1. INTRODUÇÃO
Dentro do plano constitucional brasileiro, o princípio da isonomia ou igualdade está previsto no Art. 5º caput da Constituição Federal da seguinte forma:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Historicamente, as constituições brasileiras sempre trouxeram como característica marcante em seu texto a expressão “igualdade perante a lei”, que gramaticalmente deve ser aplicada a todos sem qualquer tipo de distinção, sendo essa forma de igualdade denominada isonomia formal.
Entretanto, a interpretação apenas superficial do texto constitucional deve ser estreitada, de modo que também se entenda por isonomia a igualdade econômica e social, assim classificada como isonomia material.
José Afonso da Silva disserta acerca da isonomia formal e material:
Nossas constituições, desde o Império, inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciado que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e suas aplicações tratam a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos. A compreensão do dispositivo vigente, nos termos do art. 5º, caput, não deve ser assim tão estreita. O intérprete há que aferi-lo com outras normas constitucionais, conforme apontamos supra e, especialmente, com as exigências da justiça social, objetivo da ordem econômica e da ordem social. Considerá-lo-emos como isonomia formal para diferenciá-lo da isonomia material... (SILVA, 2004, p. 214).
Interpretando superficialmente a Constituição, logo surgem questionamentos quanto à constitucionalidade de programas destinados à inserção de classes menos favorecidas ao Ensino Superior, e entre eles, as cotas raciais e o Programa Universidade para Todos (PROUNI).
2. O CONTEXTO HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA
2.1. O princípio da igualdade no ordenamento Norte-americano
O princípio da isonomia ou igualdade possui grande relevância para os Direitos Humanos na história, ressaltando a Declaração do “ bom povo da Virgínia” publicada em 16 de junho de 1776, que traz em seu artigo I:
Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem no estado da sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, e com os meios de adquirir e possuir a prosperidade de bens, bem como de procurar e obter a felicidade e a segurança. (COMPARATO, 2013, p. 62).
Esse registro marca o nascimento dos Direitos Humanos na história, pois, por meio dele, é reconhecido que os homens são iguais essencialmente por sua natureza.
Com a independência das 13 colônias britânicas que estavam presentes na América do Norte em 1776, os povos, que até então eram reunidos no formato de confederação, passaram a ser um Estado Federal em 1787, data essa que marca o início da democracia moderna, em que prevalece um ordenamento constitucional com representação popular, limitando os poderes do governo e respeitando os direitos humanos.
Em 1787, George Mason proclama a Declaração de Direitos da Virgínia, o texto com estilo retórico, consagra o princípio da isonomia, e reafirma os direitos igualitários dos homens, e assevera que todos os seres humanos são igualmente livres por sua natureza.
Logo em seu parágrafo 4, a Declaração traz o princípio da igualdade perante a lei, rejeitando os privilégios hereditários e pessoais nos cargos públicos, e, por esta razão, é considerada o ponto de partida para as demais declarações de direitos no futuro, inspirando a Declaração de Direitos francesa de 1789 e também a Declaração Universal aprovada pelas Nações Unidas em 1948.
A Constituição dos Estados Unidos foi discutida e aprovada pela Convenção Constitucional da Filadélfia em 1787, mesmo ano em que os Estados Unidos aprovaram sua Constituição, contudo, o texto não estabelecia nenhuma declaração de direitos.
Em 1789 foram introduzidas à Constituição Norte-americana 10 emendas constitucionais, chamadas de “Bill of Rights” - Declaração de Direitos dos Estados Unidos, sendo que tais emendas entraram em vigor em dezembro de 1791, e consistem na proteção dos direitos individuais do cidadão, face a figura do Estado, garantindo a liberdade, o direito a vida, o direito de propriedade, o respeito ao devido processo legal (due process of law), o direito do povo de manter e portar armas, entre outros.
Assim sendo, embora de forma implícita, o princípio da isonomia também foi consagrado no Bill of Rights, sendo notado na concepção de cada uma das emendas constitucionais da Constituição Norte Americana.
2.2. As declarações de direitos da Revolução Francesa
Em 1789, treze anos após a Declaração “do bom povo da Virgínia”, na abertura da Revolução Francesa, a ideia de liberdade e igualdade dos seres humanos é reafirmada, no art. 1 º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que estabelece que “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.
Ao contrário dos Estados Unidos, que deram mais ênfase à garantia de igualdade jurídica, a Revolução de Direitos na França surgiu como contraponto frente a toda forma de desigualdade. Entretanto, os franceses declararam direitos sem nomear os instrumentos que iriam garanti-los, sendo construído o primeiro ponto de garantias fundamentais que se conhece hoje, quando a vigência dos direitos humanos independe de serem reconhecidos constitucionalmente, como assevera Fabio Konder Comparato:
Não é porque certos direitos subjetivos estão desacompanhados de instrumentos assecuratórios próprios que eles deixam de ser sentidos no meio social como exigências impostergáveis. Aliás, ninguém mais nega, hoje, que a vigência dos direitos humanos independe do seu reconhecimento constitucional, ou seja, de sua consagração no direito positivo estatal como direitos fundamentais. (COMPARATO, 2013, p. 62).
Com tal interpretação, compreende-se que a Declaração de direitos da França, mesmo sem estar acompanhada de mecanismos de garantia ao seu cumprimento, pode exercer sua característica social de preservar e resguardar os direitos inerentes à pessoa humana.
A caracterização dos princípios igualitários é encontrada em diversos textos promulgados na França, como na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que logo em seu artigo primeiro traz a concepção de liberdade e igualdade social.
Na Declaração de Direitos da Constituição de 1791, é garantida a igualdade em caráter tributário, possibilitando que os tributos sejam repartidos entre todos os cidadãos de modo igual. Consagra-se, também, o princípio igualitário em caráter penal, impossibilitando distinção de penas pelo cometimento de mesmo crime.
Semelhante ao texto americano, a ideia de igualdade jurídica é encontrada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Constituição de 1793, que assevera em seu artigo 3º a igualdade dos homens pela natureza e perante a lei.
A Declaração dos Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão da Constituição de 1795 vem com texto de igualdade jurídica em sua declaração, reafirmando a declaração de 1793, expressando que a igualdade consiste na aplicação da mesma lei para todos, quer proteja, ou puna, não sendo admitidas distinções de nascimento e nem hereditariedade de poderes.
2.3. A consagração do princípio da isonomia na Declaração Universal dos Direitos Humanos - 1948
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada por 48 Estados no dia 10 de dezembro de 1948. O documento simboliza um marco no universalismo dos direitos humanos, uma vez que sua aplicabilidade abrange todas as pessoas, de todos os países, independentemente de raças, religiões ou sexo.
Logo em seu preâmbulo os ideais da declaração remetem-se aos princípios franceses de dignidade humana, assegurada a dignidade intrínseca do ser humano, que é possuidor de direitos iguais e inalteráveis:
Artigo I. Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade de direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.
O artigo II da Declaração Universal consagra o ideal igualitário social, cultural e natural da pessoa humana, não havendo hipótese para que haja qualquer tipo de distinção, conforme disposto:
Artigo II. Toda pessoa tem capacidade para gozar de direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Decorrente desse dispositivo, o documento proclama, em seu artigo VII, a concepção norte-americana de igualdade, ou seja, a igualdade perante a lei:
Artigo VII. Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Ao considerar e tratar com diferença o indivíduo, comete-se um grande atentado contra os direitos intrínsecos do ser humano, ao passo que a Declaração Universal dos Diretos Humanos foi justamente um marco na efetivação das garantias fundamentais, visto que sua proclamação decorreu de um período sombrio na história da humanidade, marcada pelas terríveis atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial.
Embora a Declaração não possua força vinculante, o entendimento presente no direito internacional de hoje é de que o respeito aos direitos humanos independe de sua declaração nas constituições nacionais, sendo que a dignidade da pessoa humana deve prevalecer sobre todos os aspectos.
4. AÇÕES AFIRMATIVAS NO ESTADO BRASILEIRO
As ações afirmativas, também conhecidas como discriminação positiva, são políticas públicas com intuito de reduzir as desigualdades que afetam determinados grupos sociais.
O constituinte objetivou proteger determinadas classes, vítimas de desigualdades, ao ponto de merecerem tratamento diferenciado, estabelecendo medidas compensatórias e objetivando-se oportunizar um nível de igualdade aos demais, que não sofreram as mesmas discriminações.
A efetiva prática dessas medidas é causa de grande polêmica acerca de sua constitucionalidade, sendo que muitos consideram um ato discriminatório contra os indivíduos, que, por critérios específicos, não podem aderir aos programas efetivados através das ações afirmativas. Contudo, as ações de discriminação positiva estão em harmonia com o que propõe a República Federativa do Brasil, que preza pela redução das igualdades sociais (igualdade material), concepção consagrada como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, expressa logo no Art. 3º, III, da Constituição brasileira:
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Contudo, deve-se verificar, se tais adoções de ações afirmativas são justificáveis e se realmente possuem a finalidade compensatória de sanar uma desigualdade recorrentemente histórica.
Atualmente dois programas educacionais inseridos no contexto brasileiro causam grande debate na sociedade contemporânea, sendo eles o Sistema de cotas raciais e o Programa Universidade para Todos.
4.1. Sistema de cotas raciais e PROUNI
Ambos os programas objetivam a inserção de classes menos favorecidas nas instituições de ensino superior.
Conforme supramencionado, a República federativa do Brasil possui como objetivo fundamental reduzir a desigualdade social.
A Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira instituição a adotar a política de cotas raciais em seu vestibular, no ano de 2004, e já nesse período muitas instituições públicas começaram adotar essa mesma ação afirmativa.
O sistema de cotas não se destina apenas à inclusão de afrodescentes no ensino superior, sendo que, na região norte, por exemplo, as universidades reservam um número determinado de vagas, oportunizando também o preenchimento para indígenas e seus descendentes.
A constitucionalidade da política de cotas foi discutida no Supremo Tribunal Federal através da arguição de descumprimento de preceito fundamental 186 (ADPF 186), sendo que a decisão da Suprema Corte considerou constitucional a política de cotas para seleção de estudantes na UnB, conforme ponderou o Ministro Ricardo Lewandowski, tendo a referida decisão como objetivo primordial a correção de uma desigualdade historicamente comprovada.
O Programa Universidade para Todos, conhecido popularmente pela sigla PROUNI, foi instituído pelo Governo Federal, através da Medida Provisória nº. 213/04, posteriormente convertida na Lei nº. 11.096/2005, sendo um programa destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais (50% e 20%) para estudantes em instituições privadas.
Assim como as cotas raciais, sua constitucionalidade foi analisada pelo STF, através da ação direta de inconstitucionalidade 3.330 (ADI 3.330).
Novamente o entendimento do Supremo Tribunal Federal foi pela constitucionalidade da ação afirmativa, por maioria de votos no dia 03 de maio de 2012, quando os ministros fundamentaram sua decisão no fator de inserção social e cumprimento do Art. 205 da Constituição brasileira, dispositivo esse que assegura a educação como um direito de todos e dever do Estado e da família.
Como verificado, existe grande controvérsia em relação às ações afirmativas presentes no âmbito educacional brasileiro, todos os debates, inclusive, já foram alvos de apreciação da Suprema Corte nacional, sendo que o entendimento jurídico que prevalece é da legalidade constitucional, fundamentando que essas ações possuem como finalidade o ingresso de classes menos favorecidas ao ensino superior.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Notadamente o princípio da isonomia, junto ao princípio da liberdade e ao direito a vida, são primordiais para a existência dos direitos humanos.
Todos os homens nascem e são regidos perante lei, caracterizando o que se entende como igualdade formal, evitando distinções de responsabilidades judiciais demasiadamente excessivas ou privilégios a determinados grupos. No entanto, para que a igualdade alcance sua plenitude, faz-se necessário uma igualdade de forma material, observando a ordem econômica, social e cultural, isto é, a real eficiência de um sistema igualitário se dá pela lei, mas a interpretação de igualdade deve ser entendida em sentido amplo, possibilitando a isonomia em níveis sociais entre todos os cidadãos.
As ações afirmativas surgem para possibilitar a interpretação absoluta da igualdade, uma vez que não se pode analisar apenas o contexto atual dessa discriminação positiva. Os antecedentes históricos, as afrontas aos princípios inerentes ao ser humano possuem grande relevância para o entendimento da adoção de determinadas políticas que visam promover a integração e igualdade entre os homens.
O sistema de cotas raciais e o Programa Universidade para Todos são exemplos de ações compensatórias que procuram reparar um passado de discriminação contra negros, indígenas e classes menos favorecidas, e, como acertadamente decidiu o STF, em ambas às ocasiões, essas ações afirmativas foram criadas para corrigir desigualdades historicamente comprovadas.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo+206553. Acesso em 19.08.2014.
BRASIL ESCOLA. Os discursos a favor das cotas. Disponível em: http:// vestibular.brasilescola.com/cotas/pros.htm. Acesso em: 19.08.2014.
COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos.8 ed. rev. e atual. São Paulo. Saraiva. 2013.
LENZA. Pedro. Direito constitucional esquematizado. 18. ed. ver. Atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014.
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. São Paulo: Editora Método, 2009, 3. ed.
PIOVESAN, Flávia, Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad 1997.
SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional positivo. 33. Ed. São Paulo: Malheiros, 2004.