Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

O princípio da dignidade da pessoa humana e a ineficiência da investigação criminal

Este trabalho analisa a investigação criminal sob um viés garantista. Critica-se, dessa forma, os abusos comportamentais cometidos durante a investigação, violadores da dignidade da pessoa humana, que reduzem o investigado à condição de "coisa".

Este trabalho analisa a investigação criminal sob um viés garantista. Desse modo, necessária se faz a garantia de que a intervenção estatal não retire do investigado a sua condição de ser humano, desrespeitando os seus direitos fundamentais. Todavia, tal pensamento não vigorou durante todo o processo histórico e, ainda hoje, de forma equivocada, mesmo com todos os avanços sociais e legais, é possível encontrar defensores da utilização de meios ríspidos para a obtenção da “verdade” para que aquele indivíduo – reduzido à condição de “coisa” - possa ser logo punido. Critica-se, dessa forma, os abusos comportamentais cometidos durante a investigação, violadores da dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana; Investigação Criminal; Direito Penal; Direito Processual Penal; Direitos fundamentais.

INTRODUÇÃO:

Este trabalho propõe-se a abordar a investigação criminal como instrumento eficaz, que deve atuar na apuração de delitos (existência da infração, determinação dos agentes e das repectivas responsabilidades, assim como recolhimento de provas) observando os direitos e garantias fundamentais do acusado, já que, em decorrência da mera existência na sociedade, deve ter a sua dignidade respeitada.

Assunto que sempre suscitou profundas controvérsias no mundo jurídico é a questão da dignidade da pessoa humana. É inegável a sua incidência em outros ramos do direito, além dos limites do Direito Constitucional. Desse modo, é imperiosa a sua análise, a realização de um estudo mais aprofundado – além dos aspectos conceituais -, posto que não se manifesta apenas no aspecto normativo, tendo relevante importância prática no contexto social.

Muito se discute acerca do tratamento adequado para o agente de um delito (sujeito ou objeto de direitos). Uma análise do processo histórico evidencia um contexto de inobservância de um tratamento humanizado do investigado.

A atual concepção de dignidade da pessoa humana encontra suas raízes na Idade Moderna, mais especificamente com Immanuel Kant, que trouxe a ideia do homem como um fim em si mesmo, como sujeito de direitos. Em contraposição ao pensamento que vigorava anteriormente, na Idade Média, em que houve o predomínio de sevícias físicas não somente como sanção, mas também como meio lícito e eficaz de produção probatória.

As constituições consagram em seu texto não apenas direitos ligados à liberdade, mas também direitos sociais, econômicos e culturais ligados a igualdade material, cuja implementação exige uma atuação positiva do Estado que tem como objetivo criar um produto final do processo constituinte (ROMANO apud NOVELINO, 2011). Todavia, até nos mais modernos Estados Democráticos de Direito, a violação dos direitos e garantias referentes à pessoa humana se dá pelo próprio Estado. Assim, aquele que deveria ser o maior responsável acaba sendo em seu maior infrator, em maior ou menor grau.

No Brasil, em contraposição a Constituição Federal de 1967, que surgiu sob a égide de um regime ditatorial, em que a preocupação, normatização e efetivação do princípio da dignidade humana eram praticamente nulas, por meio da Constituição Federal de 1988, esta foi estabelecida como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III). Desse modo, deve ser garantido ao indivíduo o mínimo existencial, os bens e condições básicas para a sua subsistência, e a liberdade de valores do espírito. Obriga-se, de tal forma, o respeito à identidade e à integridade de todos, abrangendo aqueles que estão sujeitos a um processo penal.

Busca-se, com o presente estudo, analisar a investigação criminal sob a perspectiva do respeito à dignidade da pessoa humana. Já que, ao contrário do pensamento que vigora no senso comum, não são inconciliáveis, devendo ser inseparáveis. Somente de tal forma ela deixará de ser visualizada como um instrumento repressor, “ineficaz”, e terá a sua maior virtude ressaltada, a de preservar a inocência diante de acusações infundadas.

O presente trabalho foi desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica nacional e estrangeira.

1.  CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIGINIDADE DA PESSOA HUMANA:

 

A dignidade da pessoa humana é um termo de difícil conceituação jurídica em virtude das muitas teorias existentes a respeito. Diversas foram as discussões promovidas. Entre elas se destacam as teorias cristã e kantiana que contribuíram para a formação do atual conceito adotado.

A origem da concepção da dignidade da pessoa humana advém de uma tradição judaica-cristã, que tratava da divindade da origem do homem. Esta preceituava que o ser humano nasce à imagem e semelhança de Deus, tendo a dignidade como valor inerente ao mesmo. De tal forma, ele não pode ser tratado como objeto, instrumento. Nesse período, tal valor estava ligado tanto à semelhança com Deus, como também à obtenção de cargos, honras e títulos.

Esse pensamento foi mitigado durante a Santa Inquisição, época em que foram cometidas com as pessoas, tendo por base o nome de Deus, inúmeras atrocidades, sendo afetada, assim, a mencionada dignidade.

Durante a era medieval (sécs. V a XV), de forma singular, São Tomás de Aquino retratou a impossibilidade da redução da ideia de dignidade da pessoa humana em um conceito ao mencionar que “(...) o termo dignidade é algo absoluto e pertence à essência”. Desse modo, a noção de dignidade vai além da divindade, trazendo consigo a racionalidade que é pertencente ao ser humano. A visão da dignidade na concepção do mencionado filósofo é: “dimensão horizontal na medida em que todos os humanos são iguais em dignidade, pois naturalmente dotados da mesma racionalidade”.

Com o Renascimento (séc. XIV) e com a ascensão dos ideais iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade (séc. XVIII), ganhou destaque o pensamento de Immanuel Kant, o qual influenciou profundamente a conceituação moderna da dignidade da pessoa humana.

Segundo Greco (2013, p.9), no Século das Luzes, no período Iluminista, se tem a razão colocando luz à escuridão de um suposto conhecimento, a consolidação da dignidade da pessoa humana como um valor a ser respeitado por todos.

Kant afirmava que os seres desprovidos de razão possuem apenas valor relativo – valor de meios -, sendo, por isso, chamado de “coisas”. Por outro lado, os seres racionais são chamados de “pessoas” em virtude de a natureza já os designar como fins em si mesmos, não podendo ser tratados como meios para a realização da vontade de alguém. Dessa forma, o homem deve proceder de forma a tratar a humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa dos outros.

O pensamento kantiano está ligado à universalidade. Esta implica que todos os homens são racionais e, dessa forma, deve-se respeitar toda e qualquer relação sem haver restrições, assim como a autonomia, liberdade que o mesmo tem de possuir vontade. O homem deve ser tratado como um fim em si mesmo, sujeito de direitos.

O Período Renascentista foi de grande importância para o efetivo reconhecimento da dignidade humana como um valor intrínseco a sua existência, devendo todas as relações humanas serem respeitadas como também serem livres na suas escolhas.

Percebe-se que a dignidade da pessoa humana está ligada a uma condição essencial do indivíduo, sendo irrenunciável e inalienável, e devendo o Estado a garantir tais condições para não acarretar em tratamentos desumanos.

Ingo Wolfgang Sarlet bem define a dignidade da pessoa humana (2001, p.60):

“Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.”

 

 

 

1.1. A normatização da dignidade da pessoa humana:

 

Com o final da 2º Guerra Mundial (1939 – 1945), surgiu, de forma global, uma tendência no sentido da normatização da dignidade da pessoa humana como forma de proteger o mundo das barbáries ocorridas durante décadas, durante os Regimes Totalitários.

As primeiras a normatizarem a dignidade da pessoa humana foram as constituições italiana e alemã. A partir desse interesse jurídico de proteção, surgiram vários tratados internacionais para que ela fosse garantida, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) quem em seu artigo 1º, menciona: “todas os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

As resoluções, tratados e convenções internacionais foram de suma importância para o futuro de normatização nas diversas Constituições, especialmente as democráticas. Além da DUDH, é possível destacar a Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (ROMA/1950), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), a Convenção dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificado pelo Brasil em 1992. A maioria desses instrumentos tratam sobre matérias penais e processuais penais, versando sobre a preservação da liberdade, o acesso à justiça, a plenitude da defesa, a publicidade do atos processuais penais, entre outros assuntos, mas todos eles ligados à dignidade da pessoa humana.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

O Brasil seguiu esse direcionamento ao trazer a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, a Constituição Federal de 1988 (art. 1º, III) destaca a relevância da compreensão do mínimo existencial, seu núcleo material elementar. Este diz respeito ao conjunto de bens e condições básicas para a subsistência de todos os indivíduos e à liberdade de valores do espírito, tendo como requisito para o seu gozo a mera existência no mundo. De tal forma, esse princípio obriga de forma inarredável, absoluta e plena o respeito à identidade e à integridade de todo ser humano e a sua observância por toda legislação constitucional e infraconstitucional.

Dessa forma, percebe-se que a existência do Estado é em prol do ser humano, já que este constitui sua finalidade principal, ou seja, um fim em si mesmo, e não um meio para qual o foi criado.

A dignidade humana – princípio fundamental do Estado Democrático de Direito -, juntamente com o direito à vida e à liberdade,   é um atributo pessoal indissolúvel que abrange aspectos morais, sociais, políticos, econômicos, entre outros.  Por conseguinte, cabe ao Estado propiciar condições para que seja garantida uma vida digna, uma vez que, como ressalta Pontes de Miranda, o reconhecimento desta é fruto de inúmeras lutas:

“O resultado de avanços, ora contínuos, ora esporádicos, nas três dimensões: democracia, liberdade, igualdade. Erraria quem pensasse que se chegou perto da completa realização. A evolução apenas se iniciou para alguns povos; e aqueles mesmos que alcançaram, até hoje, os mais altos graus ainda se acham a meio caminho. A essa caminhada corresponde à aparição de direitos essenciais à personalidade ou à sua expansão plena, ou à subjetivação e precisão de direitos já existentes.”

Tal princípio encontra-se em diversos outros ramos do direito além do constitucional como, por exemplo, no Direito Penal, como assevera Rogério Sanches:

“A ninguém pode ser imposta pena ofensiva à dignidade da pessoa humana, vedando-se a reprimenda indigna, cruel, desumana ou degradante. Este mandamento guia o Estado na criação, aplicação e execução das leis”.

Ou seja, ele vem assegurar ao acusado uma pena justa, não admitindo tratamentos cruéis e ofensivos. Todavia, incide não somente no aspecto punitivo, mas também durante a apuração do delito.

{C}2.      ASPECTOS GERAIS SOBRE A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL:

No momento em que há a supressão da vingança privada e a implantação dos ideais de Justiça, há a concentração do poder de punir nas mãos do Estado, tendo como instrumento o Processo Penal.

O Direito Penal diz respeito ao conjunto de normas que tem por escopo elevar certas condutas do homem à categoria de infrações penais, cominando sanções para aqueles indivíduos que as pratiquem. Contudo, não se trata de uma mera aplicação abstrata da lei, sendo imperiosa a observância das condições pessoais do agente. Neste mesmo sentido, pontua Aníbal Bruno (1967, p. 41) que deve ser uma ciência

“Que sem deixar de ser essencialmente jurídica, se alimenta da substância das coisas: da realidade social e dos aspectos fenomênicos do crime, para o fim de compreender melhor o próprio Direito vigente e favorecer-lhe a sua missão prática de disciplina da criminalidade”.

Ao passo que o Direito Penal objetiva o alcance da paz social, o Processo Penal destina-se à proteção dos acusados da prática das mencionadas infrações, afastando todo e qualquer tipo de arbitrariedades possíveis de cometimento pelas autoridades processantes através de normas que regulamentam os processos instaurados para a apuração dos delitos.

Contudo, não obstante possua essa função garantista, de modo a ser propiciada a proteção dos direitos fundamentais do imputado, o Processo Penal apresenta-se, em si mesmo, como a primeira sanção sofrida.

Nesse contexto, desponta com transcendente importância a investigação criminal, que atuará como um “filtro processual”, averiguando a existência do crime, determinando seus agentes e a responsabilidade destes, assim como descobrindo e recolhendo provas no âmbito processual.

Em sede de investigação criminal, é inegável a angústia que reproduz no acusado a ameaça de imposição de uma pena. Por tal motivo, ela permite a redução de riscos que possam causar um sofrimento injusto em virtude de possíveis equívocos, assim como atua como instrumento de paz social (inibição da autotutela) e evita a prática de outras infrações.

Segundo Sousa (2011), a lei não define a investigação criminal do ponto de vista material, metodológico e epistemológico. O investigador não encontra na lei qual o método que deve utilizar para investigar um determinado crime, nem quais as estratégias. O problema da investigação criminal,

“(...) neste contexto, revela-se na necessidade de determinar como resolver cada caso em concreto, isto é, na definição de uma metodologia adequada ao esclarecimento dos fatos. Trata-se de saber, como pensar, como orientar as diversas diligências, como correlacionar os dados obtidos, enfim, como encontrar um método adequado. E a isto a Lei processual penal não responde. Ela limita-se, e bem, a garantir a produção de provas sem vícios formais.”

Portanto, quando a lei diz “conjunto de diligências”, refere-se aos métodos e técnicas para se chegar à conclusão de final de um crime cometido. Segundo Perazzoni (2012), a investigação criminal guarda estreita semelhança com as investigações e pesquisas cientificas. Note-se, entretanto, que apesar dessa forte aproximação

“entre a investigação científica e a investigação criminal, esta última é desenvolvida, precipuamente, em função do sistema de justiça criminal, o que sujeita seus métodos e a própria verdade passível de ser reconhecida nos autos do processo criminal aos limites normativos impostos pelo ordenamento pátrio”.

Por meio dessas técnicas e métodos, se requer um trabalho minucioso, que seja imparcial e dentro dos limites garantistas e constitucionais, na produção do resultado final e “verdadeiro”, já que nem sempre as investigações são feitas com  procedimentos e  técnicas apuradas, o que poderá resultar em situações em que inocentes sejam culpados por crimes que não cometeram.

2.1. A inobservância da dignidade da pessoa humana na investigação criminal:

Hodiernamente, de forma inequívoca, se tem observado, a violação da dignidade humana na seara da investigação criminal. Em hipótese alguma, deve ser o ser humano reduzido à qualidade de coisa em virtude da predominância do interesse público sobre o privado, da aplicação estrita da lei ou, até mesmo, em decorrência de arbitrariedades.

A incidência de tal princípio pode ser visualizada na vedação à tortura, aos tratamentos degradantes ou desumanos, sendo, inclusive, considerado crime inafiançável.

Em virtude da preocupação do constituinte para que os fatos ocorridos durante o Estado Novo e, posteriormente, na Ditadura Militar, não mais se repetissem, a promulgação do texto constitucional de 1988 trouxe inúmeros avanços, principalmente no que tange à tortura ao prever expressamente que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III, CF/88). A lei que incrimina essa prática, especificadamente, dispõe:

Art. 1º. Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.”

Por outro lado, através de uma análise do processo histórico global, verifica-se que, durante várias épocas, esse tratamento cruel, assim como diversas outras arbitrariedades foram utilizadas como mecanismo para a produção probatória no âmbito criminal, sem a utilização de critérios racionais.

É inegável que, durante séculos, as sevícias físicas, foram utilizadas não somente como sanção ou resultado da ação penal, mas como meio de investigação, de descobrimento da verdade. Existem relatos, v.g., de que na Roma Antiga, a confissão dos estrangeiros ou escravos apenas teria valor se produzida mediante tortura.

Ineficaz revela-se esse mecanismo, como, de forma ímpar, argumentou Beccaria (2001, p. 48):

“Todos os atos da nossa vontade são proporcionais à força das impressões sensíveis que os causam, e a sensibilidade de todo homem é limitada. Ora, se a impressão da dor se torna muito forte para ocupar todo o poder da alma, ela não deixa a quem a sofre nenhuma outra atividade que exercer senão tomar, no momento, a via mais curta para evitar os tormentos atuais. Dessa forma, o acusado já não pode deixar de responder, pois não poderia escapar às impressões do fogo e da água. O inocente exclamará, então, que é culpado, para fazer cessar torturas que já não pode suportar; e o mesmo meio empregado para distinguir o inocente do criminoso fará desaparecer toda diferença entre ambos. A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o celerado robusto. É esse, de ordinário, o resultado terrível dessa barbárie que se julga capaz de produzir a verdade, desse uso digno dos canibais, e que os romanos, mal grado a dureza dos seus costumes, reservavam exclusivamente aos escravos, vítimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado.”

Na Idade Média, ela era um meio lícito para a produção probatória, sendo prática amplamente desenvolvida. Conforme destaca GONZAGA (apud BIAZEVIC, 2006):

 “Se por qualquer motivo ao conviesse o duelo, recorria-se aos ordálios. (...) Os métodos variavam muito, mas em regra consistiram na ‘prova do fogo’ ou na ‘prova da água’. Por exemplo, o réu devia transportar com as mãos nuas, por determinada distância, uma barra de ferro incandescente. Enfaixavam depois as feridas e deixavam transcorrer certo número de dias. Findo o prazo, se as queimaduras houvessem desaparecido, considerava-se inocente o acusado; se se apresentassem infeccionadas, isso demonstrava a sua culpa. Equivalentemente ocorria na ‘prova da água’, em que o réu devia por exemplo submergir, durante o tempo fixado, seu braço numa caldeira cheia de água fervente. A expectativa dos julgadores era de que o culpado, acreditando no ordálio e por temer as suas conseqüências, preferisse desde logo confessar a própria responsabilidade, dispensando o doloroso teste.”

Inacreditavelmente, esses mecanismos repugnantes contam com muitos defensores, mesmo diante de toda a eclosão e estabelecimento dos ideais democráticos em milhares de lugares do mundo. Todavia, o que se observa, em verdade, é a sua utilização em relação a classes sociais desprivilegiadas, estando o restante isento da sua aplicação. Em Roma, por exemplo, era reservado somente para os servos, somente atingindo os cidadãos quando o Império tornou-se despótico, e, na Idade Média, eram excluídos os nobres e os doutores (FERRI, 2000). Uma avaliação da atual realidade social revela que tal paradigma ainda perdura. Como tal sistema pode ser apto para o descobrimento da verdade?

Conforme já mencionado, a investigação criminal, atividade típica do Estado Democrático de Direito, objetiva a apuração dos delitos (circunstâncias e autoria), assim como a proteção dos direitos e garantias individuais. Na realização dessa atividade, o indivíduo não pode ser reduzido à condição de objeto, sendo privado da sua dignidade sob pretexto da realização do interesse público. Percebe-se uma verdadeira afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana e da legalidade, assim como a possível configuração de outros delitos, a exemplo de ameaça, lesão corporal, constrangimento ilegal. O Código de Processo Penal assim disciplina a matéria:

“Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.”

2.2. Conflito entre investigação e direitos fundamentais:

É dever do Estado propiciar à sociedade a devida segurança, direito que todos possuem de serem protegidos do medo, em todas as suas formas (de passar por privações, agressões, morte, entre outras). Neste conceito amplo, se insere o de Segurança Pública, que deve ser exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, com base o art. 144 da CF/88. É uma atividade de vigilância, mas também de prevenção e repressão de delitos, conforme pontua Oscar Vilhena Vieira (2006, p. 219):

“Ora, o que se espera do Estado é que opere legitimamente, no máximo de sua capacidade, no sentido de minimizar violações ao direito das pessoas, agindo tanto no âmbito preventivo quanto punitivo. O termo minimizar foi aqui empregado não para aliviar as obrigações do Estado, mas para alertar para o fato de que a segurança total é inatingível. Porém, há um mandato de otimização impulsionando o Estado a fazer todo o possível, dentro dos limites que lhe foram estabelecidos pelo direito, para assegurar a integridade das pessoas e do patrimônio.”

 Para que essa segurança seja alcançada há a necessidade de investigação de fatos que perturbam a paz social para que assim a mesma possa ser restabelecida. Diante disso, mostra-se fundamental, pois, impor limites, criar garantias, para que esse Estado não invada de forma irrestrita a vida do indivíduo.

Embora a segurança seja um direito fundamental expresso no caput do art. 5º da Lei Maior, não raramente, ela é indevidamente compreendida. Essa incompreensão estimula um discurso conservador que defende que para o combate ao crime vale tudo, somente sendo titulares dos direitos humanos os “cidadãos de bem”.

Deve haver um equilíbrio entre a obrigação de proporcionar a segurança e a garantia da liberdade. Justamente para que esta pudesse ser assegurada, surgiram normas que ao mesmo tempo em que tutelavam os direitos e garantias fundamentais, limitavam o poder estatal intervencionista, já que não são valores antagônicos.

O conflito entre a investigação e os direitos fundamentais pode ser encontrado em situações tais como o direito de ir e vir diante da necessidade de decretação de prisão cautelar ou a inviolabilidade do domicílio e o sigilo das comunicações telefônicas diante da precisão de buscar provas do delito. Cabe à lei regular o modo pelo qual esses conflitos serão resolvidos e ao magistrado, ponderar a liberdade individual e a necessidade de apuração e punição das infrações.

Por outro lado, visualiza-se no contexto social que tais garantias não alcançam a amplitude desejada, o que pode ser verificado em inúmeras práticas policiais que os meios de comunicação cotidianamente veiculam.

Deve-se atentar para o fato de que o êxito da investigação criminal reside na obtenção de uma condenação dentro de um processo legal, através da coleta de evidências que respeita as garantias e os direitos do investigado.

Não é somente quem é objeto da investigação que deve ser controlado, mas também aquele que a realiza, o que embasa a previsão constitucional de controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, conforme prevê o art. 129, VII, CF/88:

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;”

Nesse contexto, o magistrado exerce um importante papel, atuando como um “garantidor das liberdades”, como afirma Anabela Miranda Rodrigues (2002, p. 10). O exercício dessa função ocorre, por exemplo, na necessidade de ordem judicial para buscas domiciliares, quebra de sigilos bancários e interceptações telefônicas. Dissertando sobre o tema, a referida autora disserta sobre a necessidade de:

“Um juiz para controlar a legalidade na recolha de provas, para autorizar as medidas coercitivas e para fiscalizar a investigação oficial. A este juiz chama-se ‘juiz das liberdades’: um juiz que (...) controla o respeito pelas liberdades”.

Ao realizar tais condutas, está o magistrado tutelando a dignidade da pessoa humana, inerente a todos indivíduos pelo simples fato de serem pessoas.

2.3. O investigado como sujeito de direitos:

 

Duas das principais preocupações dos brasileiros são a criminalidade e a violência, sendo incitadas pelo clima de insegurança veiculado através dos meios de comunicação, perpetuando um “estado de pânico”. Tais meios controlam a indignação moral da sociedade através da exploração sensacionalista dos delitos.

De maneira equivocada, perpetua-se a crença de o investigado como objeto, mas o objeto da investigação criminal é o fato constante da noticia criminis, ou seja, é o crime e não o criminoso. Quem atribuiu esse status ao investigado foi a CF/88, ao trazer a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, como valor fundante do Estado Brasileiro.

Como aponta Cármen Lúcia Antunes Rocha (apud MARTINS, 2002, p. 78):

“O Estado existe para o homem, para assegurar condições políticas, sociais, econômicas e jurídicas que permitam que ele atinja os seus fins: que seu fim é o homem, como fim em si mesmo que é, quer dizer, como sujeito de dignidade, de razão digna e suprema posta acima de todos os bens e coisas, inclusive do próprio Estado.”

A dignidade apresenta-se, então, como característica intrínseca do ser humano. Negá-la tem sido uma característica prática comum da sociedade, seja através da escravidão, do holocausto e de outros momentos históricos que excluem grupos do convívio social.

Durante muito tempo o Processo Penal também negou essa dignidade. Todavia, por mais perverso que tenha sido o crime, nada justifica a “coisificação” do ser humano. A dignidade da pessoa humana atuará, justamente, como limite ao interesse público através do poder punitivo do Estado.

O inquérito policial – concebido no contexto brasileiro como quase sinônimo de investigação – objetiva a ponderação entre esse interesse da sociedade de desvendar a infração e os direitos do indivíduo investigado, restringindo-os o mínimo possível.

Aquele que tem a função de investigar não é dotado de poderes ilimitados. Cabe a ele a observância do princípio da legalidade, utilizando-se somente dos meios permitidos em lei. Entre esses limites, estão a inadmissibilidade das provas ilícitas, como já mencionado, e a fixação de bens e direitos invioláveis.

São exemplos de direitos com status de invioláveis, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem. Dessa forma, a intimidade do investigado não pode ser devassada desnecessariamente. Quando devida a sua mitigação, deve ocorrer de forma limitada. Também são: o sigilo das correspondências, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, a casa das pessoas.

Comumente, para que não ocorra a impunidade, são cometidos atos investigativos dotados de arbitrariedades que violam direitos constitucionais.

Espécime dessa violação é a negação do silêncio ao investigado, sendo-lhe, inclusive, não raras vezes, extorquida a confissão, contrariando inciso LXIII, art. 5º, CF/88, que prevê o direito dele permanecer calado.

Insta salientar que todos os dias muitos interrogatórios policiais são realizados na ausência de defensor, não advindo qualquer conseqüência processual, consubstanciando, assim, violação ao art. 5º, LXIII, CF/88, que prevê que ao preso será assegurada a assistência da família e de advogado.

{C}2.4.             Princípios fundamentais norteadores da investigação criminal (Manual de Formação de Direitos Humanos para as Forças Policiais):

            O “Manual de Formação de Direitos Humanos para as Forças Policiais”, que foi editado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas (Genebra), traz que são princípios fundamentais que devem nortear a investigação criminal:

“Durante as investigações, audição de testemunhas, vítimas e suspeitos, revistas pessoais, buscas de veículos e instalações, bem como intercepção de correspondência e escutas telefónicas:

Todo o indivíduo tem direito à segurança pessoal;

Todo o indivíduo tem direito a um julgamento justo;

Todo o indivíduo tem direito à presunção da inocência até que a sua culpa fique provada no decurso de um processo equitativo;

Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, família, domicílio ou correspondência;

Ninguém sofrerá ataques à sua honra ou reputação;

Não será exercida qualquer pressão, física ou mental, sobre os suspeitos, testemunhas ou vítimas, a fim de obter informação;

A tortura e outros tratamentos desumanos ou degradantes são absolutamente proibidos;

As vítimas e testemunhas deverão ser tratadas com compaixão e consideração;

A informação sensível deverá ser sempre tratada com cuidado e o seu carácter confidencial respeitado em todas as ocasiões;

Ninguém será obrigado a confessar-se culpado nem a testemunhar contra si próprio;

As actividades de investigação deverão ser conduzidas em conformidade com a lei e apenas quando devidamente justificadas;

Não serão permitidas actividades de investigação arbitrárias ou indevidamente intrusivas.”

                                                                                

            A investigação criminal que, consequentemente, forma o inquérito policial, segundo Greco (2013, p. 68) é um importante instrumento para a propositura da futura ação penal. Por isso, quanto maior número de provas nele colhidas, maior sucesso terá a ação penal no que diz respeito à elucidação do fato criminoso.

            Interessante observar que o Alto Comissariado das Nações Unidas teve o cuidado destacar a importância de os policiais observarem a dignidade da pessoa humana, pois este princípio também norteia  os princípios éticos fundamentais da conduta policial no seu primeiro tópico quando diz: “os direitos humanos derivam da dignidade inerente à  pessoa humana”.

 

               

CONCLUSÃO:

Através do estudo realizado, foi possível constatar o quanto, ao longo dos séculos, filósofos e legisladores discutiram acerca do tema da dignidade do ser humano. Se, no Brasil, a Constituição Federal de 1988 a contemplou entre um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, é notório que, em qualquer circunstância, ela deve ser garantida. Houve o rompimento do paradigma das investigações criminais que tratavam o investigado como simples objeto à mercê do Estado investigador – e, muitas vezes, vingativo.

Quando violado, esse princípio expõe o ser humano a situações degradantes. Instala-se, então, o conflito entre as práticas – arbitrárias - cometidas pelos órgãos repressores em relação ao que dispõe a Carta Magna e a legislação infraconstitucional.

Ao ser estudado o corpus deste trabalho, é possível chegar à conclusão de que não importa o grau da infração penal cometida pelo suspeito, a sua integridade deve ser respeitada. Até mesmo pelo fato de que pode ter sido o agente acusado injustamente pela prática do crime.

Dessa forma, quanto mais incisivos os meios investigatórios, maior a necessidade de estabelecimento de garantias ao investigado para que sejam protegidos dos possíveis abusos dos órgãos estatais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BECCARIA, Cesare Marchesi di. Dos delitos e das penas. Tradução de Paulo M. Oliveira. 14º ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

BIAZEVIC, Daniza Maria Haye. A história da tortura. Jus Navigandi, Ano 10, n. 1074, 10 jun. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp? id=8505>. Acesso em: 20 de agosto de 2016.

BRUNO, Aníbal. Direito Penal – Parte Geral. Tomo 1º. Rio de Janeiro: Forense, 1967.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

 

______, Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.

 

______, Lei nº 9.155, de 7 de abril de 1997.

BUCH, João Marcos.  Execução penal e dignidade da pessoa humana. 1º ed. São Paulo: Estúdio editores.com, 2014.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal – Parte Geral. 3º ed. Salvador: JusPODIVM, 2014.

FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996.

GRECO, Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 5ª ed. Niterói: Impetus, 2005.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução: Antônio Pinto de Carvalho. Lisboa: Companhia Editora Nacional, 1964.

LASSO, José Alaya. Direitos Humanos e aplicação da Lei. Alto comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos: Genebra, 2001.

MARTINS, Flaudemir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. 1ª Ed. Curitiba: Juruá, 2005.

NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 5º ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2011.

PERAZZONI, Franco. Investigação Criminal e Prova na CF/88: Objetivos, destinatários e limites da atividade probatória no curso do inquérito policial. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF: 19 out. 2012. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.40098&seo=1>. Acesso em: 24 agosto de 2016.

RAMOS, Alan Robson Alexandrino. O conceito jurídico de dignidade da pessoa humana na Grécia Clássica. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVII, nov 2014. Disponível em: <http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=15464>.  Acesso em 22 - de agosto de 2016.

RODRIGUES, Anabela Miranda. A fase preparatória do processo penal – tendências na Europa. O caso português. Revista brasileira de Ciências Criminais: São Paulo, ano 10, nº 39, julho-setembro de 2002.

SARLET, Ingo WolfgangA eficácia dos direitos fundamentais2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

SOUSA, Vera Lourenço de. Investigação criminal: o conceito normativo e o conceito material.  Disponível em: <segurancaedefesa.blogs.sapo.pt/3238.html>. Acesso em 23 de agosto de 2016.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais. Uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2006.

Sobre os autores
Lohana Lima Nery

Estudante de Direito

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!