1. INTRODUÇÃO
É sabido que o Brasil enfrenta uma grave crise econômica e passa por intensa instabilidade política. Longe de adentrar ao mérito do processo de impeachment de Dilma Rousseff e da viabilidade de governabilidade do atual Presidente da República, Michel Temer, há alguns meses, antes mesmo da efetivação do impedimento, já víamos notícias sobre propostas que visavam reformas em diversas áreas: trabalhista, previdenciária e eleitoral, em especial.
No trimestre encerrado em julho, a taxa de desemprego alcançou 11,6% e atingiu o maior nível registrado pela série histórica da Pnad Contínua do IBGE, iniciada em 2012. Segundo matéria veiculada pelo portal de notícias G1[1], esse alarmante índice coloca o Brasil como 7º dentre os países com maiores taxas de desemprego, ficando atrás apenas da África do Sul (26,6%), Espanha (19,9%), Montenegro (17,3%), Jordânia (14,7%), Croácia (13,3%) e Chipre (11,7%). Entre maio e julho, estima-se que havia 11,8 milhões de pessoas desempregadas.
Diante desse quadro, o Presidente estuda formas de reverter o contingente de 11,6 milhões de desempregados e 623 mil vagas fechadas só em 2016. Em 30 de Agosto de 2016, em vias de ocorrer a votação do impeachment, foi noticiado pelo Estadão[2] que o Governo Temer pretende, dentre outros tópicos na reforma trabalhista, criar dois novos tipos de contrato de trabalho: o parcial e o intermitente. Há nessa proposta a clara intenção de criar mecanismos para superação do alto índice de desemprego, utilizando-se, possivelmente, de uma abrupta flexibilização na contratação de empregados. Como tal proposta não tramita no Poder Legislativo, será tratada aqui como uma possibilidade. Mesmo sendo assim, não menos importante é sua análise, vez que em tempos de instabilidade política, tais proposta geradas por novos governos tendem a se concretizar rapidamente visando mudar o cenário nacional e acalmar a população.
Segundo a notícia, em ambos os contratos, a carga semanal seria inferior a 44 horas semanais (limite máximo permitido pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 7º, inciso XIII[3]) e direitos trabalhistas, como décimo terceiro salário e férias, seriam calculados de forma proporcional. A diferença entre esses dois novos tipos de contrato reside na regularidade de ocorrência da prestação de serviços. No contrato parcial, a prestação se daria em dias e horas previamente determinados; já no contrato de trabalho intermitente, o empregado seria acionado conforme a necessidade do empregador. Entretanto, tamanha flexibilização necessitará de intenso debate, visto que a norma trabalhista tem como escopo principal a proteção do empregado diante dos excessos recorrentes do empregador.
Para a correta compreensão do tema abordado pelo presente artigo, se faz necessária, ao menos, uma sucinta abordagem dos conceitos e da natureza jurídica dos institutos nele relacionados. Assim, deve-se entender, incialmente, por meio de uma digressão histórica, a origem das relações trabalhistas e as fases de criação e evolução do ramo justrabalhista no Brasil. A forma de contratação guarda especial relevância com a iminente proposta de reforma trabalhista.
2. BREVE EXPOSIÇÃO DA EVOLUÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL E CONTRATO DE TRABALHO
A circunstância que originou o Direito do Trabalho (os movimentos sociais urbanos e, em especial o sindicalismo), processos de luta, organização e representação da classe trabalhadora, fizeram com que esse novo ramo jurídico incorporasse em seu núcleo as dinâmicas próprias a atuação coletiva. O atual sistema de desigualdade, fundado no capitalismo, convive com o reconhecimento do direito a um patamar mínimo para convivência na realidade social.
No Brasil, onde apenas pôde-se começar a estudar o ramo justrabalhista com a existência do trabalho livre[4], após as fases de manifestações incipientes (1888 a 1930) e de institucionalização do Direito do Trabalho (a partir de 1930), apenas em 1943, o modelo justrabalhista se reuniu em um único diploma normativo: a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)[5]. Antes da elaboração da legislação do trabalho, cabia ao Código Civil de 1916[6] regular, em apenas vinte e dois artigos, a “locação de serviços”, ou seja, as atividades do trabalho humano subordinado[7].
Afirma Vólia Bonfim[8], que a Consolidação “proporcionou o conhecimento global dos direitos trabalhistas por todos os interessados, principalmente empregados e empregadores”. A CLT, conforme prevê seu artigo 1º, visa regular as relações individuais e coletivas de trabalho nela previstas. A evolução da política nacional não permitiu a existência de uma fase de consolidação do Direito do Trabalho. O modelo constituído entre 1930 e 1945 quase se manteve intocado até a Constituição da República de 1988 que arrola no art. 7º os direitos dos trabalhadores e outros que visam à melhoria da condição dos empregados urbanos e rurais, como a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa; o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço; o seguro-desemprego; o salário mínimo; a irredutibilidade salarial; o décimo terceiro salário; a duração do trabalho não superior a oito horas diárias, entre outros[9].
O contrato é um “acordo entre duas ou mais pessoas que transferem entre si algum direito ou se sujeitam a alguma obrigação, convenção; ajuste, acordo”[10]. Nas sucintas palavras de Alice Monteiro de Barros[11], contrato de trabalho “é o vínculo que impõe a subordinação do prestador de serviços ao empregador, detentor do poder diretivo”. A autora propõe, discordando do art. 442 da CLT[12], que confunde contrato e relação de emprego, o seguinte conceito: contrato de trabalho é acordo, expresso - verbal ou escrito - ou tácito, firmado entre uma pessoa física, o empregado, e uma pessoa física, jurídica ou uma entidade, o empregador, por intermédio do qual o indivíduo contratado se compromete a realizar, pessoalmente, um serviço de natureza não eventual em favor do contratante, mediante salário, com subordinação jurídica.
A doutrina busca explicar a natureza jurídica do contrato trabalhista por meio de três teorias: anticontratualista; acontratualista e contratualista. A teoria contratualista o identifica como um contrato de direito civil, seja como compra e venda da força de trabalho em troca da remuneração, locação de serviços com posterior restituição da coisa alugada em seu status quo ante, mandato ou uma sociedade na qual empregado e empregador se beneficiam do lucro produzido. Essa é a teoria que prevalece no Brasil. Entretanto, esse conceito não é adotado em sua forma civilista clássica, mas considera a vontade como elemento essencial à configuração do contrato de trabalho que é carregado por caracteres do contrato de adesão, de acordo com Alice Monteiro de Barros[13], como, também, se pode inferir do art. 444 da CLT[14].
Por analogia ao art. 104[15] do Código Civil de 2002, são requisitos do contrato de trabalho a capacidade das partes, a licitude do objeto e o consentimento, que devem existir concomitantemente. Sendo o contrato de trabalho especial, adiciona-se a esses a forma prescrita.
3. FLEXIBILIZAÇÃO TRABALHISTA
A flexibilização que aparentemente será proposta pelo Presidente Temer nada mais é que uma forma de amenizar o rigor de certas normas justrabalhista. Esse mecanismo não é regra no Direito do Trabalho, conforme afirma Gustavo Filipe Garcia[16]:
A flexibilização in pejus de direitos trabalhistas, mesmo por meio de negociação coletiva, ainda que admitida pela Constituição Federal de 1988, é verdadeira exceção no sistema jurídico. Portanto, não se pode concluir que a flexibilização integra os fundamentos, ou seja, a estrutura e a essência do Direito do Trabalho.
Trata-se de instrumento utilizado apenas em hipóteses específicas e permitida apenas por intermédio de negociação coletiva. Segundo Arnaldo Süssekind[17]:
A Constituição brasileira adotou, embora timidamente, a flexibilização de algumas de suas normas: redutibilidade salarial, compensação de horários na semana e trabalho em turnos de revezamento (art. 7.º, VI, XIII e XIV); mas sempre sob tutela sindical.
Maurício Godinho Delgado[18] conceitua flexibilização como uma forma de diminuir a imperatividade das normas justrabalhista ou a amplitude de seus efeitos, sempre conforme a autorização legal ou coletivamente negociada, sendo inválidas as cláusulas do acordo ou convenção coletiva de trabalho que desrespeitam os limites constitucionais e legais impostos à flexibilização. Segundo o autor, eminente Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), são exemplos recorrentes de tentativas de flexibilização irregular “diminuição do intervalo para refeição e descanso em jornadas superior a seis horas, do lapso legal de uma hora para montante inferior”[19] e “desconsideração da natureza salarial e das repercussões contratuais do tempo gasto em horas in itinere”[20]. Entretanto, como afirma Delgado, a Constituição e o Direito do Trabalho têm limitado a validade desse tipo de flexibilização apenas quando a norma autorizar a flexibilização autônoma ou quando se tratar de parcela criada pela própria negociação coletiva.
4. ANÁLISE DA IMINENTE PROPOSTA DE CRIAÇÃO DOS CONTRATOS DE TRABALHO PARCIAL E INTERMITENTE
A proposta de criação de novos contratos de trabalho, aparentemente, envereda por esse caminho da flexibilização sempre lembrado diante de crises econômicas profundas que atingem sobremaneira as empresas e ameaçam a continuidade das relações de emprego.
Diante da abordagem da evolução da relação jus laboral no Brasil, da teoria contratualista e da flexibilização dos direitos trabalhistas, abre-se a possibilidade de discutir o mérito da iminente proposta.
Ao que parece, a sugestão traz dois contratos de trabalho por prazo indeterminado, especiais (em vista da regulamentação específica que receberão) – portanto, necessariamente, expressos e escritos - que fixarão horários de trabalho conforme a vontade do empregador. Até, então, nada vai além da normalidade.
Entretanto, cabe salientar que a CLT já traz em seu art. 58-A[21] o trabalho em regime de tempo parcial, com salário proporcional, que prevê carga semanal não superior a 25 horas, sendo vedada a prestação de horas extras. Essa hipótese em muito se parece com o novo contrato parcial, pelo qual, por exemplo, o empregado poderia trabalhar aos finais de semana, apenas, conforme avençado. No entanto, como se convencionaria a jornada de trabalho? Tanto o regime de tempo parcial quanto o contrato parcial se submetem à Constituição que prevê jornada máxima de 8 horas. Se, no exemplo dado, o empregado cumprisse, apenas, a jornada de 8 horas no sábado e 8 horas no domingo, totalizando carga semanal de 16 horas, por estar abarcado pelo limite máximo do regime por tempo parcial, em nada dele se diferenciaria, visto que até mesmo o salário é proporcional ao trabalho realizado de forma integral. Vindo a ser o contrato parcial tratado em lei específica, pode ele ser abordado de forma diferente, incidindoa flexibilização, por exemplo, permitindo a prestação de horas extras, o que pode determinar uma jornada extenuante e prejudicial ao trabalhador. Por esse ponto de vista, não parece que o contrato parcial traria benefícios ao empregado que, refém da crise econômica e submetido ao temor do desemprego, se verá disposto a abrir mão de direitos fundamentais e benefícios celetistas tão caros e arduamente conquistados.
Por sua vez, o contrato de trabalho intermitente poderia mudar a face do trabalho avulso que conhecemos. A lei 8.212/91[22] prevê em seu art. 12, inciso VI que avulso é aquele trabalhador que presta, a diversas empresas, sem vínculo empregatício, serviços de natureza urbana ou rural. O contrato intermitente poderia regularizar os vulgos “bicos”, passando a configurar uma relação empregatícia entre aqueles que dispõem de certos serviços apenas conforme sua necessidade, por exemplo, a contratação de garçons pelo dono do buffet conforme a quantidade necessária em determinada festa. A esses trabalhadores que hoje vivem à margem do emprego formal o contrato intermitente poderia trazer benefícios, aumentando a estabilidade dessas relações. Entretanto, nessa linha de pensamento, é custoso observar vantagem para o empregador que antes se via obrigado a pagar tão somente as horas trabalhadas e que, diante de um contrato formal de emprego, ainda que exercido de forma intermitente, atrairia o ônus de cumprir com muitos outros deveres trabalhistas. Ademais, deve haver uma previsão mínima de antecipação da convocação do empregado para que ele possa se planejar e não ficar à disposição do empregador a todo o tempo, podendo manter diversas relações empregatícias do gênero.
De toda forma, há que se aguardar mais informações e a publicização desse projeto de criação de novas formas de contratação, uma vez que ele poderá trazer tanto benefícios quanto malefícios à relação de emprego como vemos hoje. É importante a observância de princípios trabalhistas, em especial o da proteção que visa dar ao polo mais fraco da relação – o empregado – um tratamento jurídico superior por meio de medidas protetivas para que que alcance uma efetiva igualdade substancial[23]. Outro princípio que pode ser ressaltado na análise desses novos contratos sacados como instrumentos para redução da crise econômica nacional é o da alteridade, pois é sabido que o setor privado é um dos que mais sofre com a redução do consumo – consequência do aumento na taxa de desemprego -, mas nem por isso o risco do negócio poderá ser transferido ao empregado. O que não se deve perder de vista, enquanto se aguarda, é que a tendência, em tempos de crise, é sempre flexibilizar e, por consequência, precarizar as condições de trabalho.
Assim, deve ser sopesado, individualmente em cada novo tipo de contrato, o que poderá ser renunciado e o que pode ser agregado, tendo por base irredutível o patamar mínimo hoje alcançado. Não se pode negar que a atualidade necessita de novas ferramentas que viabilizam o acesso e a continuidade da relação de emprego, mas destituir o empregado dos seus direitos mais básicos, flexibilizando-os em nome da crise pode levar o mundo jus laboral a um caminho sem volta.
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