Para tornar possível a vida em sociedade surge o direito positivo que é o direito posto e imposto pelo Estado materializado em um conjunto de regras de condutas às quais estão submetidos os integrantes do grupo social. Qualquer conduta, individual ou coletiva, que ponha em risco ou ofenda bem tutelado pelo Direito, tem-se a ilicitude jurídica que pode ter consequências meramente civis (ilícitos civis) ou sanções penais (ilícitos penais: crimes e contravenções).
Quando as sanções de natureza civis contempladas no ordenamento jurídico não se mostram eficientes para impedir a ocorrência de ilícitos jurídicos graves, como aqueles que atingem interesses transindividuais e bens jurídicos relevantes, que põem em risco a convivência social, o Estado reage contra os respectivos autores e passa a tipificar o ato praticado como crime, prevendo as respectivas penas comináveis, e o faz por meio de um conjunto normativo classificado como Direito Penal. Todavia, ao Estado não é dado o poder de aplicar sanções penais arbitrariamente, impedem-no as garantias da reserva legal e da anterioridade, constitucionalmente asseguradas no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição da República, caracterizadas no importante princípio anunciado logo no primeiro artigo do Código Penal ao sentenciar que não há crime sem uma lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
Diante de uma notícia da ocorrência de um crime de gravidade manifesta, aflora o sentimento de animosidade movido pela emoção, acompanhado do desejo de punição severa e da imediata prisão do acusado de tê-lo praticado. É o que acontece, por exemplo, em acidente de trânsito com resultado morte, ou lesão corporal grave, notadamente quando as vítimas são crianças ou mulheres grávidas e haja suspeita, ainda que não perfeitamente delineada, de o condutor do veículo, que supostamente deu causa ao acidente, conduzia o automóvel sob efeito etílico ou de outra substância entorpecente qualquer. Ecoam vozes, algumas até de formação jurídica, outras sem qualquer familiaridade com o direito penal, como jornalistas, classificando o crime como doloso (e não culposo) reclamando uma sanção penal imediata.
Pois bem.
Para começo, é de grande relevo anotar, que a Lei 9.503 (de 1997) introduziu no sistema jurídico o Código de Trânsito Brasileiro e na rubrica Dos Crimes em Espécie, ao tratar do homicídio e da lesão corporal (vide artigos 302 e 303 do CTB), utiliza o adjetivo culposo; do substantivo culpa sequer cogita. Assim, portanto, questionamentos versando sobre a existência de dolo ou culpa no chamado crime de trânsito tem sua resolução fincada nos preceitos codificados no Estatuto Penal, à luz de cada caso concretamente considerado, e não pela Lei de Trânsito.
Anoto que o Código Penal não conceitua o crime culposo, ao contrário disso, limita-se apenas à declaração, no inciso II do artigo 18, que o crime é culposo “quando o agente deu causa ao resultado por negligência, imprudência ou imperícia”. A imprudência, aliás, não cabe naquele que, ao descumprir regras de trânsito termina por provocar acidente e ferir pessoas. A culpa não se presume. Corolário da responsabilidade penal objetiva, a presunção de culpabilidade pelo resultado lesivo ficou no passado distante, tempo em que o simples infringir de um dispositivo regulamentar, como avançar cruzamento com o sinal semafórico vermelho, conduzir veículo em velocidade incompatível para o local etc, era bastante para justificar a punição do agente. Para o sistema repressivo penal moderno a responsabilidade é sempre subjetiva, o que afasta a idéia de culpa presumida, de modo que a culpa depende de prova; não se admitindo sua presunção ou dedução, ilação ou perspectiva genérica para sua configuração e punição do agente.
Fruto da desenfreada tendência de imputação de dolo eventual em homicídios praticados na condução de veículos, é comum (e não é nova) a confusão que se faz entre essa modalidade de dolo — dolo eventual — e a culpa consciente, mesmo por pessoas que supomos conhecedoras do Direito Penal, no que cabe lembrar a lúcida e sempre atual advertência de JOSÉ BARCELOS DE SOUZA, ao anotar que “o que costuma ocorrer, efetivamente, em delitos de trânsito, não é um imaginado dolo eventual, mas uma culpa consciente, grau mais elevado da culpa, muito próxima do dolo, que, entretanto, não chega a configurar-se”[1], posição esta com a qual me filio pelas insuperáveis razões que passo a narrar.
Primeiro porque, da conceituação do Código Penal para o dolo na primeira e na segunda parte do inciso I do artigo 18, se pode defluir que referido Estatuto preferiu as teorias da vontade (quanto ao dolo direto) e do assentimento (quanto ao dolo eventual) à teoria da representação, teoria esta que tem o dolo como a pura e simples possibilidade de previsão do resultado, dando importância a inteligência e a consciência do agente em detrimento da vontade voltada ao fim especial de agir. Vejamos o anunciado no inciso I do artigo 18 do Código Penal. “Diz-se o crime” (art. 18, início): “doloso, quando o agente quis o resultado (teoria da vontade, dolo direto) ou assumiu o risco de produzi-lo” (teoria do assentimento, dolo eventual).
A primeira parte do inciso I do artigo 18, o Estatuto Repressivo trata do dolo direito, traduzido no fim especial de agir objetivando um resultado (matar, ferir), como na hipótese em que o agente, na condução do veículo, o direciona contra seu desafeto e o atropela, causando-lhe lesão corporal (art. 129) ou matando-o (art. 121). A segunda parte do inciso em comento cuida do dolo eventual que tem por característica a circunstância de a vontade do agente não ser dirigida para o alcance do resultado (no que se diferencia do dolo direto) e, embora previsível, mesmo prevendo o risco, o agente não se detém, como que consentindo o resultado, como por exemplo, aceitando o risco de matar ou ferir, o motorista vai com seu automóvel na direção de um grupo de pessoas porque está atrasado para um compromisso; a prática de “roleta russa” apontando para alguém.
Embora a culpa consciente avizinha-se do dolo eventual, trata-se de institutos inconfundíveis, vez que, no dolo eventual, o agente, embora prevendo o resultado não o aceita como possível (lesionar pessoas ou matá-las, porque dirigia embriagado, por exemplo), enquanto que, no dolo eventual, o agente prevê o resultado, mas não se importa que ele venha a ocorrer. A lei penal equipara apenas a culpa inconsciente (aquela em que o agente não prevê o resultado que é previsível) e culpa consciente (e não o dolo eventual) com previsão do resultado, isto porque segundo a Exposição de Motivos do Código Penal, “tanto vale não ter consciência da anormalidade da própria conduta, quanto estar consciente dela, mas confiando, sinceramente, em que o resultado lesivo não sobrevirá”.
Logo, a constatação de o motorista envolvido em acidente de trânsito, com resultado morte (art. 121 do CP), ou lesão corporal (art. 129), haver ingerido bebida alcoólica ou substância outra capaz de modificar as funções mentais e de provocar alterações neurológicas, não é bastante para caracterizar o dolo eventual, o que se tem, na hipótese, é configuração clara da culpa consciente, porque nesta o resultado é previsível pelo agente (o motorista, no caso deste artigo), mas ele espera, sinceramente, não ocorrerá, por entender que sua habilidade evitará o resultado. Veja se não é bem este pensar do motorista que dirige depois de haver ingerido bebidas alcoólicas, ultrapassa farol vermelho, nestas condições tem-se por presente a culpa consciente, não o dolo eventual.
De todo o exposto é possível concluir, por indesmentível, que o fato só e só de conduzir veículo sob efeito de álcool ou qualquer outra substância intorpecedora, lícita ou ilícita, ou porque nestas condições o motorista agiu em desconformidade com as regras de trânsito, e estas condutas foram determinantes para o resultado (homicídio ou lesão corporal), não transforma crime culposo em doloso, sendo certa apenas as reprimendas administrativas e sanções de natureza penal previstas no Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997), em seu artigo 302 (detenção, de dois a quatro anos, caso resulte morte), e no artigo 303 (detenção, de seis meses a dois anos, para lesão corporal), sem prejuízo da reparação dos danos materiais, e eventualmente morais, se não for o caso de culpa concorrente. A compensação da culpa somente não é admitida na lei penal, mas a admite a lei civil codificada, anote-se.
[1] BARCELOS DE SOUZA, José. Bol. IBCCrim nº 73/11. In: DELMANTO. Celso... (et al). Código Penal comentado, 6ª ed., Rio de Janeiro: Renovar. 2002, p. 33.