RESUMO: O presente trabalho tem como finalidade propor uma reflexão sobre a cláusula de tolerância presente nos contratos de compra e venda de imóveis na planta. A análise da cláusula é feita à luz do Código de Defesa do Consumidor e toma por base os institutos da vulnerabilidade, da boa-fé objetiva e da informação. O assunto em tela desperta interesse uma vez que, o consumidor enfrenta uma situação de impotência durante o atraso na entrega da obra, diante da cláusula de tolerância existente dos contratos firmados com as construtoras.
Palavras – chave: Código de defesa do consumidor – Atraso na entrega da obra – Cláusula de tolerância.
Sumário: Introdução. 1. Os princípios da vulnerabilidade e da boa-fé objetiva. 2. A informação como direito básico do consumidor. 3. A proteção do consumidor nos contratos de compra e venda de imóveis na planta: 3.1. A informação prévia e de fácil compreensão. 3.2. A interpretação mais favorável ao consumidor. 3.3. A vinculação dos escritos e declarações constantes de escritos particulares, recibos e pré-contratos. 4. A assinatura do contrato e a cláusula de tolerância. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Um tema que, a nosso pensar, desperta a atenção da doutrina, é o da cláusula de tolerância nos contratos de compra e venda de imóveis na planta. O consumidor, motivado muitas vezes pelo sonho da casa própria, ingressa em verdadeiras aventuras jurídicas sem a devida compreensão dos riscos assumidos, expondo-se de forma substancial a problemas potenciais que podem se transformar em longos processos na justiça.
O tema em análise assume relevância, devido ao grande número de atrasos em entrega de obras pelas construtoras, principalmente, no momento atual da crise econômica que assola o Brasil.
A análise é feita a partir do CDC e dos procedimentos comuns de tratativas e contratação desenvolvidos pelo consumidor e fornecedor nos contratos de compra e venda de imóveis na planta.
1 OS PRINCÍPIOS DA VULNERABILIDADE E DA BOA-FÉ OBJETIVA
O Código de defesa do consumidor, norma de origem constitucional, de ordem pública e interesse social, elencou dentre os seus princípios, no seu art.4º, I e III, a vulnerabilidade do consumidor e a boa-fé objetiva.
A vulnerabilidade caracteriza-se, a nosso pensar, pelo desconhecimento do consumidor sobre a forma de produção, organização e logística do fornecedor na oferta de bens e serviços no mercado de consumo.
Há ainda, a vulnerabilidade laboral, que definimos como sendo aquela decorrente da fraqueza inerente ao consumidor para o exercício do seu direito de ação. A primeira dificuldade a ser enfrentada pelo consumidor é no seu local de trabalho. Precisa submeter-se ao risco de pedir ao seu superior hierárquico uma liberação para ausentar-se do labor a fim de comparecer a uma audiência ou registrar uma reclamação presencial contra o fornecedor, seja perante o Poder Judiciário, o Procon ou até mesmo junto à própria empresa a ser reclamada. Nos momentos de crise econômica em que o desemprego aumenta, essa vulnerabilidade é agravada.
Para José Geraldo Brito Filomeno:
No âmbito da tutela especial do consumidor, efetivamente, é ele sem dúvida a parte mais fraca, vulnerável, se se tiver em conta que os detentores dos meios de produção é que detêm todo o controle do mercado, ou seja, sobre o que produzir, como produzir e para quem produzir, sem falar-se na fixação de suas margens de lucro. [1]
Sobre a boa-fé objetiva, merece apontamento a lição de Bruno Miragem:
Assim, o princípio da boa-fé objetiva implica na exigência nas relações jurídicas do respeito e da lealdade com o outro sujeito da relação, impondo um dever de correção e fidelidade, assim como o respeito às expectativas legítimas geradas no outro.[2]
A boa-fé objetiva deve estar presente em todas as fases da relação de consumo, desde a publicidade veiculada, passando pelas tratativas, até mesmo após a conclusão do contrato, enquanto existir a relação entre as partes, afinal de contas, o consumidor espera ser atendido com lealdade não apenas nos momentos que antecedem a compra, mas, também, após a conclusão do contrato.
Para o consumidor, desconhecedor do processo de gestão do fornecimento do produto ou serviço no mercado de consumo, resta o risco inerente à escolha por um determinado fornecedor que, muitas vezes, é feita sob a forte influência da publicidade veiculada de forma massificada na mídia.
Oportuno o magistério de Marcos Mendes Lyra:
Adquirem-se bens e serviços, sem conhecimento de suas naturezas e utilidades, muitas vezes por mera indução da atividade publicitária, que tem mais por objetivo o induzimento ao consumo irrefletido do que propriamente a finalidade didática de apresentação de novidades da indústria. Há, pois, um desequilíbrio de conhecimento, em que um domina todas as informações sobre o produto, ao passo que o outro tem apenas expectativas fundadas nas ideias geradas pela publicidade.[3]
No caso da venda de imóveis na planta, a vulnerabilidade do consumidor é maior ainda, uma vez que, ao realizar a compra, fica apenas com a expectativa criada pelas campanhas publicitárias e informações do corretor e/ou construtora, devendo ser registrado que, nas tratativas, fase que antecede à contratação, o consumidor, de acordo com o procedimento comum adotado pelas construtoras, limita-se a, no primeiro momento, a apenas assinar a proposta de compra. Somente dias depois é que assina o contrato de compra e venda.
Assim, nos casos em que essa relação se desenvolve para uma ação judicial, é imprescindível que a argumentação em juízo seja triangular, fundamentada na vulnerabilidade, na boa-fé objetiva e na verossimilhança.
2 A INFORMAÇÃO COMO DIREITO BÁSICO DO CONSUMIDOR
O CDC consagrou como direito básico do consumidor, no art.6º, III, a informação. Informar, a nosso ver, é possibilitar ao consumidor o exercício do direito de escolha de forma consciente.
A informação é importante no primeiro momento para que o consumidor saiba exatamente o que está comprando, pois, somente assim, poderá avaliar a real necessidade e satisfação do bem para a sua vida. Após a compra, a informação assume o papel de proteger o consumidor no sentido de possibilitar ao vulnerável a utilização do produto adquirido de forma segura e confortável conforme a sua expectativa.
Na compra e venda de imóveis, a informação assume uma dimensão maior ainda porque, um imóvel, a exemplo de um apartamento adquirido na planta, constitui muitas vezes, ao longo da vida, o único bem de moradia da família, portanto, a sua compra deve ser fruto de uma escolha bem analisada a fim de evitar maiores dissabores e/ou frustrações.
Dessa forma, detalhes como posição do apartamento, possibilidade de hipoteca do terreno do empreendimento, referências de moradia na região próxima ao empreendimento, total de área útil, tamanho e localização das garagens podem fazer a diferença no momento das tratativas. São informações que, juntamente com o preço, condições de pagamento e histórico dos envolvidos no empreendimento, certamente exercerão influência direta no exercício do direito de escolha do consumidor.
Para Frederico da Costa Carvalho Neto: “A informação é sem dúvida senão o mais importante, um dos mais importantes direitos dos consumidores, essencial tanto para a formação como para o cumprimento do contato.”[4]
Destarte, a informação deve ser adequada e inteligível além de fácil compreensão no sentido de atingir a finalidade a que se propõe, observadas as condições sociais e intelectuais do consumidor e do público alvo em geral que se visa alcançar.
3 A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS NA PLANTA
3.1 A INFORMAÇÃO PRÉVIA COMO PROTEÇÃO CONTRATUAL DO CONSUMIDOR
Com o objetivo de proteger o consumidor contra surpresas na contratação, o CDC consagrou no seu art.46 que os contratos não obrigarão o consumidor caso não lhe seja dado prévio conhecimento do seu conteúdo ou se este estiver redigido de forma a dificultar a compreensão.
Para Nelson Nery Júnior:
O fornecedor deverá ter a cautela de oferecer oportunidade ao consumidor para que, antes de concluir o contrato de consumo, tome conhecimento do conteúdo do contrato, com todas as implicações consequenciais daquela contratação no que respeita aos deveres e direitos de ambos os contratantes, bem como das sanções por eventual inadimplemento de alguma prestação a ser assumida no contrato. Não sendo dada essa oportunidade ao consumidor, as prestações por ele assumidas no contrato, sejam prestações que envolvam obrigação de dar como de fazer ou não fazer, não o obrigarão.[5]
O art.46, do CDC, é de suma importância para a proteção contratual do vulnerável da relação de consumo, pois, além de disciplinar como e quando deve ser a informação, ele pune o fornecedor que violar o dispositivo mencionado. De fato, ninguém pode ser obrigado a cumprir algo se não foi previamente informado ou teve dificuldade de compreender o seu sentido e alcance.
3.2 A INTERPRETAÇÃO MAIS FAVORÁVEL AO CONSUMIDOR
Outra preocupação do CDC foi com a possibilidade de o contrato fazer constar cláusulas contraditórias. Nesse caso, o art.47 é explícito ao determinar que: “As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”.
No caso dos contratos de compra e venda de imóveis na planta, é comum que o contrato disponha uma data de entrega e no mesmo contrato faça constar uma cláusula de tolerância de 180 dias isentando o fornecedor de qualquer indenização durante esse período.
A nosso pensar, o art.47 do CDC é aplicável a essa hipótese, pois, está-se diante de duas cláusulas que tratam do mesmo assunto: data limite para entrega da obra. Assim, diante de duas cláusulas que disciplinam de forma diferente sobre o prazo de entrega, deve prevalecer a cláusula que estabelece o menor prazo para o cumprimento do contrato, por ser mais benéfico ao consumidor.
3.3 A VINCULAÇÃO DOS ESCRITOS E DECLARAÇÕES CONSTANTES DE ESCRITOS PARTICULARES, RECIBOS E PRÉ-CONTRATOS
Outra preocupação do CDC em relação à proteção contratual do consumidor foi com os escritos e declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré-contratos. Para o diploma consumerista, tais informações vinculam o fornecedor, podendo, inclusive, ser objeto de execução específica nos termos do art.84 do CDC.
Dessa forma, constitui fonte importante de prova, todo o material envolvido nas tratativas que antecedem o contrato de compra e venda, a exemplo do folheto de campanha publicitária e da proposta de compra, pois, o diagnóstico da repercussão jurídica decorrente do atraso na entrega da obra deve ser formado a partir da análise da ação desenvolvida pelo consumidor no sentido de colocar-se em movimento em relação à contratação.
4 A ASSINATURA DO CONTRATO E A CLÁUSULA DE TOLERÂNCIA
O ato de contratação para aquisição de imóvel na planta tem o seu início a partir da publicidade veiculada, ferramenta utilizada para atrair o consumidor à compra do produto ofertado no mercado de consumo, uma vez que, vincula o fornecedor, nos termos do art.48 do CDC. Nesse contexto, o folheto publicitário e, em seguida, a proposta, assumem substancial importância, pois, de forma concreta revelam a expectativa inicialmente criada no consumidor e os valores delimitados na contratação a ser firmada em fase posterior.
Observe-se que, como regra, nas tratativas de aquisição de imóvel na planta, não se faz constar na proposta de compra a cláusula de tolerância. Ocorre que, o consumidor ao assinar o contrato em momento posterior à assinatura da proposta, é nesse momento que, em tese, toma ciência da clausula de tolerância, qual seja, aquela que possibilita ao fornecedor o atraso na entrega da obra por até 180 dias úteis, sem qualquer indenização ao consumidor. Esse intervalo de tempo entre a assinatura da proposta e a assinatura do contrato, enseja, a nosso pensar, aplicação do art.46 do CDC, por se tratar de hipótese de violação ao dever de informação prévia, disposto no art. 46 do CDC e, portanto, desobriga o consumidor ao seu conteúdo.
5 CONCLUSÃO
a)No caso de existência, no contrato, de duas cláusulas com datas diferentes para entrega da obra, deve prevalecer a que indica menor prazo, nos termos do art.47 do CDC, por ser mais favorável ao consumidor;
b)Inexistindo nas tratativas que antecedem a contratação, a informação prévia por parte do fornecedor, a respeito da cláusula de tolerância, não se pode obrigar o consumidor ao seu conteúdo, por disposição expressa do art.46 do CDC.
6 Referências
FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos Autores do Anteprojeto, 10ª edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2011;
JÚNIOR, Nelson Nery. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos Autores do Anteprojeto, 9ª edição, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2007;
LYRA, Marcos Mendes. Controle das cláusulas abusivas nos contratos de consumo. Editora Juarez de Oliveira, São Paulo, 2003;
MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor: fundamentos do direito do consumidor; direito material e processual do consumidor; proteção administrativa do consumidor. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008;
NETO, Frederico da Costa Carvalho. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor/ Marcelo Gomes Sodré, Fabíola Meira, Patrícia Caldeira (coordenadores). 1. ed. São Paulo, Ed. Verbatim, 2009.
[1] Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos Autores do Anteprojeto, 10ª edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2011, pp.73/74.
[2] Direito do consumidor: fundamentos do direito do consumidor; direito material e processual do consumidor; proteção administrativa do consumidor. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008, p.72.
[3] Controle das cláusulas abusivas nos contratos de consumo. Editora Juarez de Oliveira, São Paulo, 2003, pp.2/3.
[4] Comentários ao Código de Defesa do Consumidor/ Marcelo Gomes Sodré, Fabíola Meira, Patrícia Caldeira (coordenadores). 1. ed. São Paulo, Ed. Verbatim, 2009, p.63.
[5] Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos Autores do Anteprojeto, 9ª edição, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2007, p.553.