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O princípio da inafastabilidade do Judiciário e o estado de coisas inconstitucional

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Agenda 27/02/2018 às 14:10

4     O Princípio da Inafastabilidade do Judiciário e o Estado de Coisas Inconstitucional

4.1. Conceito

O Princípio da Inafastabilidade da jurisdição está contido no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal. É também conhecido como princípio do Acesso à Justiça, e consiste que todos têm direito à proteção jurídica do Estado, a partir dos conflitos ocorridos na vida em sociedade. Assim se aplica a inafastabilidade da jurisdição, o uso dos órgãos jurídicos competentes. Mas essa tutela, presente na Constituição, deverá ser efetivada através da ação do interessado ou por meio de conhecimento, no processo de execução ou asseguração.

Dessa forma, o magistrado tem a autorização de cessar ou evitar lesão ou ameaça a direito por meio da ação. Com este mandado constitucional, o judiciário rompe com o paradigma de que o juiz se porta meramente como “la bouche de loi”[17], apenas aplicando o sentido das leis conforme o sentido originário do legislador, adotando uma postura de salvaguarda da Constituição e dos direitos fundamentais.

Assim, o judiciário terá a possibilidade de apreciar, inclusive, atos normativos quando estejam em confronto com a ordem constitucional, como afirma Celso Ribeiro Bastos[18]:

"Isto significa que lei alguma poderá autoexcluir-se da apreciação do Poder Judiciário quanto à sua constitucionalidade, nem poderá dizer que ela seja invocável pelos interessados perante o Poder Judiciário para resolução das controvérsias que surjam da sua aplicação.".

Nesse sentido, o Ministro Marco Aurélio de Mello[19] também reforça o munus público do judiciário, demonstrando que:

"A garantia constitucional alusiva ao acesso ao Judiciário engloba a entrega da prestação jurisdicional de forma completa, emitindo o Estado-Juiz entendimento explícito sobre as matérias de defesa veiculada pelas partes. Nisto está a essência da norma inserta no inciso XXXV, do art. 5º da Carta da República.".

O princípio da inafastabilidade da jurisdição tem ganhado cada vez mais força na sociedade brasileira, principalmente em face da administração pública. Segundo a Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal, o Poder Judiciário poderá apreciar a anulação dos atos da administração pública quando eivados de ilegalidade.

Destarte, tem se tornado cada vez mais recorrente, numa sociedade em que o Estado ainda falta, e muito, com a prestação dos direitos insculpidos no texto constitucional, a busca pela jurisdição para a resolução desses conflitos. Embora seja questionável, e com certa razão, o assoberbamento dos Tribunais, o princípio da inafastabilidade da jurisdição não pode ser rechaçado, porque em muito tem contribuído para a discussão de mazelas sociais, muitas vezes negligenciada pelos demais poderes, a exemplo da questão carcerária que chegou ao pleno do Supremo Tribunal Federal com a ADPF 347.

4.2 A Tutela Jurisdicional ante o ECI

Diante da notoriedade que Poder Judiciário vem ganhando com a aplicação do princípio da inafastabilidade da jurisdição, o Supremo Tribunal Federal também se tornou protagonista nessa nova ordem constitucional, o que fica evidenciado com a relevância dos temas trazidos à apreciação da suprema corte brasileira e do impacto de suas decisões na sociedade brasileira.

Dessa forma, o Estado de Coisas faz parte da aludida realidade do órgão de cúpula da justiça brasileira. Durante o julgamento da ADPF 347, foi questionada a possibilidade jurídica de declarar do ECI pela via judiciário, recebendo também críticas sobre a legitimidade democrática e constitucional do STF em adotar essas medidas.

Para Faria e Campilongo[20], o Estado de Coisas pode ensejar mais dificuldades à eficácia jurídica da Constituição Federal, segundo estes autores:

“(..) basta fazer um exercício lógico, empregando o conceito de ECI a ele mesmo. Se assim estão as ‘coisas’ – e, por isso, a ordem jurídica é ineficaz e o acesso à Justiça não se concretiza -, por que não decretar a inconstitucionalidade da Constituição e determinar o fechamento dos tribunais? ”.

É evidente que a questão está longe de ser pacificada, até mesmo porque o STF deferiu apenas em medida cautelar alguma das medidas ajuizadas na arguição em comento. Todavia, de acordo com que se pode extrair das palavras do Ministro Marco Aurélio, ao declarar o estado de coisas inconstitucional dos presídios, a possibilidade de discussão merece ser considerada, uma vez que o objetivo do ECI é justamente provocar o judiciário diante de um quadro agravado de violação a direitos fundamentais.

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Nesse sentido Carlos Campos[21], argumenta que a decisão do STF “é o que se espera de uma corte constitucional em casos que apresentam quadro tão acentuado de violações de direitos fundamentais, mas, ao mesmo tempo, de soluções tão complexas: que não seja inerte, mas que também não tente resolver tudo sozinha”.

Diante de um judiciário cada vez mais ativo e protagonista em questões de relevância da sociedade, a declaração do Estado de Coisas Inconstitucional tende a ser uma alternativa, diante de um quadro sistemático de violações estruturais a direitos fundamentais, que não se limitam ao problema carcerário, configurando com bastante clareza as palavras do Ministro Luís Roberto Barroso ao afirmar que o judiciário quer defender um “agir proativo” ou “expansivo” da Justiça[22].


5     Considerações finais

A análise dos princípios vem ganhando relevância no âmbito do direito constitucional brasileiro. Conforme anota Celso Antônio Bandeira de Mello[23]: um princípio é um “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas (...)”, logo, não somente as normas, mas também o Estado e aqueles que atuam em seu nome estão vinculados a concretização dos parâmetros principiológicos insculpidos na Carta Magna.

Dentre estes princípios, é de grande valia o da inafastabilidade da jurisdição. De acordo com esse corolário, o Poder do Judiciário não pode se escusar de apreciar lesão ou ameaça a direitos, inclusive em relação a outros princípios. Conforme leciona Alexandre de Moraes[24] “o Poder Judiciário, desde que haja plausibilidade de ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial requerido pela parte de forma regular”. Por essa razão, o magistrado tem a atribuição de aplicar as leis, no sentido de buscar maior efetividade dos direitos fundamentais, podendo, quando constatado, fazer cessar possíveis violações às garantias constitucionais.

Dentro desse diapasão, surge no cenário político e jurídico brasileiro o Estado de Coisas Inconstitucional, produto de diversas experiências na Corte Constitucional da Colômbia diante de gritantes violações a direitos fundamentais naquele país, conforme demonstrado nesse trabalho. Esses litígios têm como características falhas estruturais, decorrentes da completa falta de políticas públicas do Estado, cuja prejudicialidade atinge um número indeterminado de indivíduos e a responsabilidade alcança um amplo número de autoridades, poderes e instituições públicas.

Desse modo, o Supremo Tribunal Federal acolheu, em medida cautelar, duas das oito medidas propostas na arguição. Para o Ministro Marco Aurélio, relator da ADPF 347, existe um Estado de Coisas Inconstitucional no sistema prisional brasileiro, cuja realidade é de completo desrespeito aos direitos humanos. O STF determinou a realização de audiência de custódia e o descontingenciamento de recursos do fundo penitenciário.

Não obstante, a concretização do ECI ainda não é unanimidade no país, recebendo também críticas quanto a sua natureza e aplicabilidade, como demonstrado durante o julgamento nos pronunciamentos do Advogado Geral da União e da Procuradoria Geral da República, quando trataram do fim do contingenciamento dos recursos da União para o sistema prisional brasileiro. Para uma parte da doutrina, o ECI configura um arriscado ativismo judicial, pelo que estaria sendo violado o princípio da separação dos poderes e ainda correndo o risco de não obter um resultado prático[25].

Embora sejam relevantes os questionamentos, é inegável a notoriedade da discussão em torno do Estado de Coisas Inconstitucional. Primeiramente por conta das imensas violações estruturais aos direitos fundamentais ainda presentes na sociedade brasileira, que não se resumem ao problema carcerário. Dessa forma, o ECI se tornaria um instrumento com vistas a atacar o flagelo gritante de uma série de garantias fundamentais no país.

Segundo, porque de um modo ou de outro a busca pela decretação do Estado de Coisas traz a baila a participação do judiciário na resolução de vicissitudes sociais, uma vez que o Supremo Tribunal Federal, como guardião da constituição e órgão de cúpula da Justiça brasileira, tomou uma importante iniciativa no sentido de debelar uma crise estrutural do país. Isso configuraria, ao menos teoricamente, o aspecto mais intrínseco do princípio da inafastabilidade da jurisdição, a apreciação da lesão a direitos.

Independentemente de quais serão os desdobramentos do ECI no Brasil, é válido o entendimento inicial do Supremo, em que reconhece a necessidade de ser tomada uma atitude para se amenizar um dilema, sem, contudo, afrontar-se a separação dos poderes, o que mostra um judiciário participativo, sem haver uma intromissão nas demandas nacionais.


6 Referências Bibliográficas

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MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.


Notas

[1] FERNANDES, Bernardo Gonçalves Curso de direito constitucional. 3.ed.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

2CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993.

[3] BOBBlO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: UnB, 10ª ed., 1997

[4] ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 86

[5] GALUPPO, Marcelo Campos. Os princípios jurídicos no Estado Democrático de Direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação.Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_143/r143-16.PDF> Acesso em: 01/10/2015.

[6] Disponível em http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1997/SU559-97.htm, acessado em 03/10/2015, às 18h 05.

[7] CAMPOS, Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Revista Jota, disponível em http://jota.info/jotamundo-estado-de-coisas-inconstitucional, acessado 03/10/2015, às 18h 11

[8] Disponível em http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1998/t-153-98.htm, acessado em 03/10/2015, às 18h 15.

[9] Disponível em http://www.ipsnoticias.net/portuguese/2011/02/america-latina/colombia-e-lider-mundial-em-deslocamento-forcado/, acessado em 03/10/2015, às 18h 18.

[10]Disponível em  http://www.corteconstitucional.gov.co/T-025-04/Autos.php, acessado em 03/10/2015, às 18h 25.

[11] CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. O Estado de Coisas Inconstitucional. Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural, acessado em 03/10/2015, às 20h 10

[12] Reincidência Criminal no Brasil. Relatório de Pesquisa. IPEA. Rio de Janeiro. 2015.

[13] STF. Plenário. ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015 (Informativo 798).

[14] Idem.

[15] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=298600&caixaBusca=N, acessado em 03/10/2015, às 21h

[16] Idem

[17] Ou “boca da lei”, clássica expressão de Montesquieu ao afirmar a separação dos poderes e as atribuições do Poder Judiciário.

[18] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, 18ª ed., p. 214.

[19] STF, Rel. Min. Marco Aurélio, 2ª T., RE nº. 172.084/MG – DJ de 3/3/95, p. 4.111.

[20] CAMPILONGO, C.; FARIA, J.; Giorgi, R. O Estado de Coisas Inconstitucional. Disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,estado-de-coisas-inconstitucional,10000000043

[21] http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural

[22] Disponível em: https://www.uniceub.br/noticias/noticias-por-curso/1o-semestre-2015/palestra-com-ministro-luis-roberto-barroso.aspx. Acessado em 09/10/2015, às 13h15.

[23] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.

[24] MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. Teoria Geral. Comentários aos arts. 1o à 5o da Constituição da República Federativa do Brasil. Doutrina e Jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Atlas S.A., 1998, p. 197.

[25] É o posicionamento defendido por José Eduardo de Faria e Celso Campilongo. Disponível em http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,estado-de-coisas-inconstitucional,10000000043, acessado 08/10/2015; 21h 45.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Klícia. O princípio da inafastabilidade do Judiciário e o estado de coisas inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5354, 27 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52695. Acesso em: 4 nov. 2024.

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