INTRODUÇÃO
O tema do presente trabalho se refere à imputabilidade do serial killer. Tem como cenário os recorrentes episódios envolvendo esse tipo de criminoso, e as dificuldades encontradas pelos profissionais do Direito e pelos poderes Legislativo e Judiciário em tratar dessa situação, que se difere de qualquer outra. Leva-se em consideração o conceito contemporâneo do delito, a finalidade essencial da pena e as contribuições da Psiquiatria e da Psicologia no que se refere à aplicabilidade Destarte, o tema merece ser discutido com o intuito de aperfeiçoamento da política criminal brasileira.
No campo social é demonstrável que o tema influi diretamente em direitos fundamentais consagrados como o direito à vida, à segurança pública. Eventos assassinos estão diretamente ligados ao conceito de sociedade, pois dela emergem. Ceifar uma vida é um ato de alta reprovabilidade em qualquer sociedade.
No campo do Direito, vislumbramos emergente necessidade de uma abordagem jurídica mais precisa quanto à abordagem devida a ser dada quando cases tipo serial killer vem à tona na nossa sociedade.
Percebe-se, nessa breve introdução, que o tema é de grande relevância para a sociedade brasileira.
O homicídio em série é um crime de alta periculosidade que não respeita limites geográficos, deixando toda a sociedade exposta este tipo de delito. O Brasil já possui ocorrências consideráveis de assassinatos em série.
Diante disso, surge a seguinte inquietação, que se traduz em um problema no campo do Direito: considerando os recorrentes casos, o sistema processual penal brasileiro está preparado para lidar com um tipo de crime tão específico e de tão grande periculosidade?
A realidade brasileira–não raro caracterizada por ocorrências que foram julgadas de forma equivocada, em casos que serão apresentados neste trabalho é desconfortável e desanimadora. O que se constata é que não há uma política adequada de julgamento dos serial killers. O aparato jurídico estatal é insuficiente. Tem-se profissionais com pouco preparo para esse tipo de situação, uma Justiça do ‘meio-termo’ e um sistema carcerário ineficaz e falido que não regenera ninguém, o que dizer de um indivíduo que tem personalidade antissocial.? Isso nos leva à percepção de que não há no Brasil um julgamento adequado ao assassino serial e também não há uma previsão positiva sobre uma possível mudança de quadro.
1 Conceito de crime
A palavra crime já existe a muitos anos, sendo reconhecida no Direito Romano como Noxa, que significava conduta lesiva ou delituosa. Contudo, esse significado continha em si, algo muito mais abrangente do que o próprio ato da infração, se estendo à natureza delitiva. Ensina Damásio[1], que a palavra crime foi utilizada durante a Idade Média, como sendo delictum (empregado para crimes mais leves), e crimen (empregada para crimes mais graves). Ainda de acordo com os preceitos do professor Damásio, na Itália era utilizada a expressão reato. Nos países de língua castelhana, eram utilizadas as expressões delito, crime e contravenções. Na Inglaterra a expressão dominante era offence. Nos Estados Unidos da América do Norte, os crimes eram divididos em trasons, felonies e misdemeanors. Por vez, nosso ordenamento acolhe a expressão “infração”, da qual abrange o conceito de “crime”, “delito” e “contravenção”.
O crime caracteriza-se tanto como fato social, quanto como uma ação humana. Humana pelo fato de ser cometido apenas pelo ser humano, mesmo que, houve um tempo em que se puniam também coisas materiais. Já o crime como fato social, se expressa como uma manifestação coletiva, visto que quem comete atua na coletividade, no grupo social.
No aspecto individual, a investigação sobre a personalidade do criminoso no momento em que cometeu o delito, é de suma importância. Dessa forma, investiga-se o motivo da ocorrência, as reações estabelecidas em determinadas situações, o nível de agressividade. Cada indivíduo possui sua personalidade, respondendo diferentemente a estímulos idênticos, sendo tal capacidade chamada de “disposição individual”.
Segundo Nelson Hungria[2], crime é o fato típico contrário ao direito, imputável a título de dolo ou culpa e a que a lei contrapõe a pena como sanção específica. Já segundo Magalhães Noronha[3], crime é entendido como a conduta humana que leva ou expõe a perigo um bem jurídico protegido pela lei penal, sendo sua essência é a ofensa ao bem jurídico, pois toda norma penal tem por finalidade sua tutela.
O domínio da moral é distinto daquele da lei penal. Há atos morais que são punidos, há atos imorais que não são. O exame das diversas legislações penais dá conta que sociedades diferentes têm concepções divergentes da criminalidade dos atos; uma ação é punida num país e no outro não. O mesmo se pode dizer em relação à de moralidade[4].
Nosso sistema jurídico, não define expressamente o conceito de crime, sendo desta forma, definido pela doutrina especializada. O conceito foi definido em aspecto formal e material. Sob aspecto formal caracteriza um fato adverso à norma penal, sendo uma conduta ilegal. Tal definição visa exclusivamente à aparência externa do crime, e não propriamente sua matéria. Sob o aspecto material, é levado em consideração o bem jurídico tutelado pelo Estado. Noronha[5] ensina que a finalidade do Estado é a consecução do bem coletivo, sendo sua razão teleológica, necessitando para sua efetivação independência no exterior e conservação da ordem interior, cabendo-lhe ditar as normas necessárias à harmonia e equilíbrio sociais.
Logo, perante o conceito analítico do crime, é possível afirmar que é levada em consideração a atuação voluntária do criminoso, sendo culposa e dolosa. Dolo é considerado o fato pelo qual o agente assume a responsabilidade de produzir o dano. Culpa é considerada a causa que gera o resultado, sendo ela negligência, imprudência e imperícia.
Para que uma conduta humana seja considerada crime, é de suma importância a existência de dois requisitos, do quais, sem estes, não há conduta delituosa. Também chamados de requisitos genéricos, são eles o fato típico e a antijuridicidade.
Uma conduta só é considerada fato típico se houver prévia tipificação legal descrita como crime. Para Noronha é necessário que a atuação do sujeito ativo do delito tenha tipicidade, ou seja, agindo de acordo com o tipo legal. Sendo assim é expressamente necessária a existência de norma penal, que caracteriza como crime a conduta específica. O fato típico é constituído por quatro elementos, sendo eles: a conduta, o resultado, a relação de causalidade e a tipicidade.
Conduta é ato de vontade, contendo especificadamente uma finalidade. Ato de vontade não se refere ao agente querer praticar o resultado, e sim ao agente decidir praticar a conduta. Nisso se relaciona o tipo doloso e culposo. A vontade dolosa significa a intenção da produção do resultado. A vontade culposa significa que não houve expectativa da produção do resultado, este foi além do que esperava o agente.
A conduta possui ainda duas figuras, sendo elas a comissão e a omissão. A comissão é a prática de um ato que ocasiona um resultado, já a omissão é uma inércia do agente perante uma situação, sendo que tal comportamento também gera um resultado.
O resultado torna-se elemento da conduta. O resultado é o fim alcançado pelo sujeito ativo do delito. Ensina Damásio[6] que podem existir crimes sem resultado, são chamados de crimes de mera conduta, do qual o comportamento do agente não produz nenhuma modificação no mundo exterior. No crime de mera conduta o tipo legal, faz referência apenas à conduta do agente, sendo que não há descrição de efeito produzido pela ação. Ainda de acordo com Damásio o resultado pode ser físico, como o crime de dano, fisiológico como o resultado de morte, e psicológico como o temor no crime de ameaça.
Relação de causalidade se expressa entre a conduta do indivíduo e o resultado produzido, sendo que, é de extrema importância que o resultado esteja ligado a ação do agente. Ensina Mirabete[7], que para haver fato típico é ainda necessário que exista relação de causalidade entre a conduta e o resultado. O conceito de causa não é jurídico, mas de natureza; é a conexa, a ligação que existe numa sucessão de acontecimentos que pode ser entendida pelo homem.
Por fim, a tipicidade, último elemento da conduta entendida como a adequação entre o fato cometido pelo indivíduo e a lei penal.
A tipicidade é o ponto de partida da famosa teoria dogmático-jurídica de Beling, que assim a define “qualidade do fato, em virtude da qual este se pode enquadrar dentro de alguma da figuras de crime descritas pelo legislador mediante um processo de abstração de uma série de fatos da vida real[8].
Apontando-se para os requisitos do crime, o segundo é a antijuricidade que se relaciona à conduta humana estar contraposta ao ordenamento jurídico, sendo apenas considerada ilícita aquela que expressamente esteja revelada como sendo ilícita.
A relação de contraposição entre o ordenamento jurídico e a conduta típica se expressa na antijuricidade. Nelson Hungria refere-se ao tema como.
Um fato para ser criminoso, tem de ser, além de típico, contrário ao direito, isto é, estar positivamente em contradição com a ordem jurídica [...]. Para se reconhecer que um fato típico é também antijurídico, basto indagar, dadas as circunstâncias que o acompanham se não ocorre uma causa de excepcional ilicitude (causa excludente de crime, descriminante) [...]. [9]
Há ainda a definição das elementares ou circunstâncias, requisitos específicos do crime. Elementares são os requisitos extraídos do tipo penal, o verbo que descreve conduta ilícita, os sujeitos do crime (ativo e passivo), o objeto material, etc. Sendo inexistente qualquer desses elementos, não há crime.
As circunstâncias são os fatos que atuam como agravante e atenuante da pena, como ensina Damásio “são determinados dados que, agregados à figura típica fundamental, têm função de aumentar ou diminuir as suas conseqüências jurídicas, em regra, a pena”[10].
No que se refere ao delito de homicídio, tal conduta é reprimida por todas as formas e civilizações, seja remota ou contemporânea. É de se pontuar a atuação do homem durante toda a história do Direito Penal, não como um mero indivíduo social, mas como um ser dotado de horrenda agressividade, seja para garantir sua sobrevivência, seja por motivos ou razões desconhecidas. Assim, desde sempre, o homicídio foi tratado como um ato de extrema agressividade, entretanto não com a mesma interpretação que se tem dado atualmente. É considerável que o homicídio em série não abrange apenas a figura da agressão, abrange de toda sorte, diversas práticas violentas, operadas pelo agente.
2 SERIAL KILLER: ASPECTOS PSICOLÓGICOS E GERAIS
Definir precisamente o que é um serial killer, não é uma tarefa fácil, visto que, infelizmente, para se chegar a tal definição, algumas pessoas são vitimadas de forma trágica, e até mesmo são mortas (quando tais delinquentes logram êxito em suas tentativas).
Assassinos em série possuem características comportamentais uniformes, independente do país onde nasceram e vivem, da classe social que ocupam, ou do grau de instrução. Todos eles têm má conduta na infância, falta de empatia, sentimentos superficiais, reações estouradas, ego inflamado, falta de culpa, comportamento antissocial e impulsividade. São irresponsáveis e sentem uma necessidade desenfreada por adrenalina.
O comportamento de um serial é definido na esfera da Psicologia e Medicina Legal como um Transtorno de Personalidade Antissocial. A Organização Mundial de Saúde que organizou os vários tipos de transtornos mentais e de comportamento (CID-10)[11] classificou o Transtorno Antissocial “Prevalece a indiferença pelos sentimentos alheios, podendo adotar comportamento cruel; desprezo por normas e obrigações; baixa tolerância a frustração e baixo limiar para descarga de atos violentos”. Esse tipo de transtorno caracteriza uma personalidade psicopata, e nada mais correlata a ligação entre assassinos seriais e este tipo de personalidade, por esta razão o termo ‘psicopata’ usado na dissertação deste trabalho, será exclusivamente usado para caracterizar a forma mais grave de sua manifestação, determinante para os violentos assassinatos em série. Serial killers são seres dotados de personalidade psicopata. Mas nem todo psicopata é um serial killer. A manifestação dos assassinatos em série é apenas a forma mais acentuada e cruel de psicopatia como elucida a Doutora Ana Beatriz Barbosa:
É importante ressaltar que os psicopatas possuem níveis variados de gravidade: leve, moderado e grave. Os primeiros se dedicam a trapacear aplicar golpes e pequenos roubos, mas provavelmente no “sujarão as mãos de sangue” ou matarão suas vítimas. Já os últimos, botam verdadeiramente a “mão na massa” com métodos cruéis sofisticados, e sentem um enorme prazer com seus atos brutais. Além de psicopatas, ele também recebem as denominações de sociopatas, personalidade antissociais, personalidade psicopáticas, personalidades dissociais, personalidades amorais entre outras[12].
No mesmo sentido:
Morillas Fernandez (in “Aspectos criminológicos de los psicopatas y asesinos em serie”, Cuadernos de Política Criminal, nº 77, 2002, Edersa, Madrid, p.409) lembra que psicopata e assassino em série são termos que inicialmente são distintos, mas que, em casos extremos, podem confluir em um mesmo sujeito. Ou seja, em muitos casos o assassino em série, é igualmente, um psicopata. Isto nos faz também compreender que um psicopata não tem que ser necessariamente um assassino em série, uma vez que somente pequena parcela dos psicopatas torna-se-ão assassinos seriais. Destes, ou seja, dos assassinos seriais, todavia, concluímos que a grande maioria padeceria de algum tipo de psicopatia. Mas os psicopatas que margeiam as normas sociais, não necessariamente se tornam matadores seriais, uma vez que de acordo com a psicopatia desenvolvida e o grau da mesma, podem praticar crimes ou desvios comportamentais de outros crimes[13].
Vale enfatizar que transtornos de personalidade não são doenças mentais, e sim anomalias de desenvolvimento psíquico, sendo consideradas perturbações mentais.
Chamamos personalidades psicopáticas a certos indivíduos que, sem perturbação da inteligência, inobstante não tenham sofrido sinais de deterioração, nem de degeneração dos elementos integrantes da psique, exibem através de sua vida intensos transtornos dos instintos, da afetividade, do temperamento e do caráter, mercê de uma anormalidade mental definitivamente preconstituída, sem, contudo, assumir a forma de verdadeira enfermidade mental[14].
A parte racional ou cognitiva dos assassinos seriais é perfeita, consequentemente compreendem seus atos, tendo total consciência de suas ações e escolhas. Porém são extremamente pobres de afeto e não possuem profundidade emocional.
É, em suma, a loucura moral distintamente como doença dos sentimentos, anomalias da afetividade, eliminadora do senso moral, porém deixando íntegros o intelecto e a vontade. É incapacidade de sentimentos morais com capacidade intelectual ou volitiva, distúrbio da afetividade, sem distúrbio simultâneo cognoscitivo ou volitivo[15].
Os Transtornos de Personalidade tem preocupado diversas áreas de estudo como Sociologia, Política e Antropologia. A destrutividade potencial de portadores desses transtornos tem sido evidentes na apresentação de tamanha crueldade dos assassinatos (principalmente os em série).
Outro dado interessante que os diferencia dos demais assassinos é a forma como agem. O assassino em massa, por exemplo, mata várias pessoas em questões de horas ou minutos, pouco importando para eles a identidade de suas vítimas. Já o assassino em série tem um padrão bem definido na sua forma de agir. Matam em intervalos maiores de dias, semanas, meses e até mesmo, anos. Escolhem cuidadosamente suas vítimas (geralmente pessoas com características em comum ou algum dado que as liguem ex: mulheres entre 20 e 25 anos, homens de meia idade, pessoas que morem em um mesmo bairro, ou trabalhem em uma mesma empresa, crianças entrando em idade púbere etc.). O Dr. Joel Norris[16], aponta as seis fases do ciclo do serial killer:
- Fase Áurea: onde o assassino começa a perder a compreensão da realidade;
- Fase da Pesca: quando o assassino procura sua vítima ideal;
- Fase Galanteadora: quando o assassino seduz ou engana sua vítima;
- Fase da Captura: quando a vítima cai na armadilha;
- Fase do Assassinato ou Totem: auge da emoção para o assassino;
- Fase da Depressão: que ocorre depois do assassinato.
Após o assassinato, quando o matador entra em depressão, inicia novamente o processo voltando assim para a fase Áurea.
3 Culpabilidade
A culpabilidade é o juízo de reprovação social exercido sobre o fato e o autor, devendo obrigatoriamente, para fins jurídicos, o indivíduo ser plenamente capaz de agir de acordo com a consciência potencial da ilicitude bem como, com a exigibilidade de atuar de outra forma, submetendo-se assim às regras impostas pela norma legal. Culpabilidade se expressa como um juízo valorativo ou ainda, um juízo de censura afetando diretamente o agente do crime, sendo este o objeto da conduta criminosa. Na lição de Zaffaroni e Pierangeli:
Já fornecemos o seu conceito geral: é a reprovabilidade do injusto ao autor. O que lhe é reprovado? O injusto. Por que se lhe reprova? Porque não se motivou na norma? Porque lhe era exigível que se motivasse nela. Um injusto, isto é, uma conduta típica e antijurídica, é culpável quando é reprovável ao autor a realização desta conduta porque não se motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que agiu, que nela se motivasse. Ao não se ter motivado na norma, quando podia e lhe era exigível que o fizesse, o autor mostra uma disposição interna contrária ao direito[17].
Temos no conceito da culpabilidade as principais teorias referentes a sua constituição, eis que o conceito fora resultado de uma constante evolução.
A estrutura do conceito de culpabilidade é constituída por um conjunto de elementos capazes de explicar porque o sujeito é reprovado: primeiro, a capacidade de culpabilidade (ou imputabilidade), excluída ou reduzida pela menoridade ou por doenças e anomalias mentais; segundo, o conhecimento do injusto, excluído ou reduzido pelo erro de proibição; e terceiro, a exigibilidade de conduta diversa, excluída ou reduzida por anormalidade configuradas nas situações de exculpação[18].
A culpabilidade ainda figura como formal e material. A culpabilidade formal é o juízo de censura, expressando-se na consciência de potencial ilicitude do fato. Formalmente a culpabilidade é fonte do legislador, quando este formula o tipo penal. Já a culpabilidade material é a censura realizada de forma concreta, onde se visualiza o fato típico e antijurídico, o autor, sua imputabilidade, e a consciência de potencial caráter ilícito, eis que diante de seu livre arbítrio, optou por praticar o injusto penal. A culpabilidade material funciona como fundamentação da pena.
4 Da imputabilidade penal
O verbo imputar significa atribuir a prática delitiva ou a culpa pela prática delitiva a uma pessoa. Sendo assim um individuo imputável é aquele a quem pode ser atribuído algo.
Ensina Bittencourt:
O velho Carrara nos dava uma definição lapidar sobre imputabilidade, afirmando que “A imputabilidade é o juízo que fazemos de um fato futuro, previsto como meramente possível: a imputação é o juízo de um fato ocorrido. A primeira é contemplação de uma ideia; a segunda é o exame de um fato concreto. Lá estamos diante de um conceito puro; aqui estamos na presença de uma realidade”. Imputabilidade é a capacidade de culpabilidade, é a aptidão para ser culpável. Como afirma Muñoz Conde, “quem carece desta capacidade, por não ter maturidade suficiente ou por sofrer de graves alterações psíquicas, não pode ser declarado culpado e, por conseguinte, não pode ser responsável penalmente pelos seus atos, por mais que sejam típicos e antijurídicos”. Imputabilidade não se confunde com responsabilidade, que é o principio segundo o qual a pessoa dotada de capacidade de culpabilidade (imputável) deve responder por suas ações. Aliás, também nesse particular, foi feliz a Reforma Penal de 1984, ao abandonar a terminologia responsabilidade penal, equivocadamente utilizada pela redação original do Código Penal de 1940[19].
Desta forma, a imputabilidade é concentrada na capacidade de entendimento e autodeterminação do agente quanto ao caráter ilícito do injusto penal. Nucci quando discorre sobre a imputabilidade, ensina que:
É o conjunto das condições pessoais, envolvendo a inteligência e vontade, que permite ao agente ter entendimento do caráter ilícito do fato, comportando-se de acordo com esse conhecimento. O binômio necessário para a formação das condições pessoais do imputável consiste em sanidade mental e maturidade. Se o agente não possui aptidão para entender a diferença entre o certo e o errado, não poderá pautar-se por tal compreensão e terminará, vez ou outra, praticando um fato típico e antijurídico sem que possa por isso ser censurado, isto é, sem que possa sofrer juízo de culpabilidade[20].
O Código Penal em seu artigo 26[21] discorre que há isenção de pena para o agente que por doença mental ou desenvolvimento penal incompleto ou ainda retardo mental, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se em sintonia com esse entendimento. Diante disso, em interpretação contrário sensu, o artigo traz a exigibilidade de entendimento pleno quanto a ilicitude do ato para efeitos de imputabilidade. Destarte, só há entendimento quando o sujeito tem estrutura psíquica suficiente para sua autodeterminação, eis que o Código traz a possibilidade de inimputabilidade quando não há pleno discernimento entre o certo e o errado, e há falhas no que se refere à subsunção do fato à norma prevista no ordenamento.
Inexistência de inimputabilidade-TJRJ: “Se o laudo de exame de sanidade mental atesta que o agente possuía plena capacidade de entender o caráter criminoso do fato que lhe é imputado, e que ao tempo da ação ou omissão, não era portador de doença mental, a ponto de apresentar desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não há que se acolher à alegação de inimputabilidade penal” (RT 750/698)[22].
A imputabilidade deve ser apurada no tempo da ação, no momento da prática e consumação do crime. Desta forma, o indivíduo deve estar com sua mentalidade preservada para que possua a capacidade de escolha e saber que a prática delituosa vai contra os mandamentos expressos na norma penal.
A imputabilidade pode ser definida como a aptidão do indivíduo para praticar determinados atos com discernimento, que tem como equivalente a capacidade penal. Em suma, é a condição pessoal de maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e determinar-se segundo este entendimento[23].
O Código Penal foi extremamente claro no que se refere a imputabilidade penal, sendo que só será imputável algum ilícito àquele que tenha plena consciência sobre a ilicitude do fato e possa se determinar quanto ao seu impedimento.
5 Da inimputabilidade penal
O Código Penal prevê que será inimputável quem for inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato e não se autodeterminar, ou seja, não for capaz de controlar suas ações de acordo com o seu entendimento. Segundo Fuhrer:
Inimputável é aquele que não pode ser responsabilizado pelo crime que praticou. Ou seja, embora tenha cometido crime, é isento de pena. Neste caso, ao invés da pena, o agente é submetido a uma medida de segurança[24].
No mesmo sentido ensina Damásio:
Para que seja considerado inimputável não basta que o agente seja portador de “doença mental, ou desenvolvimento mental incompleto ou retardo”. É necessário que em consequência desses estados, seja “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento”(no momento da conduta)[25].
O estado de inimputabilidade do agente é traçado sobre a ótica dos critérios biológicos, psicológicos e biopsicológicos (ou misto), sendo o último adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Sobre o ponto de vista biológico, é levado em consideração a causa e não o efeito. Está expresso no fato de que o agente possuindo doença mental ou desenvolvimento mental incompleto, ou ainda retardo, tem diretamente o entendimento do ilícito penal afetado.
Sobre o ponto de vista psicológico, leva-se em conta a capacidade de entendimento do ilícito penal no momento de cometimento do fato, vislumbrando-se se havia essa possibilidade de entendimento. As causas patológicas não são levadas em consideração nesse sistema. É levada em consideração se o agente no momento do crime estava com as faculdades mentais sadias ou perturbadas. Eis que, se no momento, a mentalidade encontrava-se comprometida, influenciando diretamente na inteligência e vontade, o agente enquadra-se na figura da inimputabilidade.
Ainda, sobre o ponto de vista biopsicológico, adotado pelo Código Penal Brasileiro, consequentemente unindo os sistemas anteriores, o conceito de inimputabilidade está sedimentado sobre a ideia de que, o agente que em decorrência de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto no momento do crime não possui capacidade plena de compreensão da ilicitude do fato ou está falha a capacidade de determinação. Na lição de Bitencourt:
No entanto, em se tratando de sanidade mental, a questão é mais complexa, porque, além de não ser mentalmente são ou não possuir desenvolvimento mental completo, por doença ou perturbação mental, é necessária a consequência desse distúrbio (sistema biopsicológico). Na verdade, exige-se, em outros termos, que tal distúrbio—doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado---produza uma consequência determinada, qual seja, a falta de capacidade de discernir, de avaliar os próprios atos, de compara-los com a ordem normativa. O agente é incapaz de avaliar o que faz, no momento do fato, ou então, em razão dessas anormalidades psíquicas, é incapaz de autodeterminar-se. Devem reunir-se, portanto, no caso de anormalidade psíquica, dois aspectos indispensáveis: um aspecto biológico, que é o da doença em si, da anormalidade propriamente, e um aspecto psicológico, que é o referente à capacidade de entender ou de autodeterminar-se de acordo com esse entendimento[26].
É de se frisar que apenas a ocorrência de doença não isentará de pleno o agente da pena. Há necessidade de que em decorrência dessa doença não haja por parte do agente capacidade de compreender a ilicitude do fato, e não haja também capacidade para optar entre parar ou continuar o ato.
Inimputabilidade por esquizofrenia-TJSP: “Os esquizofrênicos não escolhem nenhuma classe de delitos e cometem mesmo os que demandam meditação e refinamento na execução. Podem agir com certa habilidade em sua prática, mas na verdade, não possuem condições e domínio para aquilatar quanto a ilicitude do ato (RT 568/260). TJBA: “Se os peritos concluírem que o acusado, á época do delito encontrava-se acometido de esquizofrenia que o tornara portador de uma periculosidade média, não podendo entender o caráter criminoso de seus atos e determinar-se de acordo com tal entendimento, presentes estão as condições de inimputabilidade prevista no artigo 26 do CP.” (RT 582/396)[27].
De acordo com as doutrinas e entendimento jurisprudenciais, percebe-se a adoção do sistema biopsicológico para os casos de inimputabilidade, não bastando para tais casos apenas a doença mental, mas sim a doença mental como agente influenciador do fato criminoso.
6 Da semi-imputabilidade penal
O artigo 26 do Código Penal, em seu parágrafo único se refere às pessoas que a doutrina considera como semi-imputáveis, pessoas da zona fronteiriça entre a normalidade e anormalidade mental, ou ainda pessoas que se encontram entre o limite da loucura e da sanidade.
Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente em virtude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento[28].
No conceito de Bitencourt:
Entre a imputabilidade e a inimputabilidade existem determinadas gradações, por vezes insensíveis, que exercem, no entanto, influência decisiva na capacidade de entender e autodeterminar-se do indivíduo. A rigor, essa questão não deveria ser tratada entre as causas que excluem a culpabilidade, na medida em que apenas a diminuem[29].
No mesmo sentido:
[...] entre a doença mental e a normalidade psíquica existe uma zona intermédia ocupada por indivíduos fronteiriços e semi-responsáveis, que exige um tratamento normativo próprio, por parte do Direito Penal. Surge, assim, a imputabilidade diminuída, a qual atinge aquelas pessoas em que as perturbações psíquicas tornam menor o poder de autodeterminação e mais fraca a resistência interior à prática do crime[30].
A semi-imputabilidade é uma causa de redução da pena facultativa e não obrigatória. Diante da menor culpabilidade durante a atuação típica, a redução se expressa como uma consequência penal, devido ao discernimento de escolha diminuído. O parágrafo único verifica que a pena “poderá” ser reduzida. No entanto a doutrina interpreta a faculdade como sendo dever do juiz. Nesse sentido:
Não haveria razão para se esclarecer a redução mínima se pudesse ser nenhuma. Ademais, como ocorre invariavelmente quando o legislador penal emprega o termo “pode”, entende-se que se trata de direito do réu, não da faculdade do juiz[31].
É de se frisar que o limite entre a imputabilidade penal e a inimputabilidade não se nota facilmente. O limite entre a culpabilidade plena e a culpabilidade diminuída contida no parágrafo unido do artigo 26 enseja um problema jurídico-criminal.
TJMG: “Quando a anomalia mental do réu não exclui, mas apenas reduz a capacidade de entender o ilícito ou de se determinar segundo tal entendimento, sua responsabilidade diminuída não constitui causa excludente de culpabilidade. Assim inadmissível sua absolvição sumária, devendo prosseguir o processo até a realização do Júri Popular, oportunidade em que deverão decidir os jurados também sobre a inimputabilidade ou sobre a imputabilidade restrita do agente” (RT 621/348)[32].
7 Das penas e medidas de segurança
A pena deverá ser imposta aquele que possui capacidade para discernir o certo do errado e se comportar conforme esse entendimento. Trata-se de possibilidade de pessoa imputável, a qual compreende o caráter ilícito do fato. Damásio ensina que a pena é sanção imposta pelo Estado, mediante ação penal, ao autor de uma infração (penal), como retribuição de seu ato ilícito, consistente na diminuição de um bem jurídico, e cujo fim é evitar novos delitos[33].
Tal sanção imposta pelo Estado tem a finalidade de prevenir novos crimes e de retribuir o delito perpetrado. O caráter preventivo da pena possui quatro enfoques de acordo com Guilherme de Souza Nucci:
[...] a) geral negativo, significando o poder intimidativo que ela representa a toda sociedade, destinatária da norma penal; b) geral positivo, demonstrando e reafirmando a existência e eficiência do Direito Penal; c) especial negativo, significando a intimidação ao autor do delito para que não torne a adir do mesmo modo, recolhendo-o ao cárcere, quando necessário e evitando a prática de outras infrações penais; d) especial positivo, que consiste na proposta de ressocialização do condenado, para que volte ao convívio social, quando finalizada a pena ou quando, por benefícios, a liberdade seja antecipada[34].
Em hipótese contrária, quando não há capacidade de compreensão da ilicitude do fato, estamos diante de um inimputável, sendo necessária a aplicação de medida de segurança.
Medidas de segurança são instrumentos utilizados pelo Direito para a defesa da sociedade contra potencial ofensivo da ordem jurídica inerente aos indivíduos considerados, com base em um determinado ordenamento, como “perigosos” ao convívio social, e visam basicamente a remoção dessa periculosidade, bem como a inocuização de tais indivíduos[35].
No mesmo sentido:
Só está sujeito à aplicação de medida de segurança aquele que não alcança a plena consciência da ilicitude ou, detendo-a, não consegue se portar de acordo com a sua livre vontade. Nestas condições, impor qualquer aspecto aflitivo, peculiar das penas, constituiria ignomínia ímpar, alem de grosseira monta[36].
A medida de segurança será aplicável em casos de comprovação da inimputabilidade, ou ainda em casos de semi-imputabilidade, quando há necessidade de tratamento especial curativo como forma da substituição da pena.
A pena é estabelecida de modo exato, proporcionalmente à culpabilidade do agente, agindo como uma espécie de castigo ou sanção, assentados sobre um juízo de reprovação no que se refere ao delito.
Já a medida de segurança, funciona como outra forma de sanção penal imposta pelo Estado. Sua principal finalidade é afastar o criminoso do convivio social em virtude de sua periculosidade. Nesse sentido ensina Ribeiro:
A pena conservava, assim, o seu caráter aflitivo, retributivo e proporcional à gravidade do crime, fundamentando-se na culpabilidade e, portanto, tendo como pressuposto a imputabilidade pessoal, enquanto a medida de segurança, instituto voltado para a prevenção especial, ao menos em tese nada conteria de retribuição e aflição, fundamentando-se na periculosidade do agente, que poderia ocorrer tanto em imputáveis como em inimputáveis, e tendo por objetivo a supressão dessa periculosidade mediante a submissão das diferentes espécies de indivíduos perigosos às diversas modalidades de tratamento curativo[37].
No que se refere à aplicação da pena ou medida de segurança, o atual Código Penal aplica o sistema “vicariante”, sendo interpretado como sistema unitário. Aplica-se somente a pena, ou somente a medida de segurança, não sendo permitido a aplicação conjunta da pena e da medida de segurança. Existem atualmente duas formas de aplicação de medida de segurança: aos que cometem crimes punidos com pena de detenção, aplica-se a medida de segurança ambulatorial; aos que cometem crimes com pena de reclusão aplica-se a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico.
A redação do artigo 98 do Código Penal prevê que em casos especiais, quando o indivíduo semi-imputável necessita de tratamento especial, a pena privativa de liberdade reduzida em um a dois terços, poderá ser convertida em medida de segurança, com internação em Casa de Custódia. Desta forma:
Verificada a periculosidade do agente e a possibilidade de tratamento curativo, recomendável é a substituição da pena pela medida de segurança, ainda que em recurso de defesa. Substituída a pena pela medida de segurança, produzirá esta todos seus efeitos, passando o sentenciado, como inimputável, a submeter-se às regras previstas pelos arts. 96 a 99, inclusive quanto à medida de segurança e ao tempo mínimo para realização de exame pericial[38].
O artigo 98 do Código Penal além de mencionar a substituição da pena por medida de segurança em caso de eventual necessidade prevê também que o indivíduo estará submetido às regras do artigo 97 no que se refere à inimputabilidade.
Sendo imposta a medida de segurança, esta será por tempo indeterminado, fixando o juiz um prazo mínimo de duração, entre um a três anos. Superando-se o prazo mínimo de cumprimento da medida, haverá a verificação de periculosidade, realizada através de laudo psiquiátrico, sendo em média realizada compulsoriamente de ano em ano.
É de se frisar que na redação do parágrafo 1º do artigo 97 do Código Penal exige um perigo efetivo através de uma periculosidade real, como por exemplo, a possibilidade de cometer novos delitos. Diante da evidente periculosidade de um agente exige-se continuidade da medida de segurança:
Para que o paciente continue internado não basta a probabilidade de que volte a delinquir, que se traduz na periculosidade real, concreta. É necessário que o perigo de novos crimes seja de tal maneira sério e grave que desaconselhe o risco da desinternação. Como em toda defesa a medida de segurança é precipuamente uma medida de defesa social, é imperativo que haja uma certa proporcionalidade entre o perigo e tratamento. É evidente que o agente propenso exclusivamente a pequenos furtos não ostente a mesma periculosidade que o serial killer. E, aqui, falamos de gravidade real para a sociedade[39].
No que se refere ao julgamento dos assassinos em série, não há uma posição adequada na atual legislação penal. É de se frisar que o desajuste não está relacionado à imputação de responsabilidade penal. O serial killer dever ser julgado como um imputável, eis que sua capacidade de autodeterminação e seu intelecto são perfeitos. Destarte, sabe direcionar suas ações conforme seu grau de entendimento, e o serial killer, entende perfeitamente o caráter ilícito de seus atos, como já foi elucidado nos capítulos anteriores. No julgamento de Francisco de Assis Pereira, o “Maníaco do Parque”, houve grande discussão quanto à imputabilidade do réu, dado a inconclusividade dos laudos psiquiátricos acostados aos autos, momento em que o depoimento de uma das vítimas sobreviventes foi conclusivo para a comprovação da plena imputabilidade do assassino.
[...] Pois foi o que aconteceu com essa vítima, a S.A.N, que depondo em juízo afirmou textualmente “quando eu vi que ele estava preparado para o estupro, eu falei: “você não vai fazer porque sou portadora do vírus HIV, se você concluir isso nós dois vamos ser HIV no Brasil. Você quer? “Não quero”. Aí ele não me estuprou.”. Preciso então de um cientista para provar o óbvio? Será que aqueles psiquiatras sabem mais neste aspecto do que aquela moça que não tem cultura mas que é o retrato de nossa gente, do povo, contra quem mais diretamente a criminalidade impõe as suas consequências? Então como disse S., no momento em que ela afirma estar com HIV, ele recua e não estupra. Portanto, ambos os elementos estão presentes, a capacidade de entendimento e a capacidade de autodeterminação[40].
No entanto, voltando-se à discussão ora levantada, vislumbra-se um desajuste no que se refere à aplicação e cumprimento da pena. Primeiramente, é completamente equívoco o julgamento de um assassino em série como um agente inimputável. Salvo os casos de assassinos desorganizados, estes portadores de doenças mentais, mas que representam número ínfimo das ocorrências de assassinatos, os assassinos organizados, aqueles que possuem transtorno de personalidade antissocial e personalidade psicopática, não figuram como inimputáveis. Ainda, no tocante à aplicação de penalidades, é mais que desajustado a aplicação de medida de segurança ao serial killer. Infelizmente, nota-se o grande desconhecimento quando ao instituto da medida de segurança.
Embora pareça ser a solução correta, a medida de segurança esconde perigos que não são notados de imediato. O serial killer não é um portador de doença mental, desta forma a medida de segurança, quando aplicada não é adequada eis que o assassino não é passível de tratamento psiquiátrico, sendo esse o primeiro motivo para a inadequação da aplicação. Como segundo motivo, durante o cumprimento da medida de segurança, ocorre a verificação de periculosidade, conforme parágrafos do artigo 97 do Código Penal. Sendo assim, são elaborados laudos psiquiátricos favoráveis ou não à desinternação do agente. Nesse ponto está instalado o problema, pois diante de um caso de aplicação de medida de segurança ao assassino serial, a possibilidade de que o mesmo seja desinternado e volte ao convívio social, podendo delinquir novamente, é altíssima. E não é rara essa possibilidade de retorno à sociedade, visto que assassinos em série em sua maioria possuem alto nível de persuasão, podendo enganar até mesmo profissionais capacitados, quanto á sua periculosidade. Ainda como um terceiro motivo, mesmo que não haja cessação da periculosidade atestada por laudo, o assassino ainda voltará ao convívio social. Conforme entendimento dos Tribunais brasileiros, a medida de segurança não deve ultrapassar o máximo de pena cominada em abstrato ao delito:
AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. MEDIDA DE SEGURANÇA. PRAZO MÁXIMO DE INTERNAÇÃO. TRINTA ANOS. APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DO ARTIGO 75 DO CÓDIGO PENAL. ATENÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA, PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE.1. Em atenção aos princípios da isonomia, proporcionalidade e razoabilidade, aplica-se, por analogia, o art. 75 do Diploma Repressor às medidas de segurança, estabelecendo-se como limite para sua duração o máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado, não se podendo conferir tratamento mais severo e desigual ao inimputável, uma vez que ao imputável, a legislação estabelece expressamente o respectivo limite de atuação do Estado[41].
No mesmo sentido:
PENAL. MEDIDA DE SEGURANÇA. LIMITE DE DURAÇÃO. PENA MÁXIMA COMINADAIN ABSTRATO AO DELITO COMETIDO. ORDEM CONCEDIDA.1. Fere o princípio da isonomia o fato de a lei fixar o período máximo de cumprimento de pena para o imputável, pela prática de um crime, e determinar que o inimputável cumprirá medida de segurança por prazo indeterminado, condicionando o seu término à cessação da periculosidade. 2. Em razão da incerteza da duração máxima da medida de segurança, está-se claramente tratando de forma mais severa o infrator inimputável quando comparado ao imputável, para o qual a lei limita o poder de atuação do Estado. 3. O limite máximo de duração de uma medida de segurança, então, deve ser o máximo da pena abstratamente cominada ao delito no qual foi a pessoa condenada. 4. Na espécie, o paciente foi condenado por tentativa de estupro, cuja pena máxima cominada é de reclusão de 6 anos e 8 meses. Não obstante, encontra-se internado há mais de 15 anos. 5. Ordem concedida para declarar extinta a medida de segurança aplicada em desfavor do paciente, em razão de seu integral cumprimento[42].
Ainda, recentemente o STJ editou a Súmula de nº 527, onde foi firmado o entendimento de que o tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado[43]. Nesse liame, não há dúvidas quanto à impossibilidade de julgar o serial killer como inimputável, seja pelo não enquadramento como doente mental, seja pela absurda possibilidade de aplicação de medida de segurança. Necessário é saber que medida de segurança não é prisão perpétua.
Há desajustes também, quando se julga um serial como um semi-imputável. Primeiro já fora elucidada a inadequadação da aplicação da medida de segurança, em casos de substituição da pena pela medida de segurança, na semi-imputabilidade. A outra hipótese é a da aplicação de redução de pena, prevista no paragrafo único do artigo 26 do Código Penal. Desta forma demonstra-se a absurda aplicação da semi-imputabilidade. Diante de crimes tão graves quanto assassinatos em série, reduzir a pena de um a dois terços é a forma mais lesiva contra a sociedade. Diante da redução, o assassino poderá sair do cárcere tão logo, pondo novamente a sociedade em risco diante da possibilidade de reincidência.
Por fim, há desajuste ainda no que se refere ao julgamento de um serial killer como imputável. Embora a classificação jurídico-penal adequada para um assassino em série, seja de um agente imputável, a aplicação da imputabilidade traz consequências problemáticas.
Primeiramente, o problema se refere à possibilidade de progressão de regime do agente. Os regimes compreendidos nos parágrafos do artigo 33 do Código Penal são o regime fechado, semiaberto e aberto. Como já demonstrado em todo o trabalho, não há possibilidade de regime brando para o cumprimento de pena por um assassino serial. Colocar esses agentes no regime semiaberto e aberto seria um risco potencial, dado ao contato do agente com a sociedade. No entanto, nossa legislação prevê a progressão de regime, direito do preso completamente assegurado. Para os crimes comuns a progressão se dá no cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena, conforme artigo 112 da Lei de Execuções Penais. Já para crimes hediondos tachados no rol da lei nº 8.072/90, e assemelhados, conforme artigo 2º, §2º a progressão se dá após cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena se primário, e 3/5 (três quintos) se reincidente. Diante do explicitado, mostra-se errônea e perigosa a aplicação da progressão de regime para um assassino serial.
Em segundo lugar, mesmo que se faça cumprir o serial killer, com a pena ao qual for condenando em sua plenitude, haverá real possibilidade de que o mesmo volte ao convívio social. O artigo 75 do Código Penal prevê 30 anos como o limite máximo de cárcere ao qual um agente possa ser submetido em nosso ordenamento. O parágrafo 1º do mesmo artigo reza que, diante de penas privativas de liberdade que ultrapasse 30 anos, deverá ser realizada a unificação das penas, para que se chegue ao quantum de 30 anos. Ainda a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XLVII, b, prevê a vedação as penas de caráter perpétuo. É de se frisar que a prisão perpétua é a solução mais adequada para assassinos em série, posicionamento que vem sido adotado em muitos países pelo mundo. Desta forma, a prisão perpétua funciona mais como uma forma de segregar o assassino da sociedade, impendido que o mesmo continue a perpetrar os seus crimes, do que como uma sanção punitiva do Estado. Nesse sentido:
Infelizmente no Brasil não temos a prisão perpétua, que seria a pena recomendável no presente caso. A legislação brasileira é um exemplo acabado de um perfeito atraso nesse particular, no combate à criminalidade. Na Alemanha, existe prisão perpétua, na França também, assim na Inglaterra e, salvo duas exceções que conheço – Portugal e Espanha-, todos os demais países da Europa a preveem. E a preveem em sua grande parte, também para casos como esse. Não necessitamos nem aludir à legislação norte-americana, que é bastante severa, e que o sujeitaria provavelmente à cadeira elétrica. Mas, no Brasil, a Constituição Federal veda a prisão perpétua, o que num caso assim é a rematada bobagem, porque colocá-lo em liberdade após vinte ou trinta anos ainda será perigoso, eis que ele é incorrigível aos olhos da psiquiatria[44].
Por fim, nada mais adequado para um assassino serial, do que a prisão perpétua, dado ao fato de que são seres irrecuperáveis, portadores de personalidade antissocial, que não aprendem com nenhuma forma de punição, e não absorvem regras sociais, delinquindo sempre que acham oportunidade, parando apenas quando estão presos ou mortos. É diante da apuração constatada durante todo o trabalho, não há punição adequada para um serial killer no sistema jurídico penal brasileiro.
CONCLUSÃO
Como se trata de um tema que gera bastante polêmica, as circunstâncias que envolvem assassinatos em série levantam diversas dúvidas. A personalidade desses agentes foi formatada por fatores de ordem biológicas, psicológicas e sociais, não havendo precisamente uma reposta quanto a real causa e motivação de seus crimes. São seres portadores de personalidade antissocial, deturpadores da ordem, plenamente capazes de se autodeterminarem e compreenderem o caráter ilícito de seus atos. Não possuem doença mental, no entanto, por serem portadores de personalidade antissocial, não são aptos para conviver em sociedade.
É indispensável perante a atitude criminosa de um serial killer, a discussão da aplicação de uma pena. Seria um ato hipócrita e de alta irresponsabilidade falar na ressocialização de um serial, sendo este um ser incapaz de arrepender-se de seus atos, e retornar ao convívio social sem que provoque uma diversidade de tragédias. É de extrema necessidade um aprofundado preparo dos profissionais competentes, para que se dê um adequado encaminhamento jurídico aos casos.
A realidade brasileira é desconfortável e desanimadora. De toda forma não há uma política adequada de julgamento dos serial killers. O que temos apenas são profissionais sem o mínimo de preparo para esse tipo de situação, uma justiça do ‘meio-termo’ e um sistema carcerário ineficaz e falido que não regenera ninguém, que dirá um indivíduo que tem personalidade antissocial. Isso nos leva a formular a convicção de que não há no Brasil um julgamento adequado ao assassino serial e também não há uma previsão positiva sobre uma possível mudança de quadro, já que um dos nossos maiores empecilhos está na retrógrada Constituição Federal de 1988.
A aplicação do direito penal e processual penal a indivíduos como assassinos seriais é um demasiado desafio, principalmente quanto à efetiva resposta repressiva e punitiva do Estado.