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Direito intertemporal:

o Código Civil de 2002 e as sociedades já existentes

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Agenda 02/06/2004 às 00:00

A sucessão de leis no tempo deixa algumas dúvidas especialmente em relação a situações que envolvam sociedades constituídas na vigência da lei antiga, mas que continuam a funcionar sob a égide da lei nova.

1. INTRODUÇÃO

A evolução das relações jurídicas no tempo, por vezes, torna uma lei ultrapassada, e por conseguinte, desprovida de seu atributo maior a eficácia. Exemplos desse fenômeno são constantes, tornando uma norma vigente letra morta. Em função disso, o legislador tem o dever de editar novas normas para a melhor disciplina possível das relações jurídicas que se apresentam, adaptando o direito positivo às necessidades do mundo concreto.

No caso das sociedades, o fenômeno da sucessão de leis no tempo é mais comum [1], tendo em vista que a cada dia as sociedades assumem novos aspectos para adequarem-se as novas necessidades econômicas que se apresentam. Dentro dessa idéia, durante muito tempo discutiu-se sobre um novo Código Civil para o Brasil em substituição ao Código Civil de 1916, à parte do Código Comercial de 1850 e a algumas leis esparsas, especialmente o Decreto 3.708/19. Tratava-se de algo essencial, na medida em que a legislação se mostrava, em alguns aspectos, completamente ultrapassada, embora em outros aspectos representasse ainda a melhor orientação. Após inúmeros debates e um quase interminável processo de tramitação, o novo Código Civil foi promulgado pela Lei 10.406/2002, entrando em vigor em janeiro de 2003.

O advento do novo Código Civil trouxe uma disciplina completamente nova em alguns dispositivos, em especial no que diz respeito às sociedades. Nesse aspecto, a sucessão de leis no tempo deixa algumas dúvidas especialmente em relação a situações que envolvam sociedades constituídas na vigência da lei antiga, mas que continuam a funcionar sob a égide da lei nova.

Em tais hipóteses deve-se aplicar a lei nova ou a lei antiga?

A resposta a tal indagação não é simples, na medida em que envolve alguns conceitos muito difíceis como os de direito adquirido e ato jurídico perfeito, além de debates doutrinários sobre a aplicação de leis no tempo. O objeto desse trabalho é definir em relação às sociedades já existentes quando serão aplicadas as regras do novo Código Civil, e quando subsistirão as regras antigas, apesar de sua revogação..


2 – DA SEGURANÇA JURÍDICA

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, afirma que a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito. Tal afirmação é muito bem colocada no primeiro artigo da Carta Magna, porquanto a adoção do Estado Democrático de Direito rege-se implica a adoção de uma série de postulados para reger o conteúdo a extensão e o modo de proceder do Estado [2]. Dentro desse mister, surgem uma série de subprincípios concretizadores, quais sejam, o princípio da legalidade, o princípio da proporcionalidade ou proibição do excesso, o princípio da proteção jurídica e das garantias processuais e o princípio da segurança jurídica [3].

No âmbito do presente trabalho, é fundamental conhecer o princípio da segurança jurídica, na sua dimensão constitucional, vale dizer, na condição de princípio regedor da atuação do estado na órbita administrativa, judicial, e sobretudo legislativa.

O Estado contemporâneo assegurou à lei a primazia entre as fontes do direito, a fim de evitar o arbítrio e desmando entre os homens [4]. Todavia, estes, ao agirem em sociedade, precisam de segurança para praticar atos que produzam efeitos jurídicos. Esta segurança deve significar que os atos praticados e suas conseqüências devem gozar de uma certa estabilidade, isto é, o cidadão ao praticar os atos deve ter a certeza dos efeitos jurídicos que os atos podem produzir antes de praticá-lo e depois de praticá-lo deve ter a certeza de que tais efeitos serão mantidos [5].

A título ilustrativo, tome-se o exemplo de um contrato de compra e venda firmado entre dois cidadãos que são irmãos, cujo objetivo é transferir a propriedade de um imóvel. Ao firmar tal avença os contratantes têm a consciência de que tal ato é válido e produzirá a transferência da propriedade. Caso inexistisse o princípio da segurança jurídica, mesmo após a concretização de tal contrato e a transferência da propriedade, o bem poderia retornar para o alienante se uma lei posterior passasse a proibir a venda de imóveis entre irmãos.

Tome-se outro exemplo, judicialmente foi reconhecido a uma pessoa o direito de receber uma indenização por dano moral. Transitando em julgado tal decisão, havendo transcorrido o prazo da ação rescisória, é recebida a indenização. Caso não existisse a segurança jurídica, o advento de uma lei que proíbe o pagamento de indenizações por dano moral implicaria a devolução.

A fim de evitar tais situações de incerteza é que existe o princípio da segurança jurídica, como uma decorrência do Estado Democrático de Direito, mantendo uma estabilidade e uma confiança nas relações jurídicas permitindo a vida em sociedade. Como decorrência desse princípio, a Constituição Federal de 1988 estabelece que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI), consagrando o princípio geral da irretroatividade das leis.


3 – APLICAÇÃO DAS LEIS NO TEMPO

Editada uma norma jurídica, sua aplicação se desdobra basicamente em dois aspectos o espacial e o temporal.

Pelo aspecto espacial, verifica-se qual o âmbito territorial de aplicação da lei, isto é, verifica-se sobre qual espaço geográfico é exercida a soberania pelo Estado editor da Lei, e por conseguinte, onde ele pode, impor coercitivamente a observância da norma editada. A princípio, as normas editadas por um país só se aplicam no seu território. Todavia, as exigências da vida internacional, a variedade legislativa, e a natureza cosmopolita exigem a aplicação extraterritorial de uma lei [6]. Esta extraterritorialidade de uma lei é objeto do chamado direito internacional privado.

Sob o aspecto temporal, verifica-se o lapso temporal no qual a norma vige produzindo efeitos. A princípio, vale a aplicação imediata das leis, isto é, a norma jurídica aplica-se a todos os fatos ocorridos após o início da sua vigência. Esta, por sua vez, começa, salvo disposição em contrário, 45 dias (90 dias se produz efeitos no exterior) após a publicação da lei e perdura até sua revogação ou modificação por outra norma, ou até o termo de vigência pré-fixado pela própria norma.

O princípio geral da aplicação imediata das leis afasta, a princípio [7], a retroatividade da lei, ou seja, a lei não incide sobre fatos ocorridos sob o império da lei anterior. Também fica afastada, a princípio [8], a ultra-atividade da lei, ou seja, a lei também não se aplica a fatos posteriores ao início da sua vigência. Trata-se de uma decorrência da segurança, pois, como leciona Pontes de Miranda, "a irretroatividade defende o povo; a retroatividade expõe-no à prepotência" [9].

Todavia, em algumas casos, o fato se inicia sob a égide de uma lei e termina sob a égide de uma nova lei, ou o fato se concretiza sob a vigência de uma determinada norma, mas produz efeitos sob a vigência de uma outra norma jurídica. Tais situações impedem a aplicação pura e simples do princípio da eficácia imediata da lei, gerando o chamado conflito de leis no tempo, solucionado pelo Direito intertemporal, pois a aplicação imediata por vezes quebraria a segurança jurídica.


4 – CONFLITO DE LEIS NO TEMPO

A sucessão de normas diferentes sobre a mesma matéria pode ensejar dúvidas sobre a norma aplicável a determinadas situações. Nesses casos, há que se socorrer do chamado direito intertemporal que, de acordo Carlos Maximiliano, "fixa o alcance do império de duas normas que se seguem reciprocamente" [10].

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A solução desse conflito é das situações mais tormentosas de todos os ramos do direito, ensejando dúvidas, interpretações divergentes na doutrina e na jurisprudência. Em função disso, é oportuno esclarecer, desde já, que não se tem a pretensão de esgotar o assunto, mas se pretende fazer um estudo para tentar ajudar na solução do conflito.

A fim de facilitar a solução do conflito de leis no tempo, é importante distinguir o que doutrina chama de graus de retroatividade: máxima, média e mínima [11].

Há retroatividade máxima quando a lei ataca a coisa julgada e fatos consumados [12]. Neste caso, a lei posterior atingiria pagamentos, transações, compensações efetuados sob a égide da lei anterior. Tal retroação afronta o princípio constitucional da segurança jurídica e não pode ser admitida, ressalvados hipóteses excepcionais da retroação da lei penal para beneficiar o réu.

Na retroatividade média a lei nova atinge os efeitos pendentes de atos consumados antes do início de sua vigência [13]. Nessa hipótese, uma lei que viesse a limitar a taxa de juros valeria também para juros vencidos e não pagos. Mais uma vez a lei se volta para o passado quebrando a segurança jurídica, o que inviabiliza também essa retroação.

Por fim, na retroatividade mínima a lei nova atinge apenas efeitos novos dos atos praticados sob a égide da lei anterior [14]. Nesse caso, a lei se aplicaria sobre fatos ocorridos sob a sua vigência, mas ligada a um fato anterior.

Para alguns autores a retroatividade mínima deve ser admitida, porquanto a lei se aplicaria apenas a situações ocorridas sob a sua vigência. Para os defensores dessa interpretação Não se admitir essa retroatividade seria negar o princípio do efeito imediato e geral da lei [15].

Outra parte da doutrina sustenta que nesses casos também haveria retroatividade, o que não pode ser admitido. De acordo com o Ministro Moreira Alves a lei teria aplicação imediata, mas com efeito retroativo o que não se pode admitir [16]. Francesco Ferrara afirma que "todo fato jurídico, seja acontecimento casual ou ato jurídico, é disciplinado tanto em suas condições e substância, quanto em todos os seus efeitos – passados, presentes e futuros – pela lei do tempo, no qual o fato se completou" [17].

Acreditamos que não se pode excluir a aplicação imediata da lei, nem se pode determinar essa aplicação imediata. A solução desse problema passa pelo respeito ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e ao direito adquirido.


5 – O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO, À COISA JULGADA E AO DIREITO ADQUIRIDO

O princípio constitucional da segurança jurídica tem por escopo assegurar uma estabilidade dos direitos. Para tanto, a Constituição Federal de 1988 afirma expressamente que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI). Há que se ressaltar que, no Brasil, esse princípio tem sede constitucional aplicando a todas as leis editadas no país, sem distinção de leis de ordem pública e lei dispositiva. É oportuno transcrever a lição do Ministro Moreira Alves: "Esse preceito constitucional se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva" [18].

5.1 – A PROTEÇÃO À COISA JULGADA

Nos termos do preceito constitucional, a lei não pode prejudicar a coisa julgada, isto é, uma lei nova não pode mudar uma situação julgada definitivamente. Trata-se de um imperativo da segurança jurídica, porquanto uma vez acabado um processo, as pessoas devem ter a certeza de que o direito ali reconhecido não será alterado. Se a lei pudesse prejudicar a coisa julgada, a função jurisdicional seria totalmente desnecessária, até mesmo inútil.

A doutrina costuma distinguir a coisa julgada formal da coisa julgada material, sendo necessária a distinção para se saber a que tipo de coisa julgada se refere o preceito constitucional supramencionado.

A coisa julgada formal é a imutabilidade de uma sentença dentro do mesmo processo, isto é, naquele processo a decisão não pode mais ser afetada. Moacyr Amaral Santos define a coisa julgada formal como "o fenômeno da imutabilidade da sentença pela preclusão dos prazos para recursos" [19]. Vicente Greco Filho afirma que a coisa julgada formal é "a imutabilidade da decisão dentro do mesmo processo por falta de meios de impugnação possíveis" [20].

À coisa julgada formal se acrescenta uma outra qualidade da sentença, a coisa julgada material que se estende para fora do processo, isto é, a sentença torna-se lei entre as partes, impedindo a mudança mesmo em outros processos [21]. A coisa julgada se forma como um imperativo da segurança jurídica, a fim de assegurar uma maior estabilidade nas relações jurídicas.

Feita a diferenciação entre a coisa julgada formal e material é importante ressaltar que a lei não poderá prejudicar nem a coisa julgada formal nem a coisa julgada material [22]. Quando a Constituição diz que a lei não prejudicará a coisa julgada quer abranger desde a coisa julgada formal, isto é, ainda que não se forme a coisa julgada material a lei não poderá prejudicar a decisão definitiva.

5.2 – PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO

A vida é uma sucessão permanente de fatos, mas nem todos os fatos possuem uma importância para as relações intersubjetivas entre os homens. Os fatos que interferem nas relações sociais dão origem a normas que atuam sobre eles, juridicizando-os, são fatos que repercutem no campo do direito. Estes são os fatos jurídicos. Quando estes fatos têm por origem uma manifestação de vontade humana com o intuito de produzir um efeito jurídico [23], podemos falar em atos jurídicos em sentido amplo.

Diz-se que os atos jurídicos perfeitos são aqueles consumados, isto é, aqueles que reúnem os elementos essenciais para produzir efeitos sob a égide de determinada lei. Consumado o ato sob a égide de determinada lei, ele é um ato jurídico perfeito protegido constitucionalmente de qualquer ingerência de leis novas. Mesmo efeitos futuros daquele ato estão salvos da incidência da nova lei, diante do disposto no artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal.

Leis novas ainda que expressamente pretendam não podem incidir sobre efeitos de atos jurídicos perfeitos, na medida em que a proteção que é assegurada a estes é constitucional, isto é, a proteção do ato jurídico perfeito não pode ser quebrada por nenhuma norma que deva obediência a Constituição, como as leis em geral. E não se invoque que as normas de ordem pública devem incidir de imediato, porquanto tal incidência seria retroativa e "a lei retroativa é, em princípio, contrária a ordem pública" [24].

Tomemos alguns exemplos.

Com o advento do Plano Real estabeleceram-se regras sobre a periodicidade e os critérios de reajuste de contratos de locação. Todavia, alguns contratos que já estavam em vigor, estabeleciam critérios e prazos distintos de reajuste. Diante de tal situação, discutiu-se se deveria prevalecer a lei nova, ou se as regras contratuais deveriam continuar a ser aplicadas.

Diante dessa controvérsia, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça firmou opinião no sentido de que a lei instituidora do plano real é norma de ordem pública e deveria se aplicar aos contratos em curso. Assim, afirmou o Ministro Vicente Leal:

"A medida provisória num. 542/1994, que instituiu o plano real e modificou o padrão monetário nacional, e norma jurídica de ordem pública, de eficácia imediata e geral, alcançando as relações jurídicas estabelecidas antes de sua edição.

As regras de conversão das obrigações pecuniárias com clausula de correção monetária baseada em índices de preços, previstas no art. 21, da citada medida provisória, são aplicáveis aos contratos de locação comercial, sem que disso resulte quebra do principio da irretroatividade da lei." [25]

Em outra oportunidade, o Superior Tribunal de Justiça sobre a mesma matéria afirmou que não se havia de cogitar de supremacia do ato jurídico perfeito:

"As disposições da Lei nº 9.069/95, porque são de ordem pública e, portanto, de natureza cogente, aplicam-se indistintamente aos contratos já vigentes quando da sua edição, não havendo se falar em supremacia do ato jurídico perfeito e nem do direito adquirido." [26]

Como tal discussão acabava envolvendo o disposto no artigo 5º, XXVI da Constituição Federal de 1988, a matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal, que, reconhecendo a natureza constitucional da proteção ao ato jurídico perfeito afastou a aplicação da lei nova. A propósito, é oportuno transcrever trecho do pensamento defendido pelo Ministro Celso de Mello:

"Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. As conseqüências jurídicas que emergem de um ajuste negocial válido são regidas pela legislação em vigor no momento de sua pactuação... As normas de ordem pública - que também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta Política (RTJ 143/724) - não podem frustrar a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade." [27]

Em outros julgados a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça sufragou a mesma orientação do Supremo Tribunal Federal, dando primazia ao ato jurídico perfeito. A lei 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor, estabeleceu que seria nula qualquer cláusula que impusesse a perda das prestações pagas em contratos que envolviam financiamentos. Tal regra só pode ser aplicada a contratos firmados após o início da vigência do Código de Defesa do Consumidor, pois contratos anteriores são atos jurídicos perfeitos e não podem ser atingidos por leis novas, mesmo que de ordem pública. A propósito, vejamos o que afirmou o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira:

"Conquanto o CDC seja norma de ordem pública, não pode retroagir para alcançar o contrato que foi celebrado e produziu seus efeitos na vigência da lei anterior, sob pena de afronta ao ato jurídico perfeito." [28]

A proteção ao ato jurídico perfeito decorre da Constituição Federal de 1988 não podendo ser ignorada por qualquer norma infraconstitucional, nem mesmo normas que se digam de ordem pública.

5.3 – A PROTEÇÃO AO DIREITO ADQUIRIDO

A lei também não pode prejudicar o direito adquirido, isto é, não pode tirar, limitar, modificar nem atuar de qualquer maneira sobre um direito já incorporado ao patrimônio de uma pessoa. Trata-se da maior garantia da segurança jurídica, uma vez incorporado o direito ao patrimônio, nenhuma lei nova poderá prejudicá-lo. Todavia, a definição de quando o direito se incorpora ao patrimônio de uma pessoa, não é simples gerando inúmeras controvérsias na doutrina e na jurisprudência.

5.3.1 – TEORIA SUBJETIVA OU CLÁSSICA

A doutrina clássica também chamada de doutrina do direito adquirido [29], afirma que o direito adquirido é conseqüência de um fato aquisitivo que se realizou por inteiro sob a égide da lei anterior, não importando se o exercício do direito se dê tão somente na égide da lei nova. Ingressando o direito no patrimônio do indivíduo, ninguém mais poderia retirá-lo de tal patrimônio.

Essa concepção sobre o direito adquirido passa pela distinção entre faculdades, expectativa de direito e direito adquirido.

A faculdade seria a possibilidade de adquirir direitos por atos voluntários [30], em outras palavras, seria "o poder que a lei confere as pessoas e que estas ainda não exerceram" [31]. Não exercida a faculdade não há direito adquirido a ser protegido, ou seja, enquanto se falar em faculdade não se pode pretender a proteção em face de novas leis. Um exemplo seria o direito do pai partilhar seus bens em vida entre seus herdeiros, enquanto não exercido tal poder é uma mera faculdade e não um direito adquirido. Se uma lei nova proibir tal partilha, ela não poderá ser realizada, pois se trata de mera faculdade e não de direito adquirido.

A expectativa de direito seria a esperança de adquirir o direito, caso não se modifique a ordem jurídica que o assegura [32]. O direito ainda não se adquiriu, não se realizou por inteiro o fato aquisitivo do direito, mas há a expectativa de adquiri-lo a certo termo. Carlos Maximiliano afirma que há expectativa de direito, quando "um direito desponta, porém lhe falta algum requisito para se completar" [33]. Exemplo típico da expectativa de direito é a concessão de uma aposentadoria, pois enquanto não preenchidos todos os requisitos para o gozo do benefício não há direito adquirido. Enquanto houve a mera expectativa, podem advir leis novas que mudem os requisitos, ou alterem a forma de cálculo do benefício.

Por fim, poderíamos falar em direito adquirido quando o fato aquisitivo do direito se realizou por completo sob a égide de determinada lei, incorporando-o ao patrimônio do seu titular. O direito adquirido ainda não se exerceu por uma opção do seu titular [34]. Assim, caso uma pessoa já tenha preenchido todos os requisitos necessários para a concessão de uma aposentadoria, mas ainda não a tenha requerido, é certo que estamos diante de um direito adquirido que não pode ser prejudicado por uma lei nova. O direito já se incorporou ao patrimônio de seu titular e de lá não pode ser tirado.

Essa interpretação do direito adquirido já foi dada pelo Supremo Tribunal Federal [35] ao decidir a questão do reajuste salarial de 84,32% referente ao mês de março de 1990, nos termos da Lei 7.830/89. O STF entendeu que os servidores só teriam completado o fato aquisitivo do direito no dia 1º de abril de 1990, e em função disso, não havia direito adquirido no dia 16 de março de 1990, quando veio à tona a Medida Provisória 154 que revogou o pretendido reajuste.

Em tal julgado, o relator Ministro Octávio Gallotti fez a seguinte afirmação:

"Não há falar, portanto, em ofensa a direito adquirido, tampouco em desfazimento de situação definitivamente constituída. A revogação precedeu a aquisição e não somente o exercício do direito".

Dentro da mesma linha de interpretação, se posicionou o Ministro Marco Aurélio ao afirmar:

"Quando editada a Lei, o fator tempo pertinente à aquisição do direito, ainda não estava implementado".

Tal teoria não ficou imune a críticas, em especial pela imprecisão da definição da expressão direito adquirido. Todavia, sendo completada pela proteção ao ato jurídico perfeito e aos fatos consumados pode ser aplicada [36].

5.3.2 – TEORIA DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS

Outra forma de tentar explicar o direito adquirido, tenta ter um aspecto mais objetivo, analisando as chamadas situações jurídicas, tendo em vista as críticas feitas à expressão direito adquirido, que era acusada de uma imprecisão técnica.

A doutrina distingue situações objetivas de situações subjetivas para efeito da análise da configuração ou não do direito adquirido na espécie.

"A situação legal ou objetiva é que decorre diretamente da lei e rege indeterminadamente várias situações equivalentes" [37], em outras palavras, as situações objetivas são aquelas "cujo conteúdo, segundo o citado mestre é necessariamente, o mesmo para todos os indivíduos que delas são titulares, pois tal conteúdo é determinado por disposição geral" [38]. A título exemplificativo, podemos mencionar os direitos a reajustes salariais nos termas de determinada norma jurídica, ou a situação dos proprietários ou dos cônjuges.

Nesses casos, não há que se falar em direito adquirido devendo aplicar-se imediatamente a nova lei que venha a surgir. "A situação legal ou objetiva permanece enquanto não modificada pela lei, ao passo que a subjetiva individual vige pelo prazo temporário disposto pelas partes. Conseqüentemente, as situações legais ou objetivas podem ser modificadas pela lei, sem que ocorra retroatividade" [39] "Do contrário o legislador seria praticamente impotente, já que toda alteração de leis, ou edição de novas, atinge, do instante da publicação em diante, direitos adquiridos. Destarte, não há direito adquirido à permanência de um estatuto legal." [40].

De outro lado, teríamos situações subjetivas ou individuais que seriam aquelas que resultam de uma manifestação individual da vontade [41], decorreriam de um ato ou fato jurídico que põe movimento a lei que ele visa [42]. Nesses casos, a lei nova não poderia incidir, vale diz, as situações concretas ou individuais ficariam protegidas da incidência de uma nova norma, mantendo a sujeição aos termos da legislação anterior.

Tal concepção também não é imune críticas, devendo ser completada com a proteção do ato jurídico perfeitos e da proteção dos fatos completamente consumados sob a égide da lei anterior.

5.3.3 – TEORIA DA APLICAÇÃO IMEDIATA DA LEI

Outra forma de tentar solucionar os conflitos de leis no tempo, tenta distinguir a aplicação retroativa da aplicação imediata da lei nova. Nesta concepção, faz-se uma distinção entre a fase dinâmica, relativa à constituição ou extinção da situação jurídica, e a fase estática referente à produção de efeitos da situação jurídica [43].

No caso de situações jurídicas anteriormente constituídas ou extintas não pode se aplicar a lei nova, pois nesse caso ela teria efeito retroativo. Assim, se uma pessoa tinha capacidade para praticar determinado ato, e o praticou sob a égide de determinada lei, uma nova lei que retire a capacidade para a prática daquele ato não pode incidir.

No caso de situações jurídicas em curso de constituição, enquanto esta não esteja constituída ou extinta, a lei nova pode modificar suas condições de constituição ou extinção [44]. Todavia, quando a situação se divide em várias fases, e os elementos de determinada fase já estão reunidos, a lei nova não pode incidir sobre eles. Tome-se o exemplo da sucessão testamentária, que exige elementos que se concluem em momentos distintos, a feitura do testamento e a morte do testador. Lavrado validamente o testamento, as condições de forma e de capacidade são regidas pela lei da época da sua lavratura, pois a primeira fase da situação não pode ser atingida pela lei nova, ainda que a morte do testador só se dê sob a égide de uma nova lei.

Por fim, essa concepção afirma que no caso de situações já concluídas, mas com efeitos pendentes deve se aplicar a lei do momento em que esses efeitos irão ser produzidos [45]. A lei nova não pode atingir efeitos produzidos sob a égide da lei anterior.

Toda essa teoria é excepcionada em relação aos contratos em curso que não são tocados pela lei nova, nem no que diz respeito à sua constituição, nem no que diz respeito aos seus efeitos [46].

Mais uma vez não se pode afirmar que tal teoria seja imune a críticas, mas é certo que ela também deu sua contribuição na solução desse intrincado problema da sucessão de leis no tempo.

Sobre o autor
Marlon Tomazette

procurador do Distrito Federal, advogado em Brasília (DF), professor de Direito do UniCEUB e da Escola Superior de Advocacia do Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOMAZETTE, Marlon. Direito intertemporal:: o Código Civil de 2002 e as sociedades já existentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 330, 2 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5257. Acesso em: 27 dez. 2024.

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