4 A LEI DE ANISTIA PERANTE O DIREITO INTERNACIONAL:
A anistia brasileira foi alcançada devido à uma conjugação de fatores, dentre as quais se destacam as lutas populares pela anistia, o cenário econômico desfavorável ao governo e os interesses do governo ditatorial. Embora tenha permitido o início da redemocratização do país, o retorno dos exilados, a libertação de presos políticos e a criação de novos partidos, também contribuiu para lançar o esquecimento sobre os crimes contra a humanidade praticados pelos agentes estatais durante o regime militar (SILVA FILHO, 2011).
A Lei nº 6.683/1973 estava inserida em um conjunto de estratégias da ditadura com vistas a acabar com o bipartidarismo, dividir a oposição e dar mais flexibilidade ao quadro partidário, visando facilitar a sustentação político-partidária do regime. A promulgação da lei acima citada deu-se basicamente nos termos que o regime militar pretendia e, desta forma, mostrou-se mais adequada aos anseios de impunidade para os agentes da repressão do que à necessidade de justiça aos perseguidos políticos pelo regime (MEZAROBBA et al., 2010).
Neste contexto, a Lei de Anistia mostrou-se incapaz de conter a série de violações aos direitos humanos iniciadas com o golpe de 1964. No primeiro momento, pode-se dizer que ela significou “uma tentativa de restabelecimento das relações entre militares e opositores do regime que haviam sido cassados, banidos, estavam presos ou exilados” (MEZAROBBA et al., 2010, p. 110). Desta maneira, seu sentido principal era o de conciliação pragmática, a fim de contribuir com a transição para o regime democrático.
Referindo-se à Lei de Anistia, Baggio (2011, p. 200) assinala que “[...] ao contrário do que a mobilização social pretendia, não foi uma lei ampla, geral e irrestrita, uma vez que o projeto vencedor foi o defendido pelos congressistas apoiadores do regime e não pela oposição [...]”. Nesta conjuntura, o clima de intensa mobilização pela abertura do regime e redemocratização do país levou muitos setores da política brasileira a sustentarem esse primeiro momento de transição, iniciado pela promulgação desta lei, como um grande acordo político formado pela nação, que deveria olhar para o futuro e esquecer o passado, o que incluía esquecer os crimes contra a humanidade praticados pela ditadura militar.
Todavia, esse entendimento referente ao acordo político firmado pela nação consolida a concepção de anistia como esquecimento e, sendo assim, se tornaria um impeditivo ao enfrentamento dos atos do passado, negando à sociedade brasileira o acesso ao direito à memória, à verdade e à apuração das violações cometidas.
Neste sentido, a interpretação da Lei de Anistia prevalecente até hoje é a de que ao utilizar a expressão “crimes políticos ou conexos com estes”, a lei anistiou não apenas os perseguidos políticos, mas também os agentes públicos que tenham cometidos crimes de lesa-humanidade durante esse período, o que favorece a perpetuação da impunidade e afronta o direito à justiça.
O presente capítulo abordará, inicialmente, a legalidade da lei de anistia brasileira frente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. Em seguida, tratará do julgamento da ADPF nº 153, pelo Supremo Tribunal Federal, no qual a Corte Brasileira firmou o entendimento de que a anistia concedida pela Lei nº 6.683/1979 se estende aos agentes militares que perpetraram graves violações durante a ditadura. Em seguida, tratará do julgamento do Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil, em que a Corte IDH decidiu que as disposições da lei de anistia que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos e carecem de efeitos jurídicos. Por derradeiro, discorrerá sobre a ADPF nº 320 e o legado de impunidade da lei de anistia na atual realidade brasileira.
4.1 A legalidade da Lei de Anistia ante o Direito Internacional
Conforme sustenta Freeman (2010), anistia é uma medida legal e extraordinária que objetiva eliminar as consequências da responsabilidade penal para determinados indivíduos ou classes de pessoas a respeito de determinado tipo de ofensas, independentemente do que as pessoas em apreço tenham sido julgadas por tais crimes em um tribunal de justiça.
Desta maneira, anistia pode ser compreendida como uma medida legal e extraordinária que visa a impedir que uma classe de indivíduos seja julgada ou punida pela prática de certos tipos de crimes. Logo, a finalidade de cada anistia, os indivíduos abrangidos por ela e sobre quais crimes se dará a anistia serão determinados pelo contexto histórico e pela lei de anistia em si.
No contexto da transição democrática brasileira, a sociedade mobilizou-se pela aprovação de uma lei de anistia “ampla, geral e irrestrita”, que contemplasse todos os presos políticos, inclusive os envolvidos na luta armada e crimes de sangue. O movimento pela anistia passa a significar a volta à cena pública das manifestações, passeatas e reivindicação de direitos, funcionando como meio de induzir o despertar de uma sociedade oprimida, que passa lentamente a naturalizar a participação cívica (ABRÃO; TORELY, 2011).
Apesar da luta encampada pela sociedade civil, essa proposta de anistia foi derrotada no Congresso Nacional, sendo aprovado o projeto de lei “restrita” oriundo do governo militar, isto porque o processo de transição foi controlado pelo regime. Deste modo, um terço do Congresso Nacional era composto pelos chamados “senadores biônicos”, parlamentares indicados pelo Executivo. É nesse período da abertura política que começa a ser construída a tese da “anistia bilateral” (ABRÃO; TORELY, 2011).
Com o passar dos anos, o lema da “anistia ampla, geral e irrestrita” para os opositores do regime militar, invocada pela sociedade e negada pelo regime, passou a ser interpretado como uma “anistia ampla, geral e irrestrita” para “ambos os lados” – perseguidos políticos e agentes estatais perpetradores de violações a direitos humanos –, demonstrando a força de controle da ditadura sobre o contexto de abertura, que “[...] apropriou-se do bordão social para convertê-lo em fiador público de um suposto “acordo político” entre subversivos e regime para iniciar a abertura democrática [...]” (ABRÃO; TORELY, 2011, p. 2011).
Impende destacar que a mobilização popular em prol da anistia entre os anos de 1974 e 1979 em nenhum momento reivindicou anistia a torturadores, pelo contrário, constava expressamente dos resultados das plenárias dos Comitês Brasileiros de Anistia a investigação e responsabilização dos crimes praticados pelos agentes da ditadura. A anistia “ampla” era para alcançar os presos políticos que participaram da resistência armada e que não foram contemplados pela lei. Estender a anistia aos torturadores foi uma imposição do regime de exceção, ainda que na forma da expressão “crimes conexos”, presente no diploma legal. Neste contexto, a Lei nº 6.683/1979 é considerada uma lei de “autoanistia”, pois tratou-se do Estado perdoando os crimes cometidos por seus próprios agentes.
Neste cenário, é importante destacar o que apontam Abrão e Torely (2011, p. 234):
Com a crescente evidenciação de que muitos desaparecimentos e mortes eram produto da ação estatal, cresceu a pressão social por investigação dos delitos, o que levou o Judiciário – ressalte-se: controlado pelo regime – a sistematicamente ampliar interpretativamente o espectro de abrangência da lei, passando a considerar “conexos aos políticos”, os crimes dos agentes do Estado e, ainda, a aplicar a lei até para crimes ocorridos pós-1979, fora da validade temporal da lei (como para os responsáveis pelo Caso Rio Centro em 1981) sob o manto do princípio da pacificação nacional.
Destarte, há que se afastar a interpretação de que, em nome da conciliação nacional, a Lei de Anistia seria uma lei de “duas mãos”, que beneficiaria torturadores e as vítimas desta e outras graves violações. Neste sentido, Piovesan et al. (2010, p. 100) sustenta:
[...] esse entendimento advém da equivocada leitura da expressão “crimes conexos” constante da lei. Crimes conexos são os praticados por uma pessoa ou grupo de pessoas, que se encadeiam em suas causas. Não se pode falar em conexidade entre os fatos praticados pelo delinquente e pelas ações de sua vítima. A anistia perdoou a estas e não aqueles; perdoou as vítimas e não os que delinquem em nome do Estado. Ademais, é inadmissível que o crime de tortura seja considerado como crime político, passível de anistia e prescrição.
Como já enfatizado no capítulo anterior, o crime de tortura viola a ordem internacional e é insuscetível de graça ou anistia. Ademais, por sua extrema gravidade, é considerado crime contra a humanidade. Logo, é dever do Estado investigar, julgar e punir os torturadores, com vistas a assegurar à vítima o direito à verdade, justiça e o direito à prestação jurisdicional efetiva (PIOVESAN et al., 2010).
A jurisprudência dos sistemas interamericano e global de proteção reconhece que leis de autoanistia violam obrigações jurídicas de proteção assumidas pelos Estados no âmbito dos direitos humanos. No que tange ao sistema interamericano, destacam-se dois casos emblemáticos: Barrios Altos versus Peru, em 2001 e Almonacid Arellano versus Chile.
Os acontecimentos de Barrios Altos se deram em 1994, quando cidadãos peruanos, que viviam na cidade vizinha à Lima, chamada Barrios Altos, foram massacrados pelo grupo denominado “Grupo Colina”, que tinha como membros oficiais em serviço ativo e sujeitos à cadeia de comando do exército peruano e serviço de inteligência (MONTERO, 2010).
Em 2001, no julgamento do caso Barrios Altos versus Peru, a Corte IDH decidiu que as duas leis de autoanistia concedidas pelo regime de Alberto Fujimori para si mesmo – Leis nº 26. 479 e 26.492-, violaram os direitos das vítimas de ter acesso à justiça. Além disto, também determinou que sua decisão não é só vinculativa entre as partes, no caso particular, mas que deve ser usada em qualquer outro caso em que tais leis possam ser aplicadas (ENGSTROM, 2011).
A Corte também declarou nesse mesmo caso que leis de anistia que estabelecem excludentes de responsabilidade e impedem investigações e punições de graves violações a direitos humanos, como tortura, execução sumária e extrajudicial e desaparecimento forçado, são incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos (PIOVESAN et al., 2010).
Desta forma, a Corte IDH alegou que a impunidade com relação crimes contra a humanidade promove a repetição de atividades nocivas à democracia e aos direitos humanos.
Neste sentido, é necessário fazer a seguinte consideração:
[...] o Sistema Interamericano adotou uma posição rígida para com a impunidade, posição que não deixa muito espaço mesmo para regimes democráticos. O Tribunal de justiça definiu a impunidade como uma falha sistemática para investigar, processar, prender, adjudicar e condenar aqueles que são responsáveis por violações de direitos protegidos pela Convenção Americana. A condenação da impunidade é duplicada. Por um lado, para as sociedades, a impunidade promove a repetição crônica das violações dos direitos humanos. Por outro lado, para as vítimas e seus familiares, a impunidade estimula a desproteção total das vítimas e seus familiares, que têm o direito de saber a verdade sobre os fatos (ENGSTROM, 211, p. 120).
Desta forma, a Corte concluiu que as leis de autoanistia perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente. Assim, tais leis constituiriam manifesta afronta à Convenção Americana de Direitos Humanos, caracterizando-se, ainda, como um ilícito internacional e sua revogação uma forma de reparação não pecuniária (PIOVESAN et al., 2010).
Por sua vez, no Caso Almonacid Arellano Versus Peru, cujo objeto era a validade do Decreto-Lei nº 2.191/78, que previa anistia aos crimes perpetrados entre 1973 e 1978, na era Pinochet, a Corte IDH decidiu pela invalidade do mencionado diploma legal, por considerá-lo um exemplo de autoanistia, por implicar a denegação de justiça às vítimas, bem como por afrontar os deveres do Estado de investigar, punir e reparar graves violações de direitos humanos que constituem crimes contra a humanidade (PIOVESAN et al., 2010).
Destaca-se que, em 2005, a Corte Suprema de Justiça Argentina considerou que as leis de “Ponto Final” (Lei nº 23.492/86) e de “Obediência Devida” (Lei nº 23.521/87) impediam o julgamento de violações cometidas durante a ditadura militar argentina, entre 1976 e 1983. Desta maneira, ambas as leis foram consideradas incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos, o que tem permitido o julgamento de militares argentinos (PIOVESAN et al., 2010).
No Uruguai, militares também têm sido condenados criminalmente, cite-se como exemplo, a decisão da Corte Uruguaia que condenou criminalmente o ex-ditador Juan María Bordaberry.
Verifica-se que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos assumiu fundamental importância nos debates acerca da justiça de transição. Seguindo o contexto de transição democrática na América Latina, desempenhou papel importante na construção e desenvolvimento de normas relacionadas à justiça transacional. Neste aspecto, ressalta-se:
[...] o sistema fez uma contribuição significativa para a difusão das normas de direitos humanos em toda a região. Embora seja difícil de determinar o impacto desses precedentes, a tendência tem sido da mais ampla à mais adaptada, de completo a qualificado, das leis sem qualquer referência ao Direito Internacional para aqueles que explicitamente tentarem permanecer dentro de suas estruturas. É possível rastrear esse resultado, pelo menos no que tange à importância crescente de um discurso sobre a impunidade e responsabilização em nível internacional (ENGSTROM, 2011, p. 121).
No sistema global de proteção aos direitos humanos, cabe mencionar a Recomendação Geral nº 20, de 1992, adotada pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, relativa ao art. 7º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, concernente à proibição da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis e degradantes, na qual ressalta a incompatibilidade das leis de anistia com o dever dos Estados de investigar os atos de tortura. Neste contexto, a Recomendação aponta:
As anistias são geralmente incompatíveis com o dever dos Estados de investigar tais atos; para garantir a não ocorrência de tais atos dentro de sua jurisdição; e para assegurar que não ocorram no futuro. Os Estados não podem privar os indivíduos de seu direito a um recurso eficaz, inclusive a possibilidade de compensação e plena reabilitação (COMITÉ PARA LA ELIMINACIÓN DE LA DISCRIMINACIÓN CONTRA LA MUJER, 1992, não paginado).
Deste modo, os sistemas global e interamericano de proteção aos direitos humanos já firmaram o entendimento de que leis de anistia não podem constituir obstáculo para a investigação, julgamento e punição de indivíduos que tenham praticado crimes contra a humanidade, como a tortura e o desaparecimento forçado. Tais leis contribuem para a continuidade da prática desses atos atentatórios aos direitos humanos. No caso brasileiro, por exemplo, a tortura persiste de maneira sistemática e generalizada. Conforme assevera Piovesan et al. (2010, p. 106), “a prática da tortura se manterá na medida em que se assegurar a impunidade de seus agentes”.
Assim, a luta contra a tortura e outros crimes contra a humanidade impõe o fim da cultura da impunidade, demandando do Estado o dever de investigar, processar e punir os seus perpetradores, bem como reparar a violação. A lei de anistia brasileira, portanto, é empecilho para a punição dos agentes estatais que cometeram violações a direitos humanos durante o regime militar, haja vista que perdoou esses agentes. Observa-se que o Estado Brasileiro ainda não se libertou totalmente do entulho autoritário da ditadura, em clara afronta ao direito à justiça das vítimas do período de exceção. É necessário que o Brasil avance no que tange ao respeito aos direitos humanos, rompendo com o continuísmo autoritário no ambiente democrático.
Como bem sustenta Mezarobba et al. (2010, p. 118), “[...] o aspecto mais evidente da manutenção do passado no presente é a permanência em vigor da Lei de Anistia e o tom adquirido pelo debate cada vez que se cogita uma reflexão mais aprofundada de seu escopo [...]”. Ao insistir na vigência da interpretação de uma lei que impede a investigação de crimes contra a humanidade cometidos por agentes da ditadura militar, o Estado Brasileiro perpetua a impunidade e viola o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, sinalizando o pouco apreço pelo Estado de Direito e pela democracia.
Como se sabe, crimes contra a humanidade não são passíveis de anistia e também não prescrevem, segundo princípio do Direito Internacional, reconhecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas antes da aprovação da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e contra a Impunidade, em 1968 (MEZAROBBA et al., 2010).
Deste modo, a proibição absoluta da tortura, o direito à verdade e o direito à justiça estão consagrados nos instrumentos normativos internacionais ratificados pelo Brasil, e impõem o dever do Estado de investigar, punir e reparar graves violações de direitos humanos, especialmente quando se trata de crime internacional. Assim, leis de anistia não podem autorizar a violação de jus cogens internacional (normas cogentes e de observância obrigatória), como a inderrogável proibição à tortura, bem como perpetuar a impunidade, gerando uma injustiça permanente e continuada (PIOVESAN et al., 2010).
Ora, as leis brasileiras estão sujeitas a dois tipos de controle vertical: o de constitucionalidade e o de convencionalidade. Nem tudo que é recepcionado pela Constituição é convencional e válido, pois agora as leis devem ter compatibilidade com os tratados internacionais ratificados pelos Estados. Uma lei pode ser constitucional, mas inconvencional. Tanto no caso de inconstitucionalidade como no de inconvencionalidade, a lei não possui validade (GOMES; MAZZUOLI, 2011).
Portanto, ao caracterizar-se como ilícito internacional, por sua incompatibilidade com os parâmetros protetivos presentes na ordem internacional, é fundamental que a Lei de Anistia brasileira, em nome do direito à justiça e à verdade e ao entendimento referente à imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, seja invalidada.
4.2 A Lei de Anistia e a ADPF 153
Nos últimos anos, diversas ações buscaram a responsabilização, civil ou criminal, de alguns dos protagonistas da política de repressão patrocinada pela ditadura militar brasileira (1964-1985). Contudo, duas são as principais e encontram-se intimamente relacionadas: a) a ADPF nº 153, proposta pelo Conselho Federal da OAB, perante o STF, em sede de controle concentrado de constitucionalidade e b) o Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil, julgado pela Corte IDH.
A análise do julgamento da ADPF nº 153 pelo STF será objeto do presente tópico, enquanto o Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) será discutido no tópico subsequente.
No âmbito da ADPF nº 153, é necessário esclarecer que a OAB não requereu ao STF a “revisão” da chamada Lei de Anistia (Lei nº 6.683/1979). Por meio desta ação, proposta em outubro de 2008, a OAB requereu uma “interpretação conforme à Constituição”, de modo a declarar, à luz dos preceitos fundamentais previstos no texto constitucional, que a anistia concedida pela mencionada lei aos crimes políticos ou conexos não se estenderia aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra os opositores políticos da ditadura (VENTURA, 2011). O alvo da ação era, portanto, o art. 1º, §1º, da Lei de Anistia, que assim prevê:
Art. 1º: É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo (sic) com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direita e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
§1º: Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política (BRASIL, 1979, não paginado).
A OAB sustentou que o §1º do citado artigo não foi objeto de recepção pela Constituição Federal de 1988, cujo art. 5º, XLIII reputa o crime de tortura como insuscetível de graça ou anistia (BRASIL, 1988), e que a Corte IDH já decidiu, em ao menos cinco casos, pela invalidade da “autoanistia” criminal decretada por governantes.
Em abril de 2010, entretanto, o plenário do STF, por 7 (sete) votos a 2 (dois), indeferiu o pleito, nos termos do voto do relator, o então Ministro Eros Grau. Prevaleceu, desta forma, o entendimento segundo o qual a Lei de Anistia seria válida, por apresentar-se como instrumento de transição do regime ditatorial para o democrático. De acordo com este propósito conciliador, a anistia, conforme concedida pela Lei nº 6.683/1979, contemplaria também os crimes cometidos pelos agentes públicos do Estado. O Conselho Federal da OAB opôs embargos de declaração sobre os quais a Corte Suprema ainda não se manifestou (VENTURA, 2011).
O indeferimento do pleito da OAB e a manutenção da anistia concedida aos agentes da repressão que praticaram crimes contra a humanidade refletem o descompromisso brasileiro em julgar grandes violadores de direitos humanos. Neste contexto, Ventura (2011) cita o exemplo da concessão de asilo político ao general Alfredo Stroessner, ditador paraguaio entre 1954 e 1989, residente no Brasil de 1989 até 2006, quando de seu falecimento em total impunidade. Assim, vale ressaltar:
A tendência à omissão no julgamento de autores de crimes contra a humanidade contradiz, todavia, tanto a nova ordem constitucional brasileira, humanista e democrática, quanto o teor das obrigações internacionais paulatinamente assumidas pelo Brasil graças às numerosas convenções relativas aos direitos humanos firmadas e incorporadas à ordem jurídica pátria (VENTURA, 2011, p. 314).
Ventura (2011) aponta que o enfoque do STF, ao enfrentar processos que envolvem ordens jurídicas e jurisdições internacionais, regionais e/ou locais, é eminentemente estatalista, baseado no Direito interno. De modo geral, a Corte ignora o grande debate contemporâneo acerca da internacionalização do Direito. Desta maneira, a decisão do STF na ADPF 153 dá continuidade, segundo a autora, a uma postura que a mesma define como provincianismo jurídico.
Nesta conjuntura, a ementa do acórdão da ADPF nº 153 aponta que a Lei de Anistia precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas cruéis Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembleia Geral da ONU, em 1984, e a Lei nº 9.455/1997, que define o crime de tortura. Além disso, sustenta que o preceito insculpido no art. 5º, XLIII da Constituição, que dispõe que a prática da tortura é insuscetível de graça ou anistia, não alcança anistia anteriormente concedida à sua vigência (BRASIL, 1988).
Essa argumentação precisa ser refutada. Assim, à época do regime militar, já havia normas internacionais de vigência incontroversa no Brasil, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, ambas de 1948, e as Convenções de Genebra. O Brasil é um dos 51 Estados fundadores da Organização das Nações Unidas, portanto, não pairam dúvidas sobre a sua adesão ao movimento internacionalista iniciado a partir da segunda metade do século XX. Todavia, como afirma Ventura (2011, p. 322), “[...] este Direito Internacional convencional não foi empregado, em momento algum, no julgamento da ADPF 153 [...]”.
Como já debatido no capítulo anterior, não há dúvidas de que os crimes comuns praticados por agentes públicos, durante a ditadura militar, foram crimes graves, que objetivavam desumanizar e despersonalizar as vítimas, consideradas sub-homens, a ponto de seus algozes se sentirem autorizados a cometer as maiores atrocidades, inclusive sua eliminação física, em nome de uma suposta segurança nacional. Segundo Ventura (2011), também não se duvida de que foram cometidos na execução de uma política de Estado, haja vista que até um ato isolado, sob aparência de crime comum, pode caracterizar-se como crime contra a humanidade, por vincular-se a um programa criminoso.
Entretanto, o voto do Relator da ação, o então Ministro Eros Grau, seguido pela maioria dos membros da Corte, não apenas rechaça o tratamento dos delitos cometidos pela ditadura militar como crimes contra a humanidade, como também estabelece a inexistência de obrigação internacional do Brasil no tocante ao processamento e julgamento dos crimes em debate, em vista do princípio da prescrição. Neste sentido, o relator considera que: a) o Brasil não subscreveu a Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, de 1968, tampouco cláusula similar em outra convenção e b) a obrigação de julgar assumida pelo Brasil no âmbito interamericano só seria invocável em juízo, no âmbito da CIDH, no que atine a fatos posteriores a 10 de dezembro de 1968.
Com relação à primeira consideração, é necessário assinalar a seguinte crítica:
[...] comento que me causa certa graça supor que o princípio da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade estaria condicionado à assinatura, ratificação e incorporação de uma convenção internacional por uma junta militar, em pleno ano de 1968, a mesma que, no ano seguinte, o de 1969, emendou arbitrariamente a Constituição para instituir as penas de morte, prisão perpétua, de banimento e confisco. Tal postulado implicaria ter expectativas, em relação àquela ordem ditatorial, como se Direito ela fosse [...] (VENTURA, 2011, p. 327).
Quanto à alegação de prescrição criminal, que leva a Corte Suprema a negar a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade como regra aplicada ao Brasil, é bem verdade que o país atualmente reconhece a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade como Direito convencional, devido à incorporação do Estatuto de Roma. Todavia, seguindo o entendimento do STF na ADPF nº 153, só seriam imprescritíveis os crimes contra a humanidade cometidos a partir da vigência do mencionado tratado. Essa tese, obviamente, deve ser rejeitada.
Como já dito anteriormente, crimes contra a humanidade, conforme a ordem internacional, são imprescritíveis. A proibição à tortura, por exemplo, é um direito inderrogável. Quando são cometidos tais delitos, é a humanidade que se instala no estatuto de vítima. Neste contexto, a dificuldade existente em falar de crime contra a humanidade, ao longo da História, decorre do fato de que ele pode corresponder ao tratamento desumano, por um Estado, de sua população, sobre seu próprio território, competência que correspondia ao domínio reservado dos Estados (VENTURA, 2011).
Entretanto, já em 1945, o Acordo de Londres, que instituiu o Tribunal de Nuremberg, reverteu o princípio da imunidade no que tange à responsabilidade individual dos violadores, ao possibilitar o julgamento de agentes públicos que praticaram graves abusos de direitos humanos em nome do Estado (VENTURA, 2011). Sendo assim, existe no Direito Internacional um grupo de normas que visa à punição de autores de crimes contra a humanidade, de tal forma que é um dever de todos os Estados da comunidade internacional punir os perpetradores de crimes contra a humanidade.
De acordo com Ventura (2011), crimes contra a humanidade são imprescritíveis, pois nos Estados onde são praticados existe a impossibilidade material de processo dos grandes violadores, antes que a remoção do entulho autoritário se opere no ordenamento jurídico nacional, critério temporal que não é passível de medição. No caso brasileiro, , a tarefa é notoriamente inacabada.
No contexto da ditadura militar brasileira, já foi debatido no capítulo anterior que, além da tortura, crime considerado imprescritível, a prática do desaparecimento forçado constituiu-se numa política oficial e sistemática do Estado autoritário. Neste aspecto, convém reforçar que esse delito é considerado permanente. Logo, inicia-se no momento em que ocorre a privação de liberdade da vítima e não cessa enquanto não se conhecer o verdadeiro paradeiro da pessoa desaparecida e se certificar de sua identidade.
Assim, a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado, de 1994, prevê que a ação penal e a pena imposta judicialmente para esse crime não estão sujeitas à prescrição (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1994). Ademais, a Convenção Internacional para a proteção de Todas as pessoas contra o Desaparecimento Forçado, de 2006, estabelece que, caso se adote um prazo prescricional para esse delito, deve o Estado assegurar que tal prazo tenha início no momento em que cessar o desaparecimento, haja vista a natureza permanente dessa violação (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2016).
Esse entendimento legal é correto, pois qual seria o termo inicial da prescrição? O termo prescricional seria facilmente fixado se houvesse algum dado que indicasse que, em certo momento, as vítimas foram mortas em um respectivo mês, de tal maneira e diante de tal e qual circunstância, ou faleceram no ano tal. A partir daí, começaria a contar o prazo de prescrição. Qual o início do tempo de prazo prescricional em caso de desaparecimento forçado, tendo em vista que a conduta ainda não cessou, já que o paradeiro da vítima desaparecida ainda não foi localizado?
Estes questionamentos são de grande valia, porquanto a prática do desaparecimento forçado constituiu-se em uma política oficial e sistemática do Estado brasileiro contra os opositores políticos do regime militar. Até os dias atuais, parentes de vítimas ainda lutam para obter informações acerca do paradeiro de seus entes queridos, mortos pela ditadura.
Logo, a alegação do STF de que ocorreu a prescrição dos delitos cometidos pela ditadura militar não merece prosperar, haja vista que os sistemas de proteção aos direitos humanos (global e interamericano) entendem pela imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade. A tortura é considerada um delito imprescritível e sua absoluta proibição é inderrogável. Além disto, o desaparecimento forçado, como já decidido pela Corte IDH, é um crime permanente e que não cessa enquanto não se conhecer o destino da pessoa desaparecida e proceder à sua identificação. Portanto, o prazo prescricional começa a ser contado desse momento. Desta feita, destaca-se que:
Os crimes contra a humanidade são, portanto, crimes internacionais, não dizem respeito apenas aos interesses internos da sociedade política na qual ocorreram. Mesmo que o estado não possua leis hábeis à apuração das responsabilidades de quem cometeu esse tipo de delito, tal não o exime de sua responsabilidade internacional. A lupa pela qual os crimes contra a humanidade devem ser vistos não é a lupa do Direito nacional ou do Direito Penal, ambos voltados aos crimes comuns, mas sim a do Direito Internacional Humanitário. Tais crimes, pois, pela sua própria natureza, são imprescritíveis. A sua imprescritibilidade decorre das normas, princípios e costumes do Direito Internacional, aos quais um Estado se vincula quando ratifica tratados e convenções, assumindo obrigações nesse plano (SILVA FILHO, 2011, p. 290).
Fazendo referência à segurança jurídica, da qual os princípios da legalidade e prescrição são garantes, é necessário questionar: qual interpretação da Lei de Anistia causa maior insegurança jurídica, a que torna possível o julgamento de um agente público por graves violações de direitos humanos praticadas ou a que garante a impunidade dessas mesmas violações? A tolerância com a prática de crimes contra a humanidade é, sem dúvida, mais perigosa à segurança jurídica de um Estado de Direito do que o entendimento relativo à imprescritibilidade de tais delitos.
A partir do que já foi relatado sobre crimes contra a humanidade e contextualizando isto com a transição democrática brasileira, aparenta imoral dizer, como fez o ministro Cezar Peluso, no julgamento da ADPF nº 153, que haveria proporcionalidade entre “os lados” e uma “disputa pelo poder”, nos anos da ditadura. “Que é a mesma situação histórica e, portanto, terá de receber tratamento igual”, ou “que há crimes de ambos os lados” (SILVA FILHO, 2011, p. 290). Tal argumentação deve ser refutada. Ora, como bem questiona Silva Filho (2011, p. 290), “[...] é crime resistir, ainda que pelas armas, a um Estado ilegítimo, arbitrário, censor e que elimina do cenário jurídico as garantias mais básicas da pessoa humana? [...]”. Para aqueles que não toleram a prática dos crimes contra a humanidade, tal ato deve ser chamado por outro nome, qual seja: direito de resistência.
Silva Filho (2011) ainda ressalta que o ministro Marco Aurélio Mello, por sua vez, no julgamento da ação, relembrou o seu raciocínio feita por ele na Extradição 974, relativa a Manuel Cordero Piacentini, agente da ditadura militar uruguaia que atuou intensamente na Operação Condor – rede de informações das ditaduras latino-americanas, que visava localizar, prender e eliminar os opositores políticos desses regimes –, sendo Cordero responsável por inúmeras mortes. Naquela ocasião, o ministro Marco Aurélio foi voto vencido, ao negar totalmente a extradição do agente uruguaio, argumentando que, se tais crimes tivessem sido cometidos no Brasil, estariam abrangidos pela Lei de Anistia e, desta forma, deveria se aplicar ao caso uma espécie de “simetria”.
Para o ministro, portanto, a anistia brasileira, além de ser imune à noção de crimes contra a humanidade e à evolução do Direito Internacional, possuiria uma impressionante aplicação extraterritorial (SILVA FILHO, 2011). Vale lembrar, ainda, que o mencionado ministro, em entrevista concedida à uma emissora de televisão, afirmou que a ditadura militar teria sido “um mal necessário” e que era “melhor não esperar para ver o que se avizinhava”.
Já o Ministro Celso de Mello, em seu voto, diferenciou o que chamou de “anistias em branco” ou autoanistias, usadas pelas ditaduras latino-americanas, daquelas de “mão dupla” ou “dupla via” que, segundo ele, seria o caso brasileiro, conforme Ventura (2011, p. 308). Esse argumento, ainda segundo o autor, permitiria crer que a jurisprudência interamericana não se aplicaria ao caso brasileiro, “[...] não fosse a evidência de que a anistia concedida a outrem não anula a outorgada a si mesmo”. O indivíduo pode perdoar a si mesmo, moral ou religiosamente, mas o perdão jurídico só pode ser concedido pelo Estado. No caso brasileiro, o Estado anistiou seus agentes, e isto é autoanistia. Neste aspecto, o autor aponta que o fato de o órgão estatal que praticou a violação ter sido o Legislativo, quando aprovou a lei, não retira sua antijuridicidade. Esse raciocínio é lúcido, vez que até as emendas constitucionais aprovadas pelo Legislativo podem ser julgadas inconstitucionais.
Outrossim, faz-se necessário ressaltar trecho do Acórdão da ADPF 153:
No Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a reescrever leis de anistia. [...] Dado que esse acordo resultou em um texto de lei, quem poderia revê-lo seria exclusivamente o Poder Legislativo. Ao STF não incumbe alterar textos normativos concessivos de anistias. A ele não incumbe legislar ao apreciar ADPFs, senão apurar, em casos tais, a compatibilidade entre os textos normativos pré-constitucionais e a Constituição (BRASIL, 2010, p. 38).
Esse trecho do acórdão representa o descompasso da Corte Brasileira com os rumos tomados pelo Direito Internacional nas últimas décadas, sobretudo na América Latina. Trata-se de um trecho sintomático. As Cortes Supremas de países vizinhos que, assim como o Brasil, enfrentaram regime de exceção na segunda metade do século XX, já decidiram inúmeras vezes pela ilegitimidade de leis de anistia, que visavam perdoar os crimes cometidos pelos agentes estatais.
Neste diapasão, a Corte Uruguaia julgou inconstitucionais diversos dispositivos da chamada “Lei de Caducidade” (Lei nº 15.848/1986), ressaltando que a ilegitimidade de uma lei de anistia editada em benefício de funcionários militares que cometeram graves violações de direitos humanos, gozando de impunidade durante regimes de fato, foi declarada por órgãos jurisdicionais, tanto da comunidade internacional como de Estados que passaram por processos semelhantes ao do Uruguai (VENTURA, 2011).
Ademais, como já apontado no tópico anterior, a Corte Suprema de Justiça Argentina considerou que as leis de “Ponto Final” (Lei nº 23.492/1986) e de “Obediência Devida” (Lei nº 23.521/1987) impediam o julgamento de violações cometidas no regime repressivo e seriam incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos. Essa decisão tem permitido o julgamento de agentes militares que cometeram crimes contra a humanidade durante a ditadura argentina.
Por sentença da Corte Interamericana, leis de anistia no Peru foram invalidadas, com fundamento no dever do Estado de investigar, julgar e punir graves violações de direitos humanos.
Observa-se, portanto, que a decisão do STF em manter a anistia concedida pela Lei nº 6.683/1979 aos agentes públicos perpetradores de crimes contra a humanidade durante o regime militar, demonstra que o Estado Brasileiro está muito aquém do compromisso firmado por países vizinhos em combater tais delitos. A argumentação de que não cabe ao Judiciário “reescrever leis de anistia” denota o atraso da Suprema Corte Brasileira diante de decisões, como as da Argentina e Uruguai, citadas acima.
Decidindo por manter a interpretação da Lei de Anistia que beneficia agentes da repressão militar, os ministros do STF acabaram por reproduzir o “mal menor” que representou a promulgação da mencionada lei, nos moldes pretendidos pelo regime opressor. Como afirma Ventura (2011), prevaleceu uma equação conjuntural do Poder Legislativo brasileiro, reconhecida em muitos trechos do acórdão: a anistia possível, em 1979, foi aquela. Todavia, isto não significa dizer que seja lícita.
Por derradeiro, sacrificar os direitos de muitos para manter os privilégios de alguns poucos, como fez o STF, representa um retrocesso na luta pela proteção aos direitos humanos, sobretudo, em um país onde ainda se tolera, velada ou abertamente, a tortura e a execução sumária, muitas vezes praticadas contra negros e favelados. A Corte Brasileira perdeu a oportunidade de colocar o Brasil no mesmo patamar de proteção aos direitos humanos e efetivação do direito à justiça em que se encontram países vizinhos, como Chile, Argentina, Uruguai e Peru, que julgaram e puniram agentes públicos responsáveis pelo cometimento de crimes contra a humanidade. Ao manter a interpretação da Lei de Anistia que obstaculiza o julgamento de torturadores, por exemplo, o STF optou pela impunidade em detrimento do direito à justiça.
4.3 O julgamento do Caso “Guerrilha do Araguaia” pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
Antes de tratar especificamente sobre o Caso Gomes e Lund e outros versus Brasil, também conhecido como Caso “Guerrilha do Araguaia”, é necessário tecer algumas considerações sobre o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.
O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é o mecanismo regional estabelecido pela Organização dos Estados Americanos (OEA) para promover e defender os direitos humanos. É composto por dois órgãos de tutela de direitos: a CIDH e a Corte IDH.
Entre as tarefas mais relevantes da CIDH constam a realização de visitas de avaliação da situação dos direitos humanos nos países da região; estudos especiais sobre temas que afetam o gozo de direitos fundamentais ou sobre a situação desses direitos e o processamento de denúncias individuais de violação de direitos humanos. Já a Corte Interamericana foi criada pela Convenção Americana de Direitos Humanos, que permite o estabelecimento de responsabilidade estatal por violações a uma ampla gama de direitos civis e políticos através do processamento de casos que são apresentados à Corte após o trâmite na CIDH. Para que as vítimas tenham acesso a esse órgão, é necessário que os Estados tenham ratificado a Convenção e aceitado a jurisdição da Corte (AFFONSO; KRSTICEVIC, 2011).
Os casos individuais processados perante a CIDH e a Corte estabelecem a responsabilidade do Estado pela violação aos direitos humanos de pessoas específicas. Como resultados desses processos, são emitidas decisões de caráter vinculante pela CIDH ou pela Corte IDH, nos casos em que esta última tenha jurisdição. Tais decisões podem determinar medidas interlocutórias de caráter cautelar, assim como nas decisões finais em que se estabelecem os fatos provados (acompanhados de um contexto histórico), o Direito aplicável e, se determinada a existência de violações aos direitos humanos, as reparações devidas, que incluem o restabelecimento da situação anterior à violação reconhecida pelo tribunal ou, se não for possível, a indenização pecuniária pelo dano causado. Essa reparação se traduz, na prática, como ordens para que leis sejam alteradas, realização de atos de reconhecimento público de responsabilidade do Estado ou a criação de instituições (AFFONSO; KRSTICEVIC, 2011).
Destarte, o papel do Sistema Interamericano não se restringe à reparação individual dos danos causados às vítimas, como também exerce importante contribuição na promoção de políticas públicas, reformas legislativas, institucionais e mudanças sociais, políticas e culturais, fundamentais para o fortalecimento do regime democrático.
Neste sentido, no ano de 2010, foi julgado o notório Caso Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) versus Brasil, em que a Corte IDH decidiu que os crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura militar brasileira devem ser devidamente investigados, julgados e, se for o caso, punidos (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010). Desta forma, é preciso destacar o que foi o movimento conhecido como “Guerrilha do Araguaia”, para que se possa entender os fundamentos da decisão da Corte IDH no caso acima mencionado.
4.3.1 A Guerrilha do Araguaia
A partir do ano de 1966, membros do Partido Comunista do Brasil começaram a buscar regiões afastadas do país para organizar um grupo de resistência rural à ditadura militar, instalada dois anos antes, e escolheram a região do Bico do Papagaio, situada à esquerda do Rio Araguaia, no sul do Estado do Pará, como local adequado para estabelecer o movimento (AFFONSO; KRSTICEVIC, 2011).
Segundo Affonso e Krsticevic (2011), entre 1966 e 1972, foram se incorporando ao grupo inicial militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), na sua maioria, homens e mulheres oriundos do movimento estudantil, que estavam na clandestinidade, com identidades falsas e sem condições de viver nas grandes cidades. Esse grupo se denominou “Guerrilha do Araguaia”. Estima-se que, em abril de 1972, cerca de 90 pessoas formavam o grupo, entre militantes do partido e camponeses da região.
De 1972 a 1975, as Forças Armadas realizaram nove operações no sul do Estado do Pará, com o objetivo de eliminar os militantes do partido e os camponeses que a eles se somaram no movimento de resistência ao regime militar, a Guerrilha do Araguaia. Como apontam Affonso e Krsticevic (2011), as campanhas militares foram estabelecidas em consonância com o aparato de guerra. Neste contexto, estiveram envolvidos aproximadamente quatro mil homens do Exército, Aeronáutica e Marinha. Durante as campanhas, ocorreram inúmeras prisões ilegais e arbitrárias, torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados, perpetrados contra aqueles que compunham o movimento e os camponeses que viviam na região.
Depoimentos de camponeses e ex-soldados da época, prestados ao Ministério Público Federal, denunciaram que até outubro de 1974, os últimos militantes do partido foram vistos por moradores da região sendo detidos em bases militares, antes de desaparecerem.
A ditadura militar realizou as campanhas de forma totalmente confidencial, tratando-se como segredo de Estado. A sociedade da época e os familiares dos membros da guerrilha não tiveram acesso à informação do que ocorria na região do Araguaia (AFFONSO; KRSTICEVIC, 2011).
4.3.2 Denúncia do caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Os dez anos sem informação acerca do paradeiro de seus familiares, apesar das solicitações realizadas junto ao Governo Brasileiro, determinaram que 22 pais e mães de desaparecidos da Guerrilha do Araguaia ajuizassem em 1982, uma ação civil ordinária, perante a Justiça Federal Brasileira, cobrando informações sobre o paradeiro e as circunstâncias dos desaparecimentos, assim como a localização dos mesmos e, no caso de que não estivessem mais vivos, a determinação da identificação e entrega dos restos mortais aos respectivos parentes.
Em 1995, passados treze anos do ajuizamento da ação, diante da demora injustificada no andamento do processo e pela falta de diligência, os familiares dos desaparecidos, representados por três Organizações não Governamentais (ONGs) – o Centro pela Justiça e Direito Internacional, Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e Comissão de Mortos e Desaparecidos de São Paulo – enviaram denúncia internacional contra o Estado Brasileiro perante a Corte IDH. No âmbito da CIDH, destacam-se as seguintes ocorrências:
(i) A tentativa de solução amistosa entre as partes impulsionada pela Comissão, em 1996. O Estado se recusou a negociar quando os peticionários condicionaram o acordo à consideração integral das necessidades dos familiares e da sociedade pelo direito à verdade histórica; (ii) a realização de audiências na CIDH com a presença dos representantes e familiares das vítimas, em 1997 e 2001, quando finalmente o caso foi admitido; (iii) o encaminhamento, cinco anos depois, das alegações finais dos representantes das vítimas, solicitando que a CIDH analisasse o mérito do caso e emitisse seu Relatório Final; (iv) a realização, perante a CIDH, de uma audiência temática em outubro de 2008. A audiência foi solicitada, pois os representantes entenderam que era necessário esclarecer as consequências da Lei de Anistia no Brasil e sensibilizar o governo e os administradores de justiça a respeito da jurisprudência internacional pacífica do direito à verdade e à justiça (AFFONSO; KRSTICEVIC, 2011, p. 364).
O Relatório Final da CIDH, no Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil, determinou a responsabilidade internacional do Estado Brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado das vítimas da Guerrilha do Araguaia. Considerou, ainda, que a interpretação da Lei de Anistia no Brasil, ao ser aplicada aos agentes da repressão envolvidos em crimes da ditadura, viola a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, porque tem impedido a investigação dos fatos e o eventual julgamento dos responsáveis (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010).
Ao final do documento, a CIDH teceu recomendações ao Brasil, para que fossem cumpridas no prazo de dois meses. Após analisar as informações apresentadas pelo Estado, consideradas insatisfatórias, decidiu enviar o caso para ser processado na Corte IDH. Em maio de 2010, foi realizada a audiência pública do caso na CIDH, com a participação de peritos e testemunhas das partes. Muitos familiares das vítimas se deslocaram para San José, na Costa Rica, para auxiliar os representantes das vítimas e assistir à audiência (AFFONSO; KRSTICEVIC, 2011).
4.3.3 A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Ao julgar o caso em questão, em 24 de novembro de 2010, a Corte IDH examinou pela primeira vez um caso de graves violações a direitos humanos praticadas no Brasil durante o regime militar. O Tribunal condenou o Estado Brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 62 pessoas, incluindo membros do PCdoB e camponeses da região (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010). Segundo Gomes e Mazzuoli (2011), dos 62 desaparecidos no Araguaia só foram encontrados quatro corpos, devido à ação de parentes. A Corte entendeu que o Brasil não empreendeu todos os esforções necessários para investigar, julgar e punir os responsáveis pelo desaparecimento forçado das vítimas e pela execução sumária da Sra. Maria Lúcia Petit da Silva.
Neste contexto, decidiu que a interpretação dada à Lei de Anistia, de 1979, que impede a investigação, julgamento e punição dos responsáveis por tais violações, é incompatível com as obrigações assumidas pelo Brasil ao vincular-se à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Determinou, ainda, a responsabilidade do Estado Brasileiro pelo desaparecimento forçado dos guerrilheiros do Araguaia e a obrigação de que sejam realizados todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se possível, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010).
Ademais, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (2010) também determinou a continuidade das ações desenvolvidas em matéria de capacitação e a implementação, em prazo razoável, de um programa ou curso permanente sobre direitos humanos, dirigidos às Forças Armadas. Continuando, determinou a adoção de medidas necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas, em conformidade com os parâmetros internacionais. Por derradeiro, a Corte considerou o estabelecimento de uma comissão da verdade, como mecanismo importante de cumprimento da obrigação do Estado de garantir o direito à sociedade de conhecer a verdade sobre seu passado, contribuindo para a preservação da memória histórica e fortalecendo o direito à verdade.