de violar os dispositivos da organização se inseria no campo das políticas para conservar ou para proteger saúde ou vida. Segundo, deveria ser determinado se as medidas para as quais a exceção estava sendo invocada eram “necessárias”. Terceiro, deveria ser determinado se a medida fora aplicada de maneira coerente com o caput, ou seja, se não foi injusta ou arbitrária.

No caso presente, a questão ambiental girava em torno do embargo à importação de atum por procedimentos que colocassem em perigo a vida dos golfinhos, relacionando-se a discriminação ao conceito dado pela legislação americana a respeito das nações intermediárias, que eram aquelas para as quais o embargo era direcionado, a não ser que houvesse um acordo entre o país responsável pela captura e os Estados Unidos, tendo a Comunidade Europeia argumentado junto ao GATT tratarem-se de restrições quantitativas sobre a importação, o que seria incompatível com as regras do livre-comércio.

O Painel acabou considerando que as medidas americanas encontravam-se inseridas no âmbito de proteção à vida e saúde dos golfinhos dentro da jurisdição dos Estados Unidos, mas entendeu que medidas para mudar as políticas dos outros países não poderiam ser consideradas “necessárias” para a proteção da vida animal, não ultrapassando a segunda etapa – e, nesse sentido, também se constituía como medida arbitrária e injustificável –, sendo digno de menção, no entanto, o fato de tal decisão ter feito alusão, pela primeira vez, à expressão “desenvolvimento sustentável”, reconhecendo-o como princípio legal aplicável na dirimição dos conflitos comerciais entre os países (LIMA, 2012, p. 51).

Os dois casos “US-Tuna/Dolphin I e II”, cujas decisões foram publicadas em 1991 e 1994, respectivamente, são emblemáticos do debate sobre comércio e meio ambiente naquele período, e foram os primeiros a testar a legitimidade do recurso aos métodos e processos de produção como justificativa para a imposição de restrições comerciais (PATRIOTA, 2013, p. 46).

4.3. O “Caso Gasolina” (DS-02), de 1995, envolvendo os Estados Unidos, a partir de reclamação da Venezuela e do Brasil:


 

Nesse caso, também envolvendo os Estados Unidos, discutiu-se acerca dos padrões químicos da gasolina, muito rígidos para a importação deste combustível, mas, no entanto, internamente, com as refinarias americanas produzindo gasolina aquém destes critérios.

Exatamente em função disso, considerando tal quadro reflexo de uma política protecionista, Brasil e Venezuela apresentaram junto à Organização Mundial do Comércio-OMC queixa contra o procedimento americano, tendo o caso, finalmente, sido julgado favoravelmente aos primeiros.

O presente caso teve especial relevância tendo em vista dois pontos específicos: foi a primeira demanda operada pela recém-criada OMC, eis que proposta poucos dias após a sua instalação – mais precisamente em 23 de janeiro de 1995 –, e também foi o primeiro caso abordando uma questão com forte viés ambiental naquele foro, em que a Venezuela – mais tarde acompanhada pelo Brasil – apresentou sua demanda contra os Estados Unidos por força do “US Clean Air Act’s-CAA”, em seu tópico “Regulation of Fuels and Fuels Additives - Standarts for Reformulated and Conventional Gasoline” (SCHNEIDER, 2012, p. 434).

O argumento da Venezuela, em síntese, era de que os Estados Unidos estariam discriminando a gasolina importada ao aplicarem padrões mais elevados de controle das características químicas da gasolina importada do que os aplicáveis à gasolina refinada internamente, afrontando o princípio do “tratamento nacional”, destacando que não se poderia, sob o argumento da proteção da saúde e do meio ambiente, dispensar-se tal tratamento tão somente à gasolina importada, criando-se privilégios para o produtor interno. Os Estados Unidos, de outro lado, alegaram se tratar de uma exceção do artigo XX do GATT, o qual permite a implementação de medidas inconsistentes com o livre-comércio caso estas forem necessárias para a proteção da vida humana, vegetal ou animal, para a saúde ou para a conservação de recursos naturais.

O Painel estabelecido no âmbito do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC – que acabou sendo confirmado pelo Órgão de Apelação ao depois –, entendeu que existiria a possibilidade viável de equiparação de tratamentos entre o produto interno e o importado, entendendo, ademais, que haveria gasolina importada que ultrapassaria padrões de qualidade que não poderia ser distribuída nos Estados Unidos, ao passo que existiria gasolina abaixo dos padrões de qualidade exigidos dos combustíveis importados que poderia ser vendida internamente, caracterizando um claro favoritismo ao produto nacional.

No entanto, a questão mais controvertida no dito julgamento disse respeito à interpretação estrita do artigo XX do GATT, o qual permite exceções de cumprimento às regras do livre-comércio se a medida for "relativa" à conservação de recursos naturais, como explica Zanon Júnior (2010, p. 33):

A interpretação de "medida relativa" havia sido sustentada com êxito pelos EUA em outro caso5, contra o Canadá, como sendo uma "medida direcionada à". A Venezuela e o Brasil aproveitaram para se valerem desta interpretação, já que o CAA não é uma medida direcionada à proteção de recursos naturais, saúde ou vida, conforme os EUA haviam argumentado. E os EUA acabaram por aceitar a decisiva interpretação para não caírem em contradição com o que haviam argumentado no caso contra o Canadá. Assim sendo, o Relatório de Painel adotou a interpretação de que o CAA não é uma "medida direcionada à" proteção de recursos naturais.

Em resumo, no presente caso tratou-se do confronto de dois argumentos bastante distintos: o da Venezuela e do Brasil, invocando o princípio do tratamento nacional em nome da liberalidade comercial, e, por outro lado, o dos Estados Unidos, invocando direito de exceção por razões ambientais, alicerçado no artigo XX do GATT, tendo a OMC julgado favoravelmente aos primeiros, sendo ainda digno de nota que sequer o reconhecimento da procedência do argumento dos Estados Unidos, lançado no curso do julgamento, de que o ar deveria ser visto como “recurso esgotável”, teve o condão de fazer valer o argumento ambiental, pois o “nexo causal entre a produção da gasolina menos poluente e uma melhor qualidade do ar estava bem demonstrado” (SCHNEIDER, 2012, p. 436).

4.4. O “Caso Camarões-Tartarugas” (DS-58), de 1996, envolvendo os Estados Unidos, a partir de reclamações feitas pela Índia, Malásia, Paquistão e Tailândia:

O caso cinge-se em torno do fato de existirem na atualidade sete espécies de tartarugas marinhas em todo o mundo, distribuídas principalmente nas zonas subtropicais e tropicais, sendo que, no início de 1997, Índia, Malásia, Paquistão e Tailândia apresentaram junto à Organização Mundial de Comércio-OMC uma reclamação conjunta contra a proibição imposta pelos Estados Unidos de importar determinados camarões daqueles países, proibição esta cujo objetivo seria a proteção das tartarugas marinhas.

É que,

A Lei de Espécies Ameaçadas de 1973 dos Estados Unidos enumerava cinco espécies de tartarugas marinhas em perigo ou ameaçadas que se encontram em suas águas, e proibia sua captura nos Estados Unidos. De acordo com a lei, os Estados Unidos exigiam que as redes utilizadas para a pesca do camarão tivessem dispositivos para não atingir as tartarugas. O artigo 609 da Lei 101-102 de 1989 referia-se às importações de camarões, expondo que não poderia ser objeto de importação por parte dos Estados Unidos camarões pescados com tecnologias que afetassem as tartarugas marinhas. (PIFFER, 2011, p. 127).

Assim, na prática, os países que possuíssem em suas águas alguma das cinco espécies de tartarugas marinhas e que pescassem camarões utilizando meios mecânicos deveriam impor aos seus pescadores algumas obrigações comparáveis àquelas suportadas pelos pescadores americanos, se quisessem exportar tais produtos para aquele país.

Quando da análise da questão, o Órgão de Apelação da OMC deixou claro que, em conformidade com as normas da Organização, os países têm direito a adotar medidas comerciais para proteger o meio ambiente (especialmente para proteger a saúde e a vida das pessoas e dos animais ou para preservar plantas, e para proteger as espécies ameaçadas), reunindo a medida impugnada condições para apoiar-se no disposto na alínea “g” do artigo XX como justificação provisória, porém, não cumpria os requisitos do preâmbulo do mesmo artigo, que dispõe quando não podem ser invocadas as exceções gerais.

Confira-se os termos do aludido julgado:

184. Constatamos, en consecuencia, que la medida estadounidense se aplica de forma que equivale a un medio no sólo de "discriminación injustificable" sino también de "discriminación arbitraria" entre países en los que prevalecen las mismas condiciones, en contra de lo prescrito en el preámbulo del artículo XX. Por lo tanto, esa medida no reúne las condiciones para ampararse en la justificación del artículo XX del GATT de 1994. Habiendo llegado a esta constatación, no es necesario que examinemos también si la medida de los Estados Unidos se aplica en forma que constituye una "restricción encubierta al comercio internacional" a tenor del preámbulo del artículo XX.

185. (...) No hemos decidido que la protección y preservación del medio ambiente no tenga importancia para los Miembros de la OMC. Evidentemente la tiene. No hemos decidido que los países soberanos que son Miembros de la OMC no puedan adoptar medidas eficaces para proteger las especies amenazadas, tales como las tortugas marinas. Evidentemente pueden o deben hacerlo. Y no hemos decidido que los Estados soberanos no deban actuar conjuntamente en forma bilateral, plurilateral o multilateral, en el marco de la OMC o en otros foros internacionales, para proteger a las especies amenazadas o proteger de otra forma al medio ambiente. Evidentemente, deben hacerlo y de hecho lo hacen.

186. Aquello que hemos decidido en esta apelación simplemente es lo siguiente: aunque la medida de los Estados Unidos objeto de la diferencia sometida a esta apelación cumpla un objetivo de protección medioambiental reconocido como legítimo en virtud del apartado g) del artículo XX del GATT de 1994, esta medida ha sido aplicada por los Estados Unidos en forma que constituye una discriminación arbitraria e injustificable entre Miembros de la OMC, en contra de lo prescrito en el preámbulo del artículo XX. Por todas las razones específicas señaladas en el presente informe, esta medida no reúne las condiciones para beneficiarse de la exención que el artículo XX del GATT de 1994 concede a las medidas que cumplen determinados objetivos reconocidos y legítimos de protección del medio ambiente pero que, al mismo tiempo, no se aplican en forma que constituya un medio de discriminación arbitrario o injustificable entre países en los que prevalecen las mismas condiciones o una restricción encubierta al comercio internacional. (WTO, 1998).

Desse modo, os Estados Unidos não obtiveram êxito na contenda, não porque pretenderam proteger o meio ambiente, e sim porque discriminaram alguns Estados-Membros da OMC na adoção da medida impugnada, pois que ofereciam aos países do hemisfério ocidental, principalmente do Caribe, assistência técnica e financeira, e alguns períodos de transição amplos para que seus pescadores começassem a utilizar os dispositivos de proteção às tartarugas, vantagens estas não oferecidas aos quatro países asiáticos reclamantes junto à OMC.

4.5. O “Caso Amianto” (DS-135), de 1998, envolvendo a Comunidade Europeia (França), a partir de reclamação do Canadá:

Refere-se ao amianto, cuja utilização se dá em diversos setores industriais, devido à sua resistência a temperaturas muito elevadas, a partir de reclamação do Canadá diante da proibição imposta pela França sobre a sua importação de amianto e de produtos que o contenham, considerando-o uma substância altamente tóxica cuja exposição pode causar graves riscos para a saúde humana, como a asbestose26 e o câncer de pulmão, por exemplo.

No caso, o Governo da França, que já havia sido importador de grandes quantidades desse produto, impôs a proibição de sua importação, tendo a Comunidade Europeia justificado a adoção da medida alegando a finalidade de controlar os riscos à saúde ocasionados por essa substância, tendo o Canadá, segundo maior produtor de amianto no mundo, impugnado tal proibição junto à Organização Mundial de Comércio-OMC, como nos conta PIFFER (2011, p. 128):

Aliás, quando da sua manifestação, o Canadá não deixou dúvidas quanto aos riscos do amianto, porém sustentou que deveria haver uma distinção entre anfibólio e a crisótila (conhecida como amianto branco), constituída sob uma matriz de cimento. Este último, segundo alegado, evita a perda de lascas de fibras de amianto e não colocaria em risco a saúde.

O Canadá aduziu que a medida adotada pelo Governo Francês infringia as regras atinentes ao livre-comércio, tendo a medida em questão, no entanto, sido considerada justificada pelo Painel instaurado no âmbito da OMC, que, ao analisar os riscos gerados pelo aludido produto à saúde humana e ao meio ambiente, decidiu em favor da Comunidade Europeia, decisão esta confirmada em sede de Apelação, com base na alínea “b” do artigo XX, ou seja, poderia ser considerada como necessária para “proteger a saúde e a vida das pessoas e dos animais ou para preservar as plantas”.

O “Caso Amianto” é bastante importante por ter sido o primeiro caso em que a medida de proteção implementada por um país foi aceita, por ser considerada necessária a proteção da vida e saúde humana, animal e vegetal, destacando-se ainda, neste particular, que Brasil dele participou como terceiro interessado, haja vista estar entre os cinco maiores produtores de amianto do mundo, tendo inclusive no ano de 2005 proibido a importação e o uso de amianto no país (RAUCCI, 2010, p. 67).

4.6. O “Caso dos Pneus Remoldados” (DS-332), de 2005, envolvendo o Brasil, a partir de reclamação da Comunidade Europeia:

No caso em comento, a União Europeia atacou a proibição da importação de pneus remoldados – ou “recauchutados” – no Brasil, bem como da exceção feita para os pneus provenientes  do Mercado Comum do Sul-MERCOSUL e aos importados mediante autorização judicial, ao argumento de que a proibição de importações não contribuía significativamente para a meta do Brasil de reduzir os riscos provocados por resíduos de pneus, pois os reformadores brasileiros trabalhavam com carcaças importadas, vindas do MERCOSUL e obtidas através de autorização de seu Poder Judiciário. Alegou a União Europeia, ademais, no tocante ao MERCOSUL, que não caberia a exceção prevista no tocante às regras do livre-comércio da Organização Mundial de Comércio-OMC para os acordos comerciais regionais, pois que, neste particular, o Brasil deveria provar tratar-se de uma união aduaneira.

O estabelecimento do Painel ocorreu em 17 de novembro de 2005, em que se questionou, dentre outras, as seguintes medidas: a imposição pelo Brasil de banimento à importação de pneus usados, na medida em que alcançavam os pneus reformados; a imposição de banimento à importação de pneus reformados, pelo artigo 40 da Portaria SECEX nº 14/2004; a imposição de multa sobre a importação, comercialização, transporte, armazenagem, guarda ou manutenção em depósitos de pneus reformados importados, em que se destaca o Decreto presidencial nº 3.919/01; a isenção da proibição de importações a pneus remoldados importados dos países integrantes do MERCOSUL, em cumprimento da decisão do Tribunal ad hoc do MERCOSUL, por meio da Portaria SECEX nº 14/2004, e das respectivas penalidades financeiras, através do Decreto Presidencial nº 4592, de 11 de fevereiro de 2003; alegando também a inadequação de uma série de Portarias, Decretos e mesmo uma Lei do Rio Grande do Sul, tentando demonstrar a discriminação no comércio de pneus reformados (LIMA, 2012, p. 51).

Em sede de defesa perante o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, o Brasil centrou-se basicamente na exceção prevista no artigo XX, alínea “b”, do GATT, aduzindo, além disso, que as medidas adotadas pelo Governo Brasileiro no tocante aos pneus remoldados seriam reflexo da ratificação da “Convenção da Basiléia de 1989 sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito”. O Brasil, em sua argumentação, declarou que o descarte indevido de pneus, com seu lançamento em terrenos abandonados ou no fundo de quintal de residências, provoca inevitáveis danos à fauna e à flora, estando ainda diretamente relacionado com a proliferação de doenças como a dengue, cólera, malária, febre amarela, entre outras, pela proliferação dos seus vetores, que se reproduzem em “água parada”, assim como pode ocasionar incêndios, com a consequente liberação de gases tóxicos, inclusive cancerígenos, o que prejudicaria a saúde humana e o meio ambiente, reiterando que a proibição da importação de pneus reformados era necessária para se atingir os fins pretendidos (RAUCCI, 2010, p. 91).

Instaurado o Painel, nele foi acolhido o argumento da União Europeia de que as decisões do Poder Judiciário Brasileiro que autorizavam a importação de pneus remoldados de países não-integrantes do MERCOSUL prejudicava em larga escala o alcance do objetivo declarado pelo Brasil de defender o seu meio ambiente, mas, em contrapartida, não acolheu o argumento lançado pela Comunidade Européia de que as medidas atacadas, face à importação de idênticos produtos tendo por origem os países do MERCOSUL, seriam discriminatórias e injustificáveis, entendendo, neste particular aspecto, que tais importações eram decorrentes de decisão do Tribunal Arbitral do MERCOSUL, que condenara o Brasil a aceitar a importação de pneus dos países membros daquela Aliança Aduaneira. O Painel entendeu, pois, que as medidas atacadas, não sendo discriminatórias em sua gênese, se justificavam provisoriamente sobre a exceção do artigo XX do GATT (RIBEIRO, 2008, p. 35).

Levada a questão ao julgamento pelo Órgão de Apelação, este manteve a decisão do Painel no sentido de ser justificável a medida adotada para fins de proteger a vida e a saúde humanas, bem como a flora e a fauna, com base no artigo XX, alínea “b”, do GATT, decidindo, no entanto, que a isenção de proibição de importação de pneus usados dada ao MERCOSUL e as importações por meio de liminares, independentemente do volume de importações que propiciavam, tratava-se de injustificada e arbitrária discriminação, baixando recomendação para o conserto de tal situação (RAUCCI, 2010, p. 93). Proferida esta última decisão, as partes decidiram instituir uma arbitragem vinculante para estipular prazo razoável para o seu cumprimento.

Como sinala Patriota (2013, p. 176), para o Brasil, o mais flagrante exemplo de contradição nos discursos de um país desenvolvido seria o presente contencioso sobre pneus reformados, no qual a União Europeia contestou a legislação brasileira que proibia as importações desses produtos, sabendo-se que os pneus reformados constituem um dos maiores desafios ambientais para as nações, sendo que, até os dias de hoje, com toda a tecnologia disponível, ainda não foi possível aos países, independentemente de seu nível de desenvolvimento, criar um método de descarte seguro, adequado e economicamente viável para lidar com o grande volume de pneus lançados na natureza, sendo-se de esperar que a União Europeia incentivasse e respeitasse os esforços do Brasil no sentido de controlar a geração deste tipo de resíduo e proteger tanto o meio ambiente quanto a saúde humana.

Continua Patriota (2013, p. 177):

No entanto, a realidade provou ser diferente. A solução encontrada pela UE para o lixo gerado nos países-membros foi exportá-lo para os países em desenvolvimento e caracterizar de protecionismo os esforços legítimos do Brasil de limitar a entrada deste tipo de resíduo no País. O Órgão de Apelação da OMC confirmou o entendimento sobre a necessidade da medida para proteger a saúde humana e o meio ambiente, pois, ao reduzir a geração de resíduos, a medida brasileira combate os riscos associados a sua destruição, acúmulo e transporte, que incluem doenças transmitidas por mosquitos e problemas de saúde ocasionados, entre outras causas, pela contaminação do meio ambiente. Como resultado do contencioso, o Órgão permitiu que, mediante adaptações e algumas condições, o Brasil mantivesse a medida que proíbe a importação de pneus reformados.

A importância do presente caso, no âmbito da OMC, reside no fato de ter sido o segundo julgamento – depois do que foi decidido no “Caso Amianto” –, decidido em favor do meio ambiente (REALE, 2010, p. 94), sendo ainda de se destacar sobre o tema, finalmente, que, em  25 de setembro de 2009, o Brasil informou ter dado cumprimento à decisão do Órgão de Solução de Controvérsias27.

4.7. O “Caso das Focas” (DS-400 e DS-401), ambos de 2009, envolvendo o Canadá e a Noruega, respectivamente, a partir de reclamação da União Europeia.

Trata-se da contestação canadense junto à Organização Mundial do Comércio-OMC, à qual se agregou a reclamação norueguesa, aos ditames do “Regulamento CE nº 1007/2009”, do Parlamento Europeu, que proibiu o comércio de produtos derivados de foca, representações estas que, posteriormente, foram reunidas e decididas em conjunto pelo seu Órgão de Solução de Controvérsias. É que, em 2009, a União Europeia instaurou um embargo sobre os produtos derivados da caça comercial de focas na Noruega – que não é membro da Comunidade Europeia – e no Canadá, uma medida justificada pelas preocupações morais do público europeu frente aos cruéis métodos de caça desses animais, que costumam ser caçadas com fuzis e "hakapiks", uma espécie de garrote com um gancho na ponta.

Em sede decisional, o Painel concluiu que o regime adotado pela União Europeia no sentido de proteger as focas é "necessário para proteger a moral pública", na acepção da alínea “a” do artigo XX do GATT, decisão esta que também acabou sendo confirmada pelo Órgão de Apelação.

E assim, como se vê, acabou sendo autorizada pela OMC a proibição de importação de produtos derivados de focas, considerando-se que as regras consubstanciadas no “Regulamento CE nº 1007/2009”, do Parlamento Europeu, são válidas e vão ao encontro da proteção da moral pública, revestindo-se como medidas hábeis a permitir a restrição ao livre-comércio desses produtos.


 

5. Considerações finais.

Com o presente trabalho objetivou-se mostrar a evolução do tratamento da questão do meio ambiente nos órgãos de governança comercial global, especialmente após a introdução do ideário do desenvolvimento sustentável, propugnado no “Relatório Brundtland”, de 1987, e na “Conferência Rio-92”, no preâmbulo do Acordo Constitutivo que deu origem ao surgimento da Organização Mundial de Comércio-OMC, em 1994 – “Tratado de Marraqueche” –, firmando-se a necessidade de harmonização do livre-comércio internacional com a agenda ambiental das nações.

Tal necessidade se evidencia não só porque a noção de utilização racional dos bens da natureza passou a fazer parte de vários diplomas normativos internos dos países, mas, também, pela proliferação de vários Acordos Multilaterais Ambientais-AMAs firmados entre os Estados, membros ou não da OMC, expressando uma tendência das nações na formulação de políticas e regulamentações direcionadas a uma maior proteção dos bens ambientais. No ponto, é de se dizer que, apesar de existirem mais de 250 AMAs no mundo de hoje, com membros que variam de pequenos grupos até o conjunto de 180 países, só cerca de 20 dos mais recentes e significativos AMAs é que tratam de problemas ambientais globais e incluem medidas comerciais restritivas para tratar de problemas ecológicos globais, incluindo disposições que possam, de alguma forma, influenciar e afetar o comércio entre as nações, restringindo-o em determinadas circunstâncias.

Conseguiu-se, pois, com muitos esforços, uma importante aproximação entre os dois temas – comércio e meio ambiente –, tendo o ativismo da área ambiental tido inevitáveis reflexos no sistema multilateral de comércio, cujos contenciosos do GATT, e, mais tarde, da OMC, têm contribuído para a formação e a consolidação desse vínculo.

De tudo, em especial a partir de uma demonstração exemplificativa sobre como algumas questões comerciais com efeitos ambientais transfronteiriços foram decididas pelos órgãos de resolução de controvérsias no sistema multilateral de comércio entre as nações (GATT e OMC), percebe-se uma crescente tendência no sentido de tratar as questões ambientais no âmbito das negociações de comércio.

Observa-se, ademais, que os esforços dos governos no sentido de buscar o desenvolvimento sustentável repercutem na formulação de políticas econômicas e na competitividade dos países, e que a OMC tem desenvolvido paulatinamente uma compreensão mais proativa a respeito da proteção ambiental. Neste mesmo passo, os AMAs vêm ganhando papel de crescente destaque no cenário internacional, como instrumentos que possibilitam que os objetivos ambientais sejam perseguidos em coerência com as regras do livre-comércio, mas com a estipulação de medidas que, ao fim e ao cabo, também salvaguardem o uso racional dos recursos naturais.

REFERÊNCIAS:

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2 Trata-se do documento elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento da ONU, chefiada à época pela ex-primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, a qual faz parte de uma série de iniciativas, anteriores à Rio-92, as quais reafirmam uma visão crítica do modelo de desenvolvimento adotado pelos países industrializados e reproduzido pelas nações em desenvolvimento, e que ressaltam os riscos do uso excessivo dos recursos naturais sem considerar a capacidade de suporte dos ecossistemas, apontando para a sua incompatibilidade com os padrões de produção e consumo vigentes, numa nova visão das relações homem-meio ambiente em que fica muito claro que não existe apenas um limite mínimo para o bem-estar da sociedade; há também um limite máximo para a utilização dos recursos naturais, de modo que sejam preservados. Tendo sido apresentado em 1987, o “Relatório Brundtland” propõe como meta da humanidade alcançar o desenvolvimento sustentável, que é “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas necessidades” (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1988, p. 46).

3 Também conhecida como “ECO-92”, “Rio-92”, “Cúpula ou Cimeira da Terra”, nela estiveram representados 178 Estados, destacando-se nessa representação a presença pessoal de 118 Chefes de Estado e de Governo, um afluxo de lideranças nacionais jamais repetido em qualquer outra conferência da temática da ONU. Tendo sido realizada quando já terminada a “guerra fria”, com a extinção da União Soviética, permitiu novos alinhamentos, inclusive de caráter ambiental, sendo também a mais produtiva das conferências ambientais da ONU, tendo como resultado a assinatura de vários acordos – a “Carta da Terra”, a Declaração de Princípios sobre Florestas” e a “Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” –, três convenções – sobre a mudança climática, biodiversidade e desertificação –, e ainda a “Agenda 21”, um plano de ação analítica para a realização do desenvolvimento sustentável no século XXI que deveria servir de base para que cada país elaborasse internamente normas de compatibilização do efeito antrópico com a preservação dos bens ambientais. (MILARÉ, 2014, p. 1591 e BARACAT, 2012, p. 11).

4 Denominada “Conferência das Nações Unidas Sobre o meio ambiente humano”, nela estiveram representados 113 países, no bojo da qual não houve a participação dos países socialistas, vinculados ao “Pacto de Varsóvia”, que boicotaram a reunião, por conta de a Alemanha Oriental não ter podido participar do evento, em razão de não ter sido admitida com Estado-Membro da própria ONU. A “Conferência de Estocolmo” caracterizou-se pelo embate entre os países capitalistas desenvolvidos, que, preocupados com a poluição industrial, a escassez de recursos energéticos, a decadência de suas cidades e outros problemas advindos de seus processos de desenvolvimento, defendiam uma política de “crescimento zero”, e nações não-desenvolvidas ou em desenvolvimento, que defendiam a necessidade de promoverem seu desenvolvimento econômico, com vistas à minimização da pobreza, defendendo uma política de “crescimento a qualquer custo”, sendo esta exatamente a razão pela qual não houve grande avanço nas negociações, a não ser pela criação do Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas-PNUMA­, administrado pela Assembléia-Geral, e existente até hoje. (MILARÉ, 2014, p. 1571 e LIMA, 2012, p. 36).

5 Nesse sentido, o artigo 225 da Carta Constitucional Brasileira de 1988, cujo artigo 225, “caput”, verbera “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”. Nessa mesma linha, mais especificamente, a Carta Sul-Africana de 1996, segundo a qual “Everyone has the right ­to an environment that is not harmful to their health or well-being; and to have the environment protected, for the benefit of present and future generations, through reasonable legislative and other measures that ­ prevent pollution and ecological degradation; promote conservation; and secure ecologically sustainable development and use of natural resources while promoting justifiable economic and social development.”, ou mesmo a Constituição da República Bolivariana da Venezuela de 1999, que, em seu artigo 128, é expressa ao referir que “El Estado desarrollará una política de ordenación del territorio atendiendo a las realidades ecológicas, geográficas, poblacionales, sociales, culturales, económicas, políticas, de acuerdo con las premisas del desarrollo sustentable, que incluya la información, consulta y participación ciudadana. Una ley orgánica desarrollará los principios y criterios para este ordenamiento.” (sem grifo no original).

6 Confira-se o primeiro “considerando” do Acordo Constitutivo da OMC: “ (...) reconhecendo que as suas relações na esfera da atividade comercial e econômica devem objetivar a elevação dos níveis de vida, o pleno emprego e um volume considerável e em constante elevação de receitas reais e demanda efetiva, o aumento da produção e do comércio de bens e de Serviços, permitindo ao mesmo tempo a utilização ótima dos recursos mundiais em conformidade com o objetivo de um desenvolvimento sustentável e buscando proteger e preservar o meio ambiente e incrementar os meios para fazê-lo, de maneira compatível com suas respectivas necessidades e interesses segundo os diferentes níveis de desenvolvimento econômico, (...)”.

7 Em 1973 houve um aumento no preço do petróleo em mais de 400%, patrocinados pelos países árabes em protesto pelo apoio prestado pelos Estados Unidos a Israel durante a “Guerra do Yom Kippur”. Na seqüência, em 1979, durante a crise política ocorrida no Irá que culminou com a deposição do Xá Reza Pahlevi, desorganizou-se todo o setor de produção de petróleo no país, ocasionando-lhe um aumento de preços na ordem de 1000%. Tais fatos repercutiram sobre toda a economia global (Nota do Autor).

8 Ao final da Rodada, a tarifa média para bens industriais era de apenas 4,7% naqueles países. (MESQUITA, 2013, p. 40).

9 Arthur Dunkel dirigiu o GATT de 1980 a 1993.

10 “Artigo IV - Estrutura da OMC

1. Estabelecer-se-á uma Conferência Ministerial composta por representantes de Membros que se reunirá ao menos uma vez cada dois anos. A Conferência Ministerial desempenhará as funções da OMC e adotará as disposições necessárias para tais fins. A Conferência Ministerial terá a faculdade de adotar decisões sobre todos os assuntos compreendidos no âmbito de qualquer dos Acordos Comerciais Multilaterais caso assim o solicite um membro em conformidade com o estipulado especificamente em matéria de adoção de decisões no presente Acordo e no Acordo comercial multilateral relevante.”

11 “Artigo IV - Estrutura da OMC. (...)

2. Estabelecer-se-á um Conselho Geral composta por representantes de todos os Membros que se reunirá quando cabível. Nos intervalos entre reuniões da Conferência Ministerial o Conselho Geral desempenhará as funções da Conferência. O Conselho Geral comprará igualmente as funções que se lhe atribuam no presente Acordo. O Conselho Geral estabelecerá suas regras de procedimento e aprovará aos dos Comitês previstos no parágrafo 7.

3. O Conselho Geral se reunirá quando couber para desempenhar as funções do Órgão de Solução de Controvérsias estabelecido no Entendimento sobre Solução de Controvérsias. O Órgão de Solução de Controvérsias poderá ter seu próprio presidente e estabelecerá as regras de procedimento que considere necessárias para o cumprimento de tais funções.

4. O Conselho Geral se reunirá quando couber para desempenhar as funções do Órgão de Exame das Políticas Comerciais estabelecido no TPRM. O Órgão de exame das Políticas comerciais poderá ter seu próprio presidente e estabelecerá as regras de procedimento que considere necessárias para o cumprimento de tais funções.”

12 “Artigo IV - Estrutura da OMC. (...)

5. Estabelecer-se-á um Conselho para o comércio de Bens, um Conselho para o Comércio de Serviços e um Conselho para os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionadas com o comércio (denominado a Seguir Conselho de ‘TRIPS’) que funcionará sob a orientação geral do conselho Geral. O Conselho para o comércio de Bens supervisionará o funcionamento dos Acordos Comerciais Multilaterais do Anexo 1A. O Conselho para o Comércio de Serviços supervisará o funcionamento do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (denominado a seguir ‘GATS’). O Conselho para TRIPS supervisará o funcionamento do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (denominado a seguir Acordo sobre ‘TRIPS’). Esses Conselhos desempenharão as funções a eles atribuídas nos respectivos Acordos e pelo Conselho geral. Estabelecerão suas respectivas regras de procedimento sujeitas a aprovação pelo Conselho Geral. Poderão participar desses Conselhos representantes de todos os Membros. Esses Conselhos se reunirão conforme necessário para desempenhar suas funções.

6. O Conselho para o Comércio de Bens, o Conselho para o Comércio de Serviços e o Conselho para TRIPS estabelecerão os órgãos subsidiários que sejam necessários. Tais órgãos subsidiários fixarão suas respectivas regras de procedimento sujeitas a aprovação pelos Conselhos correspondentes.”

13 “Artigo VI - A Secretaria (...)

1. Fica estabelecida uma secretaria da OMC (doravante denominada Secretaria), chefiada por um Diretor-Geral.

2. A Conferência Ministerial indicará o Diretor-Geral e adotará os regulamentos que estabeleçam seus poderes, deveres, condições de trabalho e mandato.

3. O Diretor-Geral indicará os intrigantes do pessoal da Secretaria e definirá seus deveres e condições de trabalho de acordo com os regulamentos adotados pela Conferência Ministerial.

4. As competências do Diretor-Geral e do pessoal da Secretaria terão natureza exclusivamente Internacional. No desempenho de suas funções, o Diretor-Geral e o pessoal da Secretaria não buscarão nem aceitarão instruções de qualquer governo ou de qualquer outra autoridade Externa à OMC. Além disso, eles se absterão de toda ação que possa afetar negativamente sua condição de funcionários Internacionais. Os Membros da OMC respeitarão a natureza internacional das funções do Diretor-Geral e do pessoal da Secretaria e não buscarão influenciá-los no desempenho dessas funções.”

14 Ver nota de rodapé nº 01.

15 Ver nota de rodapé nº 02.

16 A EFTA é uma organização europeia fundada em 1960 em na Cidade de Estocolmo (Suécia), pelo Reino UnidoPortugalÁustria, DinamarcaNoruegaSuécia e Suíça, países que não tinham aderido à Comunidade Econômica Europeia-CEE, e na qual a Finlândia foi admitida em 1961, a Islândia em 1970 e Liechtenstein em 1991. Hoje a EFTA é apenas constituída por quatro países: SuíçaLiechtensteinNoruega e Islândia (Nota do Autor).

17 Tendo por missão dois tópicos específicos: identificar a relação entre medidas comerciais e medidas ambientais, de forma a promover o desenvolvimento sustentável, e fazer recomendações apropriadas sobre se as modificações das disposições do sistema multilateral de comércio são compatíveis com a natureza aberta, equitativa e não discriminatória do sistema (SCHNEIDER e SCHULZE, 2012, p. 424).

18 Em tradução livre, no que importa: “Com vista a reforçar o apoio recíproco entre comércio e meio ambiente, concordamos com negociações, sem prejuízo de seus efeitos, sobre: (i) o relacionamento entre as regras da OMC existentes, e as obrigações específicas de comércio estabelecidas em acordos multilaterais ambientais (AMAs). As negociações serão limitadas no escopo da aplicabilidade de cada regra existente na OMC, como partes do AMA em questão. As negociações não prejudicarão os direitos de qualquer Membro da OMC, que não seja parte do AMA em questão; (ii) procedimentos para troca de informações regulares entre AMAs, Secretarias dos AMAs e os comitês relevantes da OMC [...] e (iii) a redução ou, quando apropriado, a eliminação de tarifas e barreiras não-tarifárias de bens e serviços ambientais.” O mandato negociador contido no aludido parágrafo 31 contempla duas vertentes: uma com enfoque transetorial (a relação entre comércio e meio ambiente), e outra com foco mais tipicamente comercial (liberalização do comércio de bens ambientais, foco do presente trabalho), enquanto que os incisos “i” e “ii” do parágrafo 31 dão forma à primeira vertente e determinam o exame da relação entre as regras da OMC e as obrigações comerciais específicas existentes nos acordos multilaterais ambientais, bem como dos procedimentos para troca regular de informação entre os secretariados dos acordos multilaterais ambientais e os comitês da OMC, e dos critérios no marco da OMC para a concessão do status de observador a representantes daqueles acordos (Nota do Autor).

19 Ratificada no Brasil em 24 de junho de 1975 pelo Decreto Legislativo nº 54, e promulgada pelo Decreto nº 76.623, de 17 de novembro de 1975.

20 Ratificado no Brasil em 15 de dezembro de 1989, pelo Decreto Legislativo nº 91, e promulgado pelo Decreto nº 99.280, de 06 de Junho de 1990.

21 Ratificada no Brasil em 16 de junho de 1992, pelo Decreto Legislativo nº 34, e promulgada pelo Decreto nº 875, de 19 de julho de 1993.

22 Ratificada no Brasil em 03 de fevereiro de 1994, pelo Decreto Legislativo nº 02, e promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998.

23 Ratificada no Brasil em 30 de agosto de 2005, pelo Decreto Legislativo nº 885, e promulgada pelo Decreto nº 5.759, de 17 de abril de 2006.

24  Ratificado no Brasil em 21 de novembro de 2003, pelo Decreto Legislativo nº 908, e promulgado pelo Decreto nº 5.705, de 16 de fevereiro de 2006.

25 Em verdade, mesmo após a decisão do sistema GATT em favor do México, os EUA continuaram aplicando as restrições comerciais questionadas, pois em simultâneo transcorriam as negociações do NAFTA e o “Governo Clinton” condicionando a aprovação da formação daquele Bloco Econômico a concessões na área ambiental, o que culminou com a aprovação de um acordo bilateral entre os dois países sobre a questão, evitando a aplicação da deliberação do Painel do GATT.

26 A asbestose, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer-INCA, é uma doença causada pela deposição de fibras de amianto nos alvéolos pulmonares, o que causa uma inflamação, seguida de fibrose, reduzindo a capacidade pulmonar (Nota do Autor).

27 No tocante, a verdade, contudo, é que, no âmbito do MERCOSUL, o Brasil conseguiu apenas a edição da resolução GMC 25/08 para criação do Grupo Ad Hoc para a criação de uma política regional sobre pneus.

Sobre o autor
Marcus Vinicius Aguiar Macedo

Procurador Regional da República, Professor Adjunto do Departamento de Ciências Penais da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC e Doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS.

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