Ultimamente, muito se tem discutido sobre a iniciativa do ministério público federal de elaborar um conjunto de medidas tendentes a alterar a Constituição e, principalmente, os códigos penal e de processo penal, tornando-os mais rigorosos tanto através do agravamento de penas quanto à possibilidade de tolher, cada vez mais, o direito de defesa e a recalcitrância frente às arbitrariedades e abuso de poder por parte dos agentes públicos.
As denominadas “10 Medidas Contra a Corrupção” contam com uma vasta campanha publicitária, vendidas à sociedade como um misto de panaceia e toque de Midas, ainda que revestidas de embustes que camuflam os seus reais desideratos e a danosidade às garantias do cidadão, dentro de um sistema processual que se pretende democrático e de direito. Essas medidas não têm outra finalidade senão a de atender às fantasias megalomaníacas de uma casta que se arvora apresentar-se à sociedade como sendo as vestais da moralidade e da honestidade, dividindo a sociedade em duas classes antagônicas. Uma, na qual todos as pessoas são suspeitas ou desonestas, e a deles, os imaculados e insuspeitos representantes do ministério público. Para estes últimos, não é suficiente apenas a pretenciosa vontade de serem vistos como a última reserva moral do universo. É preciso que se aparelhem, que se dotem de poderes absolutos onde possam personificar as figuras da autoridade ética, do investigador, do julgador e do executor. Além disso, como em um arremate aos seus delírios de onipotência, desejam que sejam suprimidas todas as garantias inerentes à dignidade da pessoa humana, à constitucional presunção de inocência e, o que ressai ainda mais mefistofélico, a institucionalização da tirania e da ilicitude – que passaria a ser lícito – como meio de prova incriminadora. Segundo seus séquitos, “desde que de boa fé”. Por essa lógica, se um algoz, nos porões das prisões, submetesse uma pessoa à uma sessão de tortura para obtenção de confissão de autoria de crime, essa confissão estaria dentro da “licitude” dos meios de obtenção de provas, considerando que o torturador torturou “de boa fé”.
Dentre todas as aberrações, defendem alterações nos artigos 110 e 112 do código penal para tornar a pretensão punitiva por tempo demasiadamente longo, transformando o indivíduo em um refém “ad eternum” dos talantes e dos arroubos de perseguidores epitetados de “justiceiros”. De todas as teratologias elencadas a que se ressai mais gritante é a do enunciado 7, que propõe diversas alterações no capítulo que trata das nulidades no código de processo penal. Em algumas partes, o Ministério Público, aquele que outrora foi chamado de “fiscal da lei”, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais, agora pretende a supressão de arguição, por parte da defesa, de nulidade de provas ilícitas e dos atos que subvertem a ordem processual. Ao invés de ser o vigilante da correta aplicação da norma, rebatendo e combatendo a violação de direitos e garantias do acusado ou do investigado, agora o ministério público pretende retirar qualquer possibilidade de a defesa arguir nulidades, ainda que eivadas de imoralidade e prevaricação. Para tanto, pretendem os delirantes aspirantes a déspotas, instituir a preclusão para a alegação de nulidades, ainda que para aquelas reputadas de nulidade absoluta. Prosseguindo em suas dantescas miragens, querem condicionar as arguições de nulidades à interrupção da prescrição, uma forma de “punir” ou desencorajar aquele que se sentir prejudicado ou injustiçado, a não questionar nenhuma arbitrariedade e ilegalidade contra si perpetradas. Em verdade, é preciso que a população não se deixe ser atraída por esse canto de sereia. Esse engodo tem nome. Chama-se deslealdade social e oportunismo institucional ou, mais precisamente, delírios corporativistas movidos por surtos de psicoses derivadas da exaltação de impulsos totalitários reprimidos ou sem hibernação. Trata-se, mais uma vez, do mais descarado oportunismo, do qual se valem do frágil momento político e social, coincidente, ainda, com a grave crise de credibilidade pela qual atravessa as instituições públicas brasileiras. Esse momento de absoluta falência do sistema político, onde, principalmente, o legislativo e o governo federal são compostos por delinquentes, acossados em inumeráveis casos de roubalheira, portanto, sem condições de tomarem qualquer posicionamento que venha a contrariar os interesses daqueles que são os responsáveis pelas investigações, associados, ainda, a um contexto social marcado por uma população insolente e de indolentes cívicos, torna-se o ambiente perfeito para a investida de todo tipo de malandragem. A chantagem para a elaboração de medidas legislativas para interesse próprio ou corporativistas, é só um exemplo. E é por isso que os espertalhões de plantão se beneficiam da absoluta incapacidade de contestação ou refutação dos seus desígnios, ainda que eivados de torpeza. Essa mais recente artimanha do ministério público é consequência de sua empolgação pelo êxito alcançado pelo sepultamento da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, que visava restringir às polícias judiciárias a competência para instaurar inquérito criminal. O ministério público, então, passou para a opinião pública que caso a PEC 37 fosse aprovada no Congresso, “a sociedade seria prejudicada, pois, isso enfraqueceria o combate à corrupção”. Na época, agindo de engodo e sub-repticiamente, infiltraram-se nas manifestações de junho de 2013 e passaram a impressão de que uma das pautas das reivindicações sociais tratava-se de um “não à PEC 37”. O “combate à corrupção” é uma mentira. Quem é ingênuo para acreditar que no ministério público também não tem corrupção e que essa instituição não está totalmente partidarizada politicamente?
Ao que parece, o ministério público especializou-se na artimanha da enganação e do oportunismo. A esse respeito, manifestei-me, à época, da seguinte forma: “O Ministério Público (MP) teve um papel muito importante durante o período da ditadura militar. Não que ele a tenha combatido. Ao contrário. Serviu como uma espécie de endossador das arbitrariedades e crimes (a tortura inclusive) perpetrados nos porões das prisões. Estranhamente, a Comissão da Verdade não menciona a cumplicidade e até participação direta de muitos representantes do MP na perpetração desses crimes. Durante a Assembleia Nacional Constituinte, o MP fez-se de rogado e, tirando proveito do sentimento de euforia que inebriava a todos, apresentou-se à sociedade como o símbolo da democracia. Através de um intenso lobby e muita enganação, o MP, capitaneado por um promotor de justiça, o deputado constituinte Ibsen Pinheiro, conseguiu introduzir relevantes (para eles) direitos e garantias (privilégios) na Constituição Federal. Os poderes foram tantos que um grupo de juristas internacionais indagou aos juristas brasileiros: “como vocês deixaram que isso acontecesse”? Ao contrário de outros segmentos da sociedade, como a Ordem dos Advogados do Brasil, que reivindicaram a implementação de garantias visando aos interesses de toda a sociedade brasileira, o MP empenhou-se para garantir apenas seus interesses corporativistas. Até hoje persegue delegados de polícia, procuradores dos Estados e advogados de modo a impedir que tenham melhores salários, autonomia financeira ou que sejam asseguradas e respeitadas as prerrogativas destes últimos. A visão do MP nunca foi republicana, nem capaz de transpor a distância do próprio umbigo. Se durante a Assembleia Nacional Constituinte o MP obteve poderes enganando a Nação, com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 37 não foi diferente. Primeiro, inventou-se a mentira segundo a qual caso a PEC 37 fosse aprovada seria “um duro golpe no combate à corrupção”, pois as polícias não têm independência para investigar e são muito corruptas. Mas, o MP também nunca foi nem é independente e a corrupção, igualmente, nunca lhe foi estranha. Aliás, a corrupção nas polícias é visível porque são instituições mais acessíveis. O MP é uma instituição estratégica e convenientemente hermética, repleta de integrantes que pensam que vivem numa redoma. Com os protestos das ruas, o MP, novamente tirando proveito do estado de comoção generalizada, onde a lucidez é ofuscada pelo afloramento das paixões, dá mais uma cartada certeira. Levanta (ou paga para levantarem) o panfleto do “não à PEC 37”, introduzindo nos protestos pessoas que nem ao menos sabem se a PEC 37 faz mal com manga, além de liberar dos gabinetes estagiários e servidores, em desvio de finalidade, para se infiltrarem nas justas manifestações das ruas. Mais uma vez, o MP se beneficia, quando lhe convém, de maneira desleal e oportunista, dos justos e legítimos movimentos sociais”.
Há quem pergunte: com tanta sede de poder e pretensões megalomaníacas, quem vai fiscalizar o “fiscal da lei”? Diante do que já se tornou o ministério público, a pergunta que eu faço é: O que virá para substituir o ministério público? Do jeito que está já não serve mais ao estado democrático de direito, menos ainda às nossas aspirações civilizatórias. Todavia, é possível extrair alguma esperança desse estado de saturação institucional. Pois, como diz o astrofísico inglês Stephen Hawkin, “há uma desordem no Universo, decorrente de forças dispersivas que não se acomodam ao padrão verificado e tendem a quebrar a harmonia da relação mantida entre as partículas atômicas ou mesmo entre os corpos celestiais. Desse modo, o Universo, em expansão, ainda que de maneira não ordenada, está construindo seu próprio futuro em busca de uma ordem estável e duradoura - se é que ela existe dentro da relatividade das coisas, ou face ao único poder eterno e absoluto de Deus -, para depois colapsar-se em se mesmo, talvez para tudo recomeçar novamente." Tomara.