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Análise comparativa dos principais institutos probatórios da recente legislação sobre o crime organizado

Agenda 31/08/2016 às 01:22

O artigo em estudo objetiva esmiuçar a lei que regula a lida contra o crime organizado no ordenamento nacional e pensar criticamente os caminhos que o processo penal vem percorrendo contra este tipo de criminalidade, em comparação com o diploma anterior.

1.INTRODUÇÃO

Na metade de 2013 foi aprovada a lei 12.850, que tutelava a ação das instâncias repressivas estatais contra essa modalidade diferenciada da criminalidade, que sustenta verdadeiras industrias do ilícito por décadas a fio em nosso país. A orientação vinha do Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004, que internalizou em nosso direito o acordo firmado na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado, e finalmente conseguiu ter cogência um diploma legal com disposições consagradas pelo cotejamento das lutas contra a criminalidade organizada de outros países, algumas vezes até mais tradicionais e articuladas que as nossas próprias. A lei que vigia antes, por datar de 1995, encontrava-se em desarranjo com as tendências internacionais de combate a esse tipo de organização ilegal.
Adicionalmente, quando tratava das figuras de prevenção e repressão de atividades executadas por organizações criminosas, padecia de atecnias graves que forçaram a jurisprudência a desdobrar-se em exercícios de “criatividade interpretativa”, ferindo de morte os princípios da legalidade e da taxatividade. Seu próprio escopo de incidência estava disposto de forma a quase inutilizar o texto inteiro, visto que prescrevia gravoso e invasivo tratamento processual, com relação aos direitos individuais do réu, a “crimes resultantes de quadrilha ou bando”, tipo penais de somenos importância, cuja aplicação feriria o princípio da razoabilidade.
É curioso perceber tardamos a nos armar contra um fenômeno que assumiu o aspecto e tamanho que comumente associamos a ele já no início da década de 1970, com recrudescimento das ações e expansão das organizações criminosas do Rio de Janeiro e de São Paulo até sua cisão na década seguinte.  Possivelmente por esse motivo, por encararem nossos parlamentares a sua própria morosidade e o tempo perdido, aprovaram algo de tão questionável operacionalidade. 

2. INSTITUTOS DE PERSECUÇÃO PENAL AO CRIME ORGANIZADO CONSIDERADOS INDIVIDUALMENTE
0.1    COLABORAÇÃO PREMIADA
Parcela dos autores pensa a figura da colaboração premiada como semelhante à delação premiada, sendo diferente apenas o termo designador, um termo legitimador para algo controverso que já estava no ordenamento. A verdade é que um é proveniente do outro, não sendo, portanto, iguais. Estudaremos aqui se se trata de mero produto ou real avanço jurídico.
Na data de 3 de maio de 1995, foi perfeccionada a lei 9034/95, tratando da  utilização dos meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Perdeu vigência por conta do advento da lei 12.850/13, que julgava causa compulsória de diminuição de pena a delação de um dos réus do processo da organização criminosa. No bojo da lei 8072/90, a assim conhecida Lei dos Crimes Hediondos, os autores da lei foram mais sinceros ao escrever o texto legal: usaram o verbo “denunciar”, ao passo que na 9034/95, mascarava o instituto como colaboração voluntária, de forma a maquiar a presença vil de uma traição premiada no ordenamento jurídico. Em dezenove de julho daquele 1995 foi editada a lei 9.080/95, que punha à disposição do coautor ou partícipe de crime cometido contra o sistema financeiro nacional ou contra a ordem tributária e econômica nacional o instituto da delação, e às relações de consumo, também tanto em sede de autoria quando de participação. Aqui, deram ao estratagema o nome fantasioso de “delação espontânea”. Em 1998, surgiu a lei 9613/98, que dispunha “sobre os crimes de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei”. Disciplinava, igualmente, a diminuição de pena para o colaborador espontâneo. (MOREIRA, 2013, p. 45)
Há duas indicações da Lei 12.529 de 2011 que valem a atenção. Na primeira delas, o art. 86 estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, o qual tem estabelece  condições de prevenção e repressão àquelas infrações atentatórias à ordem econômica. A segunda indicação relevante é o estabelecimento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o qual pode realizar acordos com pessoas físicas que tenham realizado infração econômica  no caso de se dispuserem a colaborar de forma efetiva com as investigações e com decorrentes processos administrativos. Essa colaboração tem o objetivo de a) conhecer e identificar outros agentes envolvidos na infração; b) ter acesso a informações e documentos comprobatórios da infração notícia ou relativos à investigação. Esse acordo possibilitado pela lei pode determinar a suspensão do prazo prescricional e, inclusive, impedir o oferecimento da denúncia daqueles agentes que tenham anuído com o acordo de delação e dele se beneficiado (MOREIRA, 2013, p. 46). Essa previsão está presente no art. 87 dessa lei e aplica-se aos crimes tipificados na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que se refiram a atentado à ordem econômica. 
Tendo em vista o resgate acima, pode-se dizer que o acordo mencionado consiste no oferecimento de informações relevantes ao andamento do inquérito ou processo e recebimento, em troca, de benefícios, como redução de pena que seria a ele aplicada  - seja de natureza penal ou processual -, pelo réu ou investigado que anua com acordo mencionado. 
Há críticas a esse modelo de acordo feitas por autores como Rômulo de Andrade Moreira e José Carlos Dias Esses autores chegam a nomear esse acordo de “extorsão premiada”, uma vez que existe um defeito na própria origem do acordo realizado que é a fragilização da coerência interna do sistema punitivo e da retidão do ordenamento.

Se considerarmos que a norma jurídica de um Estado de Direito é o último refúgio do seu povo, no sentido de que as proposições enunciativas nela contidas representam um parâmetro de organização ou conduta das pessoas, definindo os limites de suas atuações, é inaceitável que esse mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada em flagrante incitamento à transgressão de preceitos morais intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo. Como fica o homem de pouca ou nenhuma cultura, ou mesmo aquele desprovido de maiores princípios, diante dessa permissividade imoral ditada pela própria lei? (...) A traição demonstra fraqueza de caráter, como denota fraqueza o legislador que dela abre mão para proteger seus cidadãos. A lei, como já foi dito, deve sempre e sempre indicar condutas sérias, moralmente relevantes e aceitáveis, jamais ser arcabouço de estímulo a perfídias, deslealdades, aleivosias, ainda que para calar a multidão temerosa e indefesa (MOREIRA, 2013, p. 48).


    Esse posicionamento não recebe nosso acolhimento, apesar de ser controverso o instituto. Isso porque o raciocínio de que a traição sempre será reprovável e deve ser mantida afastada dos instrumentos legais de atuação estatal está ligada a ideia de que a lealdade deve ser buscada em qualquer situação. Ora, disso decorre também que a lealdade seria desejável, inclusive com o propósito de manutenção de organizações criminosas. Sequer o referido “homem de pouca ou nenhuma cultura” entraria em acordo com essa ideia se conhecesse todas as consequências dessa crítica à delação premiada, quais sejam, a manutenção de atos ilícitos e danosos à sociedade. 
Vale pontuar também que não encontra respaldo o argumento de que o abrandamento da pena seria uma forma de incentivar infrações na sociedade. Esse argumento consiste na fragilização da prevenção geral pela suposição de que facilmente se mitigaria a repressão penal mediante a delação premiada. Num aspecto, se considerarmos que para determinados crimes, como são os financeiros, pode parecer que se incentivam os agentes a realizarem o ato criminoso, uma vez que se veem diante da possibilidade de ver abrandada a resposta penal. De um outro ponto de vista, não é possível aplicar a mesma compreensão para um agente criminoso que integre uma organização como o Comando Vermelho. Essa diferença fica evidente porque é de amplo conhecimento que a vida de pessoas delatoras desses grupos está em alto risco, expostas a represálias violentas, o que não pode nem se comparar a prejuízos patrimoniais. É evidente que não cabe nas avaliações de um integrante desse tipo de organização criminosa a ideia de que bastaria delatar informações sobre a organização ao Estado para se ver poupado da força punitiva estatal, tendo em vista que estaria sujeito a represálias ainda mais graves, se anuísse com o acordo de delação premiada. É imperativo nesse tipo de organização criminosa que a lei do silêncio possui força inafastável e aplicabilidade exemplar. 
Frente a isso, relevantíssimo é o destaque de Rômulo de Andrade Moreira, sobre a Lei12.850/13, de que o Estado não tem a capacidade de propiciar a segurança do delator e de sua família diante dessa situação de grave ameaça a sua vida (2013, p. 46).
    Ademais, interessante pontuar que não é rigorosamente necessário que o delator aponte demais agentes para que seja beneficiado pelas previsões da Lei nº 12.850/13. Dizem os incisos IV e V do art. 4º, o qual trata dos critérios de eficácia da parceria com o processo, que poderia a contribuição apontar a localização de possíveis vítimas, documentos probatórios, ou os próprios bens, resultantes da atividade ilícita, por exemplo. (CUNHA, 2014, p.38)
Somado a isso, verifica-se uma incongruência importante que pode ser considerada como decorrente de dispositivos permissivos da delação em conjunto com as leis que foram citadas acima. Na análise, por exemplo, dos crimes fiscais, a Lei nº 9.249/95, em seu art. 34, determina a extinção de punibilidade de crimes fiscais em razão da realização de retorno da quantia sonegada aos cofres públicos. Isso se a devolocão ocorresse antes do recebimento da denúncia. No período do governo Lula, a Lei nº 10.684, em seu art. 9º, determina a suspensão da pretensão punitiva estatal em relação aos     crimes presentes nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90, no art. 168-A, que trata da apropriação indébita previdenciária, e 337-A, que trata da sonegação de contribuição previdenciária, ambos do Código Penal. Essa suspensão se aplica no decorrer do período no qual a pessoa jurídica envolvida com os agentes dos referidos crimes ainda estiver incluída no regime de parcelamento. Outra inovação da lei foi a extinção de punibilidade em crimes dos arts. mencionados, desde que a pessoa jurídica vinculada ao agente realizar a quitação total de débitos decorrentes de contribuições sociais e tributos.  
Por outro lado, é interessante a constatação de que não existe favor legal assemelhado aos autores de crimes como o do art. 155, que descreve o furto, do 168, caput, que descreve a apropriação indébita e do art. 171, que descreve a figura do estelionato, todos do Código Penal. Da mesma maneira, ocorre com outros crimes patrimoniais sem uso de violência. Essa constatação leva-nos à compreensão da visão de mundo do legislador e do e do executivo. Em relação à teoria do bem jurídico, para o establishment, muito mais gravoso será a prática de furto ou de estelionato que a tão comum prática de sonegação perante o fisco de tributos e contribuições sociais (STRECK, 2013, p.18).
No mesmo sentido, existem similares ou variantes da delação premiada às quais são atribuídos outros nomes e recebem, inclusive, incrementos, como será visto no caso da figura de colaboração premiada presente na Lei 12.850/13. Essa lei se volta para crimes cujo bem afetado possui dimensões muito mais vultosas de forma que praticamente tornam-se inatingíveis por agentes que intentem contra ele dissociado de organizações mais complexas.  Ou seja, o agente que intenta contra um bem jurídico dessa monta não está assistido pelo art. 288, do Código Penal, referente à antiga figura de quadrilha ou bando e hoje nomeadas associações criminosas. Da mesma maneira, não abarca aqueles delitos mais comuns se praticados em coautoria e participação. Esses são bons exemplos de ação da seletividade penal no nível de elaboração e aprovação de leis, e não apenas no momento de aplicação da lei que se dá no momento de apreciação pela autoridade judiciária ou no sistema carcerário, o que pode sugerir àqueles externos a área    Passemos à análise da colaboração premiada como está descrita pela Lei 12.850/13.
Art. 4o  O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:

    Verifica-se que a colaboração premiada corresponde tanto a uma colaboração preventiva, pois evita que futuras infrações se consumem e fornece condições para que o agente auxilie concretamente a polícia na coleta de provas contra demais agentes, quanto a uma colaboração repressiva, pois possibilita também que se realizem prisões. Ela pode ocorrer em qualquer fase, seja processual, seja pré-processual, englobando as fases investigatória, processual e de execução. Dessa forma, apresenta-se como um instituto mais versátil que a delação premiada, instituto mais antigo em nosso ordenamento. Essa versatilidade se deve ao fato de que, mais que o mero fornecimento de informações, o colaborador também pode participar ativamente, podendo integrar diligências para produção de provas de forma a auxiliar o juízo ou delegado.
A título de exemplificação histórica, é bastante conhecido o caso do direito italiano que teve a adoção ao instituto incentivada nos anos 1970 com objetivo de combate ao terrorismo. Foi reforçada a sua adoção, ainda, nos anos 1980 e 1990 frente ao contexto da Operação Mãos Limpas de enfrentamento ao crime organizado da forma clássica daquele país, as máfias. Assim, o fenômeno do pentitismo na Itália ampliou a possibilidade de visão das autoridades estatais sobre as condições de operatividade das Máfias o que foi algo inédito. Por essa razão, houve uma intensa ampliação da estrutura legislativa, assim como a criação nunca antes vista, o que determinou a ampliação de sua estrutura legislativa e a criação de uma estrutura administrativa para a sua gestão operativa e logística (Setor de Colaboradores da Justiça). De outro giro, é importante rememorar os reveses do costume de criar leis sob a influência de um êxito fresco ou um insucesso alarmante: deu-se a explosão de delatores buscando as benesses da delação, e, curiosamente, muitos acusados passaram a se entregar às autoridades clamando ter uma projeção dentro da máfia que, na realidade, andavam longe de ter. (SILVA, 2014, p. 52).
    A figura que estamos estudando, sem dúvida alguma, tornou-se uma constante na lida contra o crime organizado em todo o país. A convenção realizada pela ONU para o combate da criminalidade organizada transnacional (em quinze de dezembro do ano dois mil), confirmada em sede do direito nacional pelo Decreto nº cinco mil e quinze de dois mil e quatro, dispõe no seu art. vinte e seis:
Cada Estado Parte tomará as medidas adequadas para encorajar as pessoas que participem ou tenham participado em grupos criminosos organizados: a) A fornecerem informações úteis às autoridades competentes para efeitos de investigação e produção de provas, nomeadamente: I) A identidade, natureza, composição, estrutura, localização ou atividades dos grupos criminosos organizados; III) As conexões, inclusive conexões internacionais, com outros grupos criminosos organizados; III) As infrações que os grupos criminosos organizados praticaram ou poderão vir a praticar; b) A prestarem ajuda efetiva e concreta às autoridades competentes, suscetível de contribuir para privar os grupos criminosos organizados de seus recursos ou do produto do crime.
    
A lei 12850/13, visivelmente, adotou as disposições internacionais seu texto. As benesses fornecidas ao pentiti é que foram decididas diferentemente pelos parlamentares internos: se durante a investigação, é possibilitada a discricionariedade na propositura da própria ação penal ; durante a fase judicial foram disponibilizadas a diminuição da pena privativa de liberdade e a figura do perdão judicial, acrescidos da suspensão do processo por seis meses. Na fase da execução, por fim, a contrapartida para o condenado é a diminuição da pena em até metade ou a progressão de regime alheia a seus requisitos objetivo: o tempo de regime e o bom comportamento carcerário.  
    A cabeça do artigo quarto, que trata da colaboração no âmbito do processo, enumera pressupostos, para a validade do uso do instrumento em tela: os pressupostos da efetividade e da espontaneidade, também conhecida como voluntariedade. 
Esta configura-se na disposição pessoal para a contribuição fornecida pelo réu, disposição essa que deve guiar a atuação do delegado e do promotor, que devem evitar absolutamente coagir o polo passivo a delatar. Para evitar a perpetuação de ilicitudes no acordo, este deve ser enviado ao juízo, com o que declarou o próprio colaborador e uma xerox da investigação. Se apresentarem higidez, será homologado pelo juiz (CUNHA, 2014, p. 50)
    A priori, é louvável que haja intervenção do Judiciário na fase pré-processual, velando pela saúde legal do procedimento. No parágrafo décimo quarto temos a obrigação do acusado de, aceitando delatar, renunciar ao direito constitucional ao silêncio e o dever de não mentir; direitos de envergadura constitucional (não-autoincriminação). Tal fato exige controle judicial. O preceito do artigo 129 da CF/88 deve ser lida em acordo com o que diz o artigo quinto, LIV, que exige o respeito ao devido processo legal para aplicação de artifícios de tolhimento de liberdade (GOMES, 1997, p. 98).  Teoricamente, o juiz deve se restringir a analisar o preenchimento os critérios legais do acordo, como preleciona o parágrafo oitavo do artigo quarto da lei.
    Outro poder do juiz é o de, para homologar o acordo, ouvir sigilosamente o colaborador na presença de seu advogado. O diploma legal é ainda mais ousado ao dispor que, mesmo quando premiado com o perdão judicial ou mesmo o não oferecimento da denúncia, o delator pode ainda ser ouvido pelo juiz ao longo do processo. Devemos ter atenção para diferenciar a inquirição com o objetivo de analisar a lisura do acordo da inquirição para a colheita de provas; não obstante, é bem possível que essa fronteira tenha sido abandonada ao deixar o delator à disposição do juízo, sem qualquer ligação com a iniciativa do Ministério Público, titular da poder de acusação estatal, num momento em que ela já foi agraciada com a benesse que é a contrapartida da colaboração que prestou: a saber, seu não envolvimento posterior com o processo. Ele simplesmente não será mais parte do evento penal. A que título ele será convocado de volta para prestar esclarecimentos?
No processo penal brasileiro, não há mais tantos resquícios do sistema inquisitório, principalmente depois da não recepção dos artigos que ainda dispunham casos de iniciativa penal do juiz, antes da CF/88 . Esta dispôs com clareza que as funções ao longo do procedimento criminal serão divididas entre as polícias investigativas, que são a polícia federal e as polícias civis, nos artigos 144 e §§, ao passo que a faculdade de acusar e iniciar, portanto, a ação penal, cabe apenas ao Ministério Público, artigo 129. Quanto ao judiciário, na seção a ele dedicada, usa o texto o termo jurisdição, ou a ação de “pronunciar o direito” (GOMES, 1995, p. 106). FERRAJOLI (1990, p. 574 e ss.), o processo de acusação, em oposição ao de inquisição, é definido pela completa separação entre as funções de acusação e julgamento, a proporcionalidade entre os poderes processuais de quem defende e de quem acusa e transparência dos atos; seu oposto se dá na presença da iniciativa judicial na colheita de provas, as capacidades diferentes da acusação e da defesa e o sigilo dos atos processuais.
Tal previsão, anteriormente comentada, do juiz poder inquirir provas de uma pessoa que nem é mais parte da lide, formalmente, flerta com o ultrapassado e perigoso processo inquisitório, visto que o juízo já está psicologicamente mais comprometido com a acusação, afinal já abandonou a jurisdição para procurar provas de algo que julga existir. Para legitimar a inquisição no nosso processo penal, lembremos que depois de colher essa prova sem justificativa pública, o juiz, segundo o artigo 83 (Código de Processo Penal), será o prevento, (paradoxalmente) por já ter atuado na causa  antes da denúncia. Concordamos, na esteira de Rômulo de Andrade Moreira, que ao invés de chamar a competência, em sede de um Estado Democrático de Direito, deveria mesmo impossibilita-la, tendo em vista que certamente prejudica a imparcialidade do juiz. Caminharíamos para uma situação ideal de um magistrado diferente para as duas fases, pré-processual e processual:
Observe-se, por exemplo, que para se decretar a prisão preventiva o Juiz deve obrigatoriamente, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, admitir a “existência do crime e indício suficiente de autoria”, o que já significa um posicionamento quanto ao mérito da causa penal e, por conseguinte, não deixa de ser um pré-julgamento. Não por menos que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos vem decidindo reiteradamente pela exclusão do julgador que, de alguma forma, interferiu na fase investigatória, segundo nos informa Aury Lopes Júnior. Para esse autor, ’sem dúvida, chegou o momento de repensar a prevenção e também a relação juiz/inquérito, pois em vez de caminhar em direção à figura do juiz garante ou de garantias, alheio à investigação e verdadeiro órgão suprapartes, está sendo tomado o caminho errado do juiz instrutor. (MOREIRA, 2013, p.55)

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Outra discussão sobre o corpo dessa lei é o parágrafo 14 do artigo quarto, dispondo que nas declarações que disponibilizar, o delator abdicará do direito ao silêncio e comprometer-se-á, legalmente, a não mentir. É, no mínimo, estranho em termos de sistema jurídico, que norma inferior à constituição obrigue à renúncia de direito de envergadura constitucional. É passível de renúncia, por óbvio, em caso de livre vontade do réu; a não autoincriminação solicita que entendamos o trecho estudado com a seguinte redação: dos depoimentos que prestar, o colaborador poderá renunciar, na presença de seu defensor, ao direito de silêncio. (MOREIRA, 2013, p. 51). Até porque a qualidade do que foi dito em sede da delação, a verossimilhança, é medida em outro momento que é a consecução dos objetivos mostrados no artigo que aponta os critérios da eficácia do instituto. Voltemos, pois, à cabeça do artigo, para analisar os critérios.
A figura da efetividade é a mensuração da frequência e presteza do auxílio do réu ao Estado investigador, estando sempre disposto a contribuir quando novas demandas probatórias surgirem. Deve o beneficiário da medida aparecer diante do delegado e do promotor todas as vezes que for instado a tal, acompanhar diligências quando for necessário e não prejudicar sua segurança, posto que o crime organizado é conhecido por sua capacidade de represália. Um juiz atento deve observar especialmente esse critério, tendo em vista que a vagueza dos critérios de mensuração da qualidade da colaboração pode permitir que o promotor alegue descumprimento do acordo e fira o acordado com o colaborador (SILVA, 2014, p.58).
Por último, eficácia consiste nos frutos provenientes do uso da figura constante no artigo quarto. É a parte mais esmiuçada pelo novel diploma, com um rol exaustivo de objetivos a serem concluídos com base na colaboração dada caso o colaborador queira gozar das benesses do acordo.
O que diz o artigo quarto: 
I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

    Não são cumulativos, cada um deles é suficiente para que reste satisfeito o requisito estudado. A crítica automática de que o colaborar é imoral também não tem espaço, pois há fins que são apenas prevenção de lesão ao bem jurídico e de fácil medição pelo legislador, em caso de sucesso da medida. É indicativo de perícia legislativa, pois diminui a margem discricionária judicial sem cristalizar a versatilidade da figura.
    Depois de analisados os critérios para sua propositura constantes na lei doze mil oitocentos e cinquenta, passemos, em um transcurso lógico, à legitimidade ativa da propositura da ação. O parágrafo segundo do artigo quarto diz que o promotor, a qualquer tempo, ou o delegado (com aquiescência do parquet), no inquérito, poderão pedir ao juiz o perdão judicial para o réu da colabaração, mesmo que esse benefício não participasse inicialmente da proposta de colaboração, sendo aplicável, no que fosse conveniente, o artigo vinte e oito.
    A disposição da lei 12850/13 contrariou o discutido no anteprojeto, que previa, mais acertadamente, que apenas o promotor poderia oferecer o acordo, visto que este dispõe do direito de ação na esfera penal, poder que compete constitucionalmente ao membro do Ministério Público. Na versão que vige agora, a autoridade policial manuseia um poder que não é seu? Fulmina a lei, pois, vício de inconstitucionalidade, ainda que o promotor precise dar opinião quando a propositura vem do delegado.  Opinião que, no caso, tem a natureza de parecer somente, não vinculativo do juiz em sua atividade homologatória. Ideal seria que o delegado apenas representasse ao Ministério Público, que negociaria o acordo na presença do defensor do colaborador e depois remeteria o avençado ao juiz (SILVA, 2014, p. 60).
    Da forma que a lei está, é possível que uma aberração ocorra: o delegado propõe o acordo, o juiz acata e homologa e o promotor, tendo emitido parecer negativo, fica a ver navios. Eduardo Araujo da Silva escreve que seria a hipótese de autoridade policial bloquear a possibilidade de sanção criminal por cima da discordância do titular da ação pública. Em situação semelhante, quando o Supremo Tribunal Federal julgou a correção do artigo 89 da 9.099/95 (Juizados Especiais), o acordo proposto pelo próprio juiz para suspensão condicional do procedimento, de ofício, foi decidido que não cabe a outro órgão dispor da acusação (2014, p. 60).
    Passemos aos parágrafos primeiro e segundo, que falam de regras especiais para o sigilo dos autos onde houve colaboração. Assim:

§ 1o As informações pormenorizadas da colaboração serão dirigidas diretamente ao juiz a que recair a distribuição, que decidirá no prazo de 48 (quarenta e oito) horas.§ 2o  O acesso aos autos será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das investigações, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento.
    
    O escrito acima confronta-se frontalmente com o que diz a súmula catorza do Supremo Tribunal Federal, arma crucial em prol da ampla defesa e do contraditório: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício da defesa”. Deixar, como permitido no parágrafo terceiro, que os reús outros conheçam o conteúdo da colaboração depois de oferecida a denúncia é insuficiente, posto que os corréus e seus defensores só saberão de algo que influenciará nas suas defesas numa fase bem posterior à que a súmula prevê, que é ao fim das diligências necessárias à investigação.
    
    No artigo quinto, o inciso LX diz “que a lei só poderá restringir a publicidade dos atos quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”; decerto, termo tão vago em semântica como “interesse social” permitiria ser preenchido com a incolumidade do colaborador e, com muito mais justiça, a eficácia das investigações que advieram de informações prestadas pela colaboração. A única exceção ao princípio da publicidade, tamanha é sua importância, que está prevista na Carta Magna, é a seguinte: 
“IX -  todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
    
A publicidade tem sentido perene para qualquer Estado Democrático de Direito. As partes processuais não se encontram reféns de uma jurisdição invisível ao público, o que aprofunda a fé dos jurisdicionados naquele Poder, pois podem analisar e opinar sobre o acerto de seus juízes e juízas. É daí, inclusive, que emana sua legitimidade. Aprovar judicialmente acordos sigilosos, como permite a lei, além da ocasião na qual poderá ser divulgado aos corréus o conteúdo do acordo firmado, ferem um dos subprincípios que constituem o due proccess of law pátrio. 

    2.3. AÇÃO CONTROLADA

    Por fim, em relação às modalidades de flagrante tratadas aqui, é necessário ainda analisar uma das espécies de flagrante que é o flagrante retardado ou ação esperada. Essas espécies de flagrante se aplicam apenas no contexto do que diz a Lei de Drogas, Lei 11.343/06, no art. 53, inciso II e também no contexto da Lei de Crime Organizado que vem sendo analisada nesse trabalho. 
    Segundo Fernando Capez, a aplicação do flagrante compulsório ou obrigatório é a regra que se aplica às autoridades policiais e tem base no art. 301: “...as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. É obrigatória a prisão em flagrante pelo agente, não tendo cabimento margem de discricionariedade relativamente à conveniência de realizá-la. (CAPEZ, 2011, p. 328)
    Por outro lado, tem se verificado pela experiência na atividade policial que a prisão em flagrante em momentos iniciais de execução do ilícito mostra-se pouco eficaz para a constatação de sistemas de cometimento de crimes mais complexos. Isso porque a prisão logo no início do delito tende a se destinar somente a membros de mais baixa hierarquia na organização, pouco contribuindo com o desmantelamento de complexa atividade criminosa. Do mesmo modo, mostra-se mais eficaz que se retarde a prisão de forma a ter acesso a uma maior quantidade de provas até o momento do flagrante. Tendo em vista esse fator estratégico, a Lei 9.034/95 cria uma exceção à regra do flagrante compulsório. A título de ilustração, o ilustre promotor Rogério Sanches Cunha apresenta possibilidades de situações a serem enfrentadas tendo em vista o instituto:

Em determinada diligência, policiais de atalaia, próximos de uma festa em que há consumo de bebida contrabandeada, ao invés de apreenderem de pronto a mercadoria, esperam a chegada de um grande lote de drogas que, de antemão, sabiam que seria entregue no local. Sacrifica-se, com isso, a apuração de um crime de menor gravidade para se flagrar os componentes de organização especializada no tráfico de entorpecentes. Outro: tendo conhecimento que quadrilha que rouba veículos está prestes a escondê-los em determinado local, os policiais não prendem o primeiro dos “motoristas”, mas, ao revés, prorrogam sua ação até a chegada dos demais membros do grupo, obtendo assim maior eficácia na diligência em si (mais automóveis serão apreendidos, mais vítimas serão reparadas) (2014, p. 91).
    
No contexto dessa lei, a atividade da polícia tinha um teor fortemente discricionário. Quem realizava o juízo de conveniência e oportunidade era o policial que conduzia a ação controlada. Sem qualquer orientação legal quanto a necessidade de supervisão ou de que forma ela se daria, ela dispensava, inclusive, autorização judicial para ser realizada. Seque o Ministério Público se manifestava ou deveria ser ouvido na condução policial do caso nesse sentido. Nesse caso, o promotor apenas seria informado de que a ação estaria em curso. Por essa situação, esse tipo de condução passou a ser chamado de “ação descontrolada”. Esse nome se deu porque, nesses moldes, a ação controlada usurpava as competências básicas do Ministério Púbico e do magistrado de forma que algumas garantias básicas de legalidade do procedimento ficavam prejudicadas em razão dessa exceção ao Código de Processo Penal.
E Estado, ao atribuir poderes, tem o dever de também prever as formas de controle do exercício do respectivo poder, principalmente quando falamos de monopólio da violência pelo Estado. O controle nessa área de atuação estatal tem a importante função de atribuir legitimidade ao exercício dessa violência pelo Estado. Caso o controle não seja exercido efetivamente, a ação das autoridades de segurança pública encontrar-se-ão profundamente deslegitimada e conduzir a uma crise de insegurança do qual se tem tentado, por meio da legalidade, se distanciar. (GOMES, 1997, p. 94) (MENDRONI, 2009, p. 107)
Ainda em análise do modelo de ação controlada presente na lei anterior 12.850/13, o policial tinha a faculdade de decidir pelo flagrante prorrogado desde que avaliasse que se trata de organização criminosa ou qualquer agente vinculado a alguma delas. O nosso ponto é que o estabelecimento desse critério, embora tivesse o objetivo de limitar a discricionariedade, não obteve sucesso em sua finalidade. Isso porque qualquer possibilidade de prevaricação da autoridade policial era blindada sob o argumento de que o agente estatal possuía a suspeita de se tratar de organização criminosa e que a mera suspeita fosse suficiente para se aplicar o dispositivo. Essa enorme margem de discricionariedade também tinha o condão de se voltar contra o próprio agente público. Por exemplo, caso o flagrante desaparecesse em razão da aplicação do dispositivo da ação controlada, a falta de comunicação, de controle externo ou de limitações poderia dar razão a desconfianças sobre o porquê da possível frustração da diligência promovida pelos policiais. (GOMES, 1997, p.94 a 95)
Outro ponto relevante é se o retardamento do flagrante resultasse, em dada situação na perda completa do momento em que seria possível o flagrante. Para tratar dessa questão faremos uma análise crítica do instituto, presente no art. 319 do Código Penal, o qual descreve a prevaricação (“retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”). 
Nessa situação, ainda que na vigência da lei anterior, os agentes policiais teriam de responder pelos crimes mencionados? O nosso entendimento é de que não. Não seria cabível tal responsabilização em razão do insucesso da diligência. Não obter o resultado desejável dentro de uma diligência é um resultado possível da ação e o próprio sistema do instituto arca com esse risco para que ele possa ser executado, ou seja, que se prorrogue o flagrante no tempo. Verificada a atuação de boa-fé no exercício de suas atribuições, nosso posicionamento é o de que não há prevaricação, pois não há dolo específico.  (CUNHA, 2014, p. 92). 
A Lei 12.850/13, que trata do assunto, amenizou esse problema ao trazer o seguinte artigo: 
        Art. 8º. Consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações. § 1º O retardamento da intervenção policial ou administrativa será previamente comunicado ao juiz competente que, se for o caso, estabelecerá os seus limites e comunicará ao Ministério Público.  § 2o  A comunicação será sigilosamente distribuída de forma a não conter informações que possam indicar a operação a ser efetuada.
    
Aqui se fala na possibilidade de haver permissão do magistrado, que poderá ouvir o Ministério Público e estabelecer determinados limites à discricionariedade do agente policial. Embora haja apreciação pelo magistrado, não se trata de autorização judicial, apenas comunicação. A oitiva do Ministério Público mostra-se especialmente relevante pois será ele que quem terá de lidar com o conjunto probatório colhido e terá de formular a denúncia com base no inquérito em fase pré-processual e, além disso, arcando com as possíveis consequências de um flagrante retardado. O nosso posicionamento é o de que esse dispositivo é apresenta uma boa resposta ao problema acima apontado, visto que visa a estabelecer maiores limites a ação controlada, mas também sem ceder ao exagero de submeter à autorização judicial. Não se trata aqui de dizer que há excesso de controle de direitos fundamentais dos acusados, no caso, o direito à privacidade se o flagrante retardado se estender demasiadamente, mas sim de avaliação sobre a oportunidade de se retardar o flagrante frente a dinâmica da própria atividade criminosa. Solicitar autorização judicial no momento em que se verifica a possibilidade de aplicação pode significar a própria perda da oportunidade por depender da celeridade do juiz em conceder a autorização, de forma a praticamente inutilizar o instituto – gerando a perda do momento flagrancial além das provas que pudessem colher. Assim, a autorização judicial acabaria por somente permitir uma ação que já não seria mais possível do ponto de vista fático (CUNHA, 2014, p. 94). Ademais, o elastecimento do excesso favoreceria que uma possível negativa judicial chegasse em tempo, na situação em que o juiz a conhecesse no momento em que fora comunicado pela autoridade judicial.  
Por fim, vale a nota de que a lei ainda permite a hipótese de prolongamento da intervenção também advindas de agentes como da Receita Federal, auditores, entre outros. Nesse sentido, é de se estranhar essa possibilidade tendo em vista que usurpa a divisão de poderes estabelecida pela Constituição Federal. A Constituição em seu art. 144, §1º, inciso I, e §4º, o qual já analisamos anteriormente, ainda atribui a tarefa de coleta probatória à polícia judiciária. Assim, sustentamos que está impregnado de inconstitucionalidade e que não deveria contar com a aplicação por parte dos agentes administrativos. 

3. CONCLUSÃO

Não muitas nações, nos recentes decênios, deixaram de observaram um grande incremento nos números de criminalidade agressiva (UNODC, 2013). Tal padrão vem unindo a opinião pública em prol da demanda de agravar penas, como se a via de agravamentos legislativos para a resposta estatal fosse nossa redenção. Houve, no passado legal, a onda inicial de guerra ao tráfico (representada no direito interno pela lei de tóxicos anterior, /76). Posteriormente, veio a guerra aos crimes violentos, que nos deu a famigerada Lei dos Crimes Hediondos, resposta a um anseio penalizador crescente dos eleitores. Estabeleceu uma lista que, em parte, era influenciado pela projeção da mídia, e de resto era arbitrário em sua seleção de tipos contemplados com a gravidade (no sentido de socialmente segregador) processual penal e que, não raro era inconstitucional (STRECK, 2013, p. 9). O inimigo contemporâneo, filho do capitalismo de consumo, que se sustenta sobre a  restrição de mercado que normas proibitivas geram para lucrar anormalmente e sustentar o paraestado nos pontos aos quais o Estado não chega, é o crime organizado.
Quando nossa cultura a um grau estatístico de ilicitude penal que a massa entendeu espontaneamente como patológico, o cenário estava preparado para o advento de programas penais retribuicionistas, e o viés político-penal de nome law and order, visivelmente positivsta, reconquistou os holofotes. O entendimento de que o autor do crime é o pathos, o alter, o opositor de uma comunidade que jamais comete pequenos delitos diários (excluímos até crimes do trânsito), apartados do errado (GOMES, 1997, p. 37), cria causa e legitimidade para uma lei penal que exclui as garantias processuais constitucionais de primeira geração, que defendem o cidadão das incursões arbitrárias do Estado. Como o infrator não pertence à mesma natureza que a nossa, os nossos jamais serão atingidos pelos poderes exagerados que estamos concedendo ao aparelho repressor estatal nessas hipóteses.
Esse tipo de blind eye dispensado aos precedentes criados com algumas figuras presentes na lei 9.034/95, acrescidos da grande repercussão positiva no brasileiro a todo nível de punitivismo dispensado ao PCC, Comando Vermelho, ou Amigos dos Amigos ou até ao Mensalão, mais próxima e de contexto socioeconômico diverso dos anteriores, embalou a lei anterior de lida com o crime organizado. Sua aplicação era imprecisa porque recaía sobre todas as quadrilhas do art. 288 do Código Penal, ferindo o princípio da proporcionalidade com os expedientes penais mais gravosos dados a tais delitos de menor gravidade. A lei 10.217/01, criada para corrigir as duas mais prementes críticas elaboradas doutrinariamente ao diploma de 1995 congelou o âmbito de incidência desta igualmente inalcançável e piorou a questão das provas ao criar figuras sem regulação alguma. 
Com a chegada da 12.850/13, erros foram finalmente corrigidos. Um conceito mais instrumentalizável foi concedido ao crime organizado, além de um tipo que criminalizava várias modalidades de suporte a ele, com uma pena razoável num sentido comparativo. Pudemos, finalmente, superar os arremedos de tipicidade nesse capítulo importante de nossa legislação penal.
A delação premiada, apesar de ter conseguido um nomen iuris mais amigável, ganhou uma operacionalidade mais invasiva em direitos para o réu/ acusado que participasse do acordo de cooperação com o inquérito/processo: era essa a colaboração premiada. Alguns erros do diploma de antes permaneceram: a forma que é dada ao sigilo do conteúdo da delação é frontalmente contrária ao enunciado da súmula vinculante 14 do STF e, simultaneamente, fere também o contraditório e, por conseguinte, o devido processo legal. Não estender o benefício auferido pelo delator e a própria possibilidade de delação a crimes associativos menos gravosos (como se a condução de inquéritos de tais crimes prescindisse dessa medida), revela a mácula da seletividade de nosso direito penal. Os apontamentos doutrinários emocionados que condenam a presença do prêmio a uma traição na lei foram acolhidos na parte de aferição da efetividade da colaboração. Um outro avanço foi a regulação mais minuciosa do procedimento de homologação da delação. Infelizmente, porém, permaneceu o atentado à imparcialidade     que o magistrado deve ter frente às provas colhidas na fase processual: o paradigma inquisitório não foi superado na lei nova.
A infiltração policial restava insatisfatoriamente tutelada na legislação de 1995. O policial infiltrado estava quase que fatalmente condenado pela lei a, em algum momento, optar por sua incolumidade física – posta em risco se ele não demonstrasse lealdade à organização que espionava – e um processo penal com certeza de condenação ao final, a não ser em casos em que obviamente ele pudesse apelar para a excludente de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa. A lei 12850/13, porém, trouxe alguma expansão à margem de perdão legal aos atos praticados pelo agente infiltrado. de Permanece, porém, a discussão de se a interferência dum policial agindo como agente do aparelho repressivo e alterando o animus dos criminosos que investiga não seria uma modalidade de flagrante não aceita em nosso direito, que é o flagrante induzido.
Para finalizar, sobre a ação controlada, podemos dizer que a lei 9.034/95 atribuía excessiva liberdade aos policias, membros ministeriais e juízes no delicado procedimento de relativização do flagrante obrigatório previsto no artigo 302 do CPP, pouco saudável para um Estado Democrático de Direito, defeito presente também nos requisitos obrigatórios para sua realização. Felizmente, em sede da lei 12.850, o legislador aumentou o controle estatal sobre a legalidade da figura por meio do Ministério Público, devolvendo a ele o papel de amplo controle da legalidade e, ainda assim, não burocratizou um instituto que tem tudo a ver com o dinamismo da abordagem policial. A inconstitucionalidade que acabou vindo com o novo texto foi a possibilidade de autoridades administrativas também poderem realizar essa modalidade de flagrante que é da atividade privativamente concedida às polícias judiciárias na CF/88. 
Não se pode, em conclusão, falar em melhora, simpliciter, da legislação penal sobre o tema quando do advento da lei 12.850/13. Excluindo a melhora inegável da tipificação de abertura da lei atual, dilemas principiológicos estruturais não foram resolvidos ainda, e a alma de legislação penal de Estado de exceção ainda não abandonou completamente a forma com que nosso direito trata o crime organizado.


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Sobre o autor
Oberdan Costa

Advogado residente em Brasília. Formado em Direito pela FD-UnB e pós-graduado em Direito Público pelo IMP-Brasília.

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