5. AS FUNÇÕES DA LEI COMPLEMENTAR NO SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO DAS PRESTAÇÕES PECUNIÁRIAS COMPULSÓRIAS
Dentro do tema que se vem abordando avulta chamar atenção para o papel da Lei Complementar, mormente porque o texto constitucional a exige para inúmeras situações que o tangencia. Nesse ponto, conquanto seja dogmaticamente caracterizada pela simples exigência de quorum qualificado para sua aprovação, a lei complementar tem sua essência em aspectos muito além do que o procedimental.
Com efeito, como seu nome sugere, o papel normativo da legislação complementar é integrar um outro documento normativo de fundamental importância para a sociedade, a Constituição.
Victor Nunes Leal29 chama atenção para esse fundamental papel da legislação complementar no Estado Democrático. Sem olvidar para outros aspectos, o citado jurista salienta que a lei complementar se destina a trazer a regulação de dispositivos constitucionais que não possuem aptidão para autoexecução.
Vê-se, portanto, nessa ótica, que a lei complementar à Constituição é vetor direto e necessário dos valores consagrados no texto político. Não obstante, uma advertência se faz fundamental. Conquanto seu papel seja integrativo do texto constitucional, a lei complementar não goza de status hierárquico diferenciado dentro do sistema normativo, adotando-se o escalonamento do ordenamento jurídico de KELSEN30.
O próprio VICTOR NUNES LEAL31 ensina que:
A designação de leis complementares não envolve, porém, como é intuitivo, nenhuma hierarquia do ponto de vista da eficácia em relação às outras leis declaradas não complementares. Todas as leis, complementares ou não, têm a mesma eficácia jurídica, e umas e outras se interpretam segundo as mesmas regras destinadas a resolver os conflitos de lei no tempo.
Ademais, não custa asseverar, que o papel de integração do texto constitucional assumido pela lei complementar não lhe outorga legitimidade para subverter a norma insculpida na Carta Política. É dizer, a integração deve ser de acordo com os valores plasmados no texto constitucional, sendo defeso, não só à lei complementar como a qualquer outra, discriminar onde a Constituição não o fez, ou mesmo criar óbices ilegítimos à efetividade da norma constitucional.
Estabelecidas tais balizas, cumpre destacar os pontos dentro do sistema constitucional de prestações pecuniárias compulsórias onde se exige a edição de lei complementar.
De saída, tem-se o artigo 146 da CF/88, inserto no âmago do sistema constitucional tributário, o qual exige que lei complementar disponha sobre conflito de competência entre os entes federativos. Também é papel da lei complementar regular as limitações constitucionais ao poder de tributar, bem como estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, mormente acerca da definição dos tributos, fato gerador, base de cálculo e contribuintes dos impostos previstos na Constituição. Cabe à lei complementar, ainda, dispor sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.
A Emenda Constitucional nº 42/2003 fez incluir a alínea d ao inciso III do artigo 146, estatuindo caber à lei complementar definir o tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, bem como franqueando à mesma via a instituição de regime simplificado de arrecadação tributária.
No campo do quanto já escandido acerca da intervenção do Estado na economia com vista ao atendimento do desenvolvimento econômico e do bem-estar social, a mesma Emenda Constitucional inseriu o artigo 146-A na Constituição Federal, permitindo, por meio de lei complementar, o estabelecimento de critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência.
Ainda no âmbito do sistema tributário, de se destacar o artigo 150, I, que atribui competência residual para instituição impostos à União, sempre por meio de lei complementar.
Em relação à competência tributária dos Estados federados, especificamente quanto ao imposto sobre circulação de mercadorias e serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS, é papel da lei complementar: definir seus contribuintes; dispor sobre substituição tributária; disciplinar o regime de compensação do imposto; fixar, para efeito de sua cobrança e definição do estabelecimento responsável, o local das operações relativas à circulação de mercadorias e das prestações de serviços; excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outros produtos além dos mencionados no inciso X, "a"; prever casos de manutenção de crédito, relativamente à remessa para outro Estado e exportação para o exterior, de serviços e de mercadorias; regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. definir os combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez, qualquer que seja a sua finalidade, hipótese em que não se aplicará o disposto no inciso X, b; fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço.
Já na competência tributária dos Municípios, quanto ao imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS, cabe à lei complementar: fixar as suas alíquotas máximas e mínimas; excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior; regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.
Deixando o sistema tributário e passando o enfoque às demais prestações pecuniárias compulsórias estabelecidas na Constituição Federal de 1988, é de se destacar o papel da lei complementar na instituição do empréstimo compulsório, por exemplo.
Ademais, quanto às contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico e de interesse de categoria econômica e profissional, à simetria do que ocorre com os tributos, a Constituição impôs à lei complementar o papel de definir normas gerais da exação, tais quais: fato gerador, base de cálculo e contribuintes das contribuições previstas na Constituição; dispor sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência das contribuições; o adequado tratamento arrecadatório ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas; e o tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, bem como franqueando à mesma via a instituição de regime simplificado de arrecadação.
Quanto à competência residual para instituição de contribuições – impostos com destinação específica –, estabelecida no § 4º do artigo 195, relembre-se o que já fora dito. É dizer, cabe à lei ordinária e eleição de novas grandezas econômicas, diversas das já especificadas no texto constitucional, para servir como base imponível da exação. Contudo, é papel da lei complementar a instituição das contribuições que incidirão sobre as ditas fontes de custeio.
Uma última advertência se faz necessária, todavia. O artigo 62, § 1º, III, incluído pela Emenda Constitucional nº 32/2001, proscreve em absoluto a possibilidade de matéria atribuída à legislação complementar figurar como objeto de medida provisória. Assim o é, porque dado o caráter integrativo à Constituição da lei complementar, não soa republicano franquear ao Poder Executivo, que não tem representação plural de todos os setores inseridos na sociedade como o tem o Legislativo, a competência para normatizar diretamente matérias de cunho relevantíssimo para o direito constitucional.
Vê-se, portanto, que em sede de prestações pecuniárias coativas, o papel da lei complementar é fundamental por tocar pontos extremamente sensíveis da República Federativa do Brasil como, por exemplo, direitos e garantias fundamentais e o pacto federativo.
6. CONCLUSÕES
Do estudo realizado, o que se observa é que as prestações pecuniárias compulsórias no sistema constitucional brasileiro devem ser analisadas sob o prisma dos fundamentos e dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, bem assim dos valores que norteiam a ordem econômica e a ordem social deste Estado dualista do desenvolvimento econômico e do bem-estar social.
Nesse passo, é de fundamental importância a percepção da atuação do Estado enquanto agente primordial de promoção da assistência vital. É dizer, não há como descurar que os contornos hodiernos do Estado estão voltados para o fornecimento de prestações administrativas aos particulares, mormente na gestão de interesses privados como, por exemplo, no campo da infortunística.
De tal constatação decorre que o Estado necessita angariar recursos para fazer frente ao plexo de atribuições a si conferidas. Não obstante, estes recursos não podem ser retirados daqueles destinados à coletividade indeterminadamente considerada, por uma questão de justiça. Assim, floresce no campo constitucional a previsão de prestações coativas sinalagmáticas, donde a prestação administrativa voltada à assistência vital guarda equivalência – jurídica – com os valores então vertidos pelos interessados.
Trazendo esta percepção ao campo da investigação que ora se conclui, agregado às distinções entre os regimes constitucionais tributário e das prestações coativas não tributárias, não soa ilegítimo afirmar, como fez o Supremo Tribunal Federal, que os empréstimos compulsórios e as contribuições sociais, por exemplo, possuem natureza tributária. Antes, tudo que foi exposto ao longo do trabalho impõe conclusão diametralmente oposta.
Vê-se, pois, diante da coexistência de prestações pecuniárias compulsórias tributárias e não tributárias, devendo, ainda, esclarecer, por importância prática, o regime das contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico e de interesse de categoria econômica e profissional.
Com efeito, o modelo dogmático-jurídico adotado em âmbito constitucional para as contribuições não deixa dúvidas quanto ao sinalagma existente entre prestação e contraprestação, bem assim no que toca ao regime jurídico próprio destas, inconfundível com o regime jurídico tributário.
Ademais, restou esclarecido o papel da lei complementar no sistema constitucional de prestações pecuniárias coativas, pontuando os casos em que a mesma é exigida e explicando a teleologia de tal exigência. Entrementes, é papel da lei complementar integrar o texto constitucional, fazendo-se imprescindível em pontos sensíveis do regime democrática da República Federativa do Brasil.
REFERÊNCIAS
1 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 5ª ed. São Paulo: Noeses, 2010, p. 171-172.
2 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p, 21.
3 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 115.
4 BRITO, Edvaldo. Direito Tributário. São Paulo: Atlas, 2015, p. 56.
5 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 2015, p. 59.
6 MICHELI, Gian Antonio. Curso de direito tributário. Tradução de Marco Aurélio Greco e Pedro Luciano Marrey Jr. São Paulto: Revista dos Tribunais, 1968, p. 65.
7 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3ª ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 621.
8 BRITO, Edvaldo. Capacidade contributiva. Caderno de pesquisas tributárias, vol. 14. São Paulo: Resenha tributária, 1989, p. 322.
9 BRITO, Edvaldo. Princípios constitucionais tributários. Caderno de pesquisas tributárias – nº 18. São Paulo: Resenha tributária, 1993, p. 556.
10 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 2015, p. 67.
11 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 2015, p. 74.
12 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 2ª ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 1975, p. 139.
13 BRITO, Edvaldo. Aspectos constitucionais da tributação. In: As vertentes do direito constitucional contemporâneo. São Paulo: América jurídica, 2002, p. 645-646.
14 AMARO, Luciano. Direito Tributário. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 70-72.
15 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 2015, p. 91-92.
16 DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due process of law. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 50-51.
17 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 62.
18 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1772/MG. Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Governador do Estado de Minas Gerais e Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, 15 de abril de 1998. In: Diário da Justiça (Brasília), 08 de setembro de 2008. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=347258. Acesso em 02 de maio de 2016.
19 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem em Recurso Extraordinário nº 576.321/SP. Município de Campinas, Helenice Bérgamo de Freitas Leitão e outro. Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, 04 de dezembro de 2008. In: Diário da Justiça Eletrônico – DJe (Brasília), 13 de fevereiro de 2009. Acesso em 02 de maio de 2016.
20 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 29. Relator Ministro Ricardo Lewandowski, 04 de dezembro de 2008. In: Diário da Justiça Eletrônico – DJe (Brasília), 13 de fevereiro de 2009. Acesso em 02 de maio de 2016.
21 JUSTEN FILHO, Marçal. Sujeição passiva tributária. Belém: CEUJP, 1986. p. 231.
22 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 1989, p. 324.
23 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 2015, p. 167.
24 DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. Op. Cit. 1964, p. 33-37.
25 BRITO, Edvaldo. Limites da revisão constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 11-24.
26 MARSHALL, John. Decisões Constitucionais. Trad. Américo Lobo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1903, p. 104-131
27 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 1993, p. 17.
28 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 22.192/DF. Associação Paulista da Igreja Adventista do Sétimo Dia e União Federal. Relator Ministro Celso de Mello, Primeira Turma, 28 de novembro de 1995. In: Diário da Justiça (Brasília), 19 de dezembro de 1996. Acesso em 03 de maio de 2015.
29 LEAL, Victor Nunes. Leis complementares da constituição. In: Revista de Direito Administrativo. Vol. VIII.Rio de Janeiro: 1947, p. 381.
30 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. José Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 104-106.
31 LEAL, Victor Nunes. Op. Cit. 1947, p. 382.