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Agricultura: uma questão de Estado

Agenda 14/09/2016 às 15:57

A agricultura possui grande distinção no texto constitucional, que em seu Art. 187 estabelece de modo claro os princípios básicos a serem observados no planejamento e na execução da sua política.

Na perspectiva do direito constitucional a agricultura toma status de grande distinção, pois dentre todas as atividades econômicas somente ela ocupa espaço, com distinção, no texto da Lei Superior que em seu Art. 187 estabelece de modo claro os princípios básicos a serem observados no planejamento e na execução da sua política.[1] Isto quer dizer que ao menos sob a ótica do constituinte moderno, tal atividade tem relevância para o País.

Não é sem razão esta atenção para com o setor, pois sua notável participação no desenvolvimento econômico e social é irrefutável, tendo em seu favor o testemunho do produto interno bruto (PIB) que registra sua enorme participação.

Olhando para Carta Federal, notadamente no Título III que trata “Da Organização do Estado”, o preceito insculpido no inciso VIII, do seu Art. 23 dispõe competir à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, de um lado, fomentar a atividade agropecuária e, de outro, organizar o abastecimento alimentar. Com tais encargos pesando sob seus ombros, esses entes federativos não podem ser relapsos em seus misteres, já que fomentar e organizar  apontam para uma verdadeira retroalimentação da ação, pois ao tempo em que o Estado fomenta a atividade, dela se serve para promover a estabilidade social via adequada organização do abastecimento alimentar. Mais séria se torna a questão do fomento da agricultura quando a Constituição em seu Art. 173 impede o Estado de explorar diretamente tal atividade econômica, não obstante seja dela dependente para cumprir com sua tarefa organizacional no campo da alimentação de todos. E se o Estado não pode produzir o que precisa, deve então apoiar aquele que a tanto se presta, mesmo porque constitucionalmente a tanto se obriga.

Da simbiose “fomentar para organizar”, se conclui que o Estado deve ser zeloso com a agricultura , estimulando-a sempre e eficazmente para não correr o risco de ver-se privado do bem que necessita para dar cabo responsavelmente ao processo de preventivamente lutar contra os perigos de um eventual desabastecimento o qual, caso se instale, traz consigo o caos.

Vários são os instrumentos de política agrícola que o Estado dispõe para fomentar o setor, valendo destacar, neste momento, um de seus principais, que é o crédito, o qual encontra previsão no inciso I, do Art. 187 da Constituição, no inciso XI, do Art. 4°, da Lei nº 8.171/91 e em todos os dispositivos da Lei nº 4.829/65, diploma legal que o institucionalizou adjetivando-o de “rural”.

O planejamento e a execução da política agrícola, consoante acima observado, decorrem de preceito constitucional, já que disto trata o caput do Art. 187 da Constituição Federal. Fazendo remessa a lei regulamentadora, o preceito dispõe em seus múltiplos incisos aquilo que o legislador infraconstitucional deve observar, e em seu extensivo rol a questão que ocupa o primeiro lugar diz respeito exatamente aos instrumentos creditícios e fiscais.

Com o advento da Lei regulamentadora do aludido preceito constitucional – Lei nº 8.171/91 – estabeleceu o referido diploma legal especial que a política agrícola fundamenta-se nos pressupostos que enumera o seu Art. 2°, dentre os quais convém destacar: a) que a atividade agrícola deve cumprir com sua função social e econômica relativamente à propriedade rural (inciso I); b) que na qualidade de atividade econômica a agricultura deve proporcionar as que a ela se dediquem, rentabilidade compatível com a de outros setores da economia (inciso III) e, c) que o adequado abastecimento alimentar é condição básica para garantir a tranqüilidade social, a ordem pública e o processo de desenvolvimento econômico-social (inciso IV).

Pelo inciso I se nota a questão da função social da propriedade; pelo III, a proteção econômica do produtor rural e, pelo IV, a relevante atuação do setor no campo da estabilidade social.

Exatamente porque o crédito rural se presta a fomentar uma atividade que tem interferência direta no resguardo da ordem pública e da paz social, o que enseja empenho do Estado em seu favor, todo seu mecanismo de concessão e condução fica sob seu controle direto, na parte em que a lei não trata expressamente.

Por outro lado, a lei institucionalizadora do crédito rural, isto é, a lei nº 4.289/65, assegura que os recursos desta especialíssima linha de financiamento devem ser distribuídos e aplicados de acordo com a política de desenvolvimento da produção rural do País e tendo em vista o bem estar do povo (Art. 1º). Ao apontar desde logo que o objetivo último da produção rural do País tem a ver com bem estar do povo, nota-se com suficiente clareza que o caráter social da atividade agrícola lhe é inerente. Num certo sentido o produtor rural pode ser visto até mesmo como um agente social e do bem comum, assumindo de um lado a responsabilidade de aplicar o crédito rural dentro dos fins legal e contratualmente previstos, sob pena de sofrer sanções e, de outro, o direito de ser socorrido em tempo oportuno para manter em pleno desenvolvimento uma atividade assim essencial a todas.

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Com efeito, dispõe o inciso III, do Art. 3º, da referida lei nº 4.829/65 que o crédito rural se presta, dentre outras coisas, a possibilitar o fortalecimento econômico do seu tomador, dentro do pressuposto de que o produtor melhor estruturado ofertará com maior abundância e melhor qualidade os bens que o Estado carece para desincumbir-se do ônus de cuidar do abastecimento alimentar.

E para que o crédito rural cumpra com seu desiderato de fomentar a atividade agrícola, o Art. 14 da lei nº 4.829/65 dispõe que compete ao Conselho Monetário Nacional traçar toda e qualquer questão relativa à operação, a saber: termos, prazos, juros e demais condições, de modo que financiado e financiador somente podem convencionar aquilo que previamente foi autorizado ou normatizado. Noutras palavras, no âmbito do crédito rural, exatamente por tratar-se de um mútuo que se destina a fomentar uma atividade de grande interesse para o Estado, vige o princípio do dirigismo contratual o qual sujeita a vontade das partes a preceitos de ordem superior.

Com suporte em tal preceito especial o aludido Conselho já previu em norma específica, por exemplo, a reprogramação do cronograma de pagamento do mútuo todas as vezes que a capacidade de adimplir o contrato resta comprometida, protegendo o produtor rural de um endividamento pernicioso ou da alienação forçada dos seus bens de produção (imóveis, maquinários, etc) para pagar o financiamento. Tal mecanismo não deixa de ser um instrumento de fomento para a atividade, pois se o produtor tem ao seu alcance um benefício desta ordem para dele lançar mão nos momentos de frustração de safra ou de queda dos preços, não se intimidará em continuar a empreender.

Vale ressaltar, outrossim, que a previsão em questão é de ordem coercitiva, apresentando-se como uma autêntica norma agendi e não uma facultas agendi, impondo ao mutuante o dever de modificar o cronograma pagamento do mútuo todas as vezes que o mutuário tem sua capacidade de pagamento diminuída em razões de fatores adversos ali contemplados.[2]

A história, no entanto, tem demonstrado que nem sempre esse direito do produtor rural foi respeitado, pois o credor, contrariamente ao aludido normativo, tão logo ocorre o inadimplemento do mútuo se lança na cobrança judicial do crédito, e isto com inscrição do nome do devedor nos cadastros de restrição ou, quando não, exige o pagamento do financiamento com a tomada de recursos na carteira comercial, ou propugna pela renegociação da dívidas em patamares diferentes e mais onerativos do que os previstos pela legislação especial.

Boa parte das dívidas da agricultura que pendem de solução até os dias de hoje tem contra si o fato dos credores terem negado aos devedores a prorrogação das dívidas nos moldes do Manual de Crédito Rural, causando um aumento exagerado dos números e dos gravames sobre imóveis e safras, além da subtração do próprio crédito. No momento o consolo do setor é que tais números podem ser revistos, tendo por base a legislação especial e a própria Súmula 286 do Superior Tribunal de Justiça.

Assim, quando eventual pretensão do produtor rural for apresentada ao Poder Judiciário para resguardar seu direito à nova programação de pagamento do financiamento, tendo por base o que acima foi exposto, a análise do pedido deverá ser feita levando em conta também o interesse do Estado e da sociedade, e isto à luz dos princípios constitucionais e infra-constitucionais pertinentes. Já escrevemos em outra oportunidade:

Desta forma, quando o Estado, no plano do Executivo, prevê a mudança do cronograma de pagamento do mútuo rural para preservar a continuidade da atividade pelo produtor rural, e financiador resiste em cumprir a norma, no plano do Poder Judiciário, uma vez provocado, deve aplica-la para a proteção da atividade em questão e da sociedade como um todo.”[3]

Nas ações em questão, o titular imediato do direito é o produtor rural, o mediato o Estado e o remoto, a própria sociedade. Tendo isto em conta, no exercício da prestação jurisdicional o juiz deve ter em mente, além do que já foi exposto também o que preceitua o Art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, ou seja, que na aplicação da lei atender-se-á aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Assim, se a agricultura goza dos privilégios de ser: a) a única atividade econômica com presença ostensiva na Constituição; b) a única atividade econômica para quem a Constituição impõe ao Estado o dever de fomentar-lhe o desenvolvimento; c) a única atividade que o Estado tem dependência direta e, d) a única atividade econômica efetivamente relevante para a vida, e vida com dignidade, cabe ao Estado, qualquer que seja a sua esfera, devotar-lhe fomento e proteção, a menos que, ignorando os riscos de isto não fazer, lançar-se na perigosa prática de semear vento para colher tempestade. No entanto, existe semente melhor a semear e colheita mais aprazível a realizar.


[1] Vide de minha autoria: Agricultura e Estado – uma visão constitucional. 4ª ed. Curitiba: Juruá, 2014.

[2] Vide, de minha autoria: Financiamento Rural. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2014 e também Legislação Especial do Direito do Agronegócio Comentada. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2014

[3] PEREIRA, Lutero. Agricultura e Estado – uma visão constitucional. 4ª ed. Curitiba: Juruá, 2014.

Sobre o autor
Lutero de Paiva Pereira

Advogado especialista em Direito do Agronegócio. Fundador da banca Lutero Pereira & Bornelli Advogados Associados. Pós-graduado em Direito Agrofinanceiro. Coordenador de cursos online no site Agroacademia. Membro do Comitê Europeu de Direito Rural (CEDR) e Membro Honorário do Comitê Americano de Direito Agrário (CADA). Autor de 18 livros publicadas na área de Direito do Agronegócio.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Texto elaborado a partir da visão do Autor exposta no livro "Agricultura e Estado - uma visão constitucional" - 4ª edição.Curitiba: Juruá, 2014 e "Financiamento Rural" - 3ª edição. Curitiba: Juruá, 2014.

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