1. PRINCÌPIO REPUBLICANO: CONCEITO E CARACTERES
Preliminarmente, necessário enfatizar que o Estado brasileiro vem mantendo, desde a promulgação da Constituição de 1891, tradição no sentido de estabelecer a República como forma de governo nacional. Recebendo esta evolução constitucional, a Carta Magna de 1988 elegeu, em seu artigo 1.º, a forma republicana de governo como princípio fundamental da ordem constitucional. [1]
Feitas estas considerações iniciais, passa-se a discorrer sobre o conteúdo do termo República.
O conceito República foi classicamente construído como sendo uma forma de governo contraposta ao sistema monárquico, onde o povo – e não mais o Monarca – era titular da coisa pública. Na verdade, seu alcance espraia uma gama de características e preceitos que ultrapassa este mero entendimento formal.
Nas palavras de Canotilho, o primeiro caracter de um Estado republicano é portar uma "comunidade política, uma ‘unidade colectiva’ de indivíduos que se autodetermina politicamente através da criação e manutenção de instituições políticas próprias assentes na decisão e participação dos cidadãos no governo dos mesmos." [2]Conclui-se, então, que regime republicano é regime representativo, ou seja, os cidadãos se fazem representar por agentes públicos que, em nome e com consentimento daqueles, gerenciam e administram a res publica.
A par desta característica fundamental ao regime republicano, Ruy Barbosa, ao comentar a Carta Constitucional de 1889, já acentuava um outro ponto essencial à construção do princípio republicano. Dizia o insigne mestre que não bastava para a caracterização do regime a simples tripartição do poder. É necessário que "sobre existirem os três poderes constitucionaes, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, os dois primeiros derivem, realmente, de eleição popular." [3] É a consagração do voto como meio indispensável para a legitimação dos agentes públicos que exercerão o controle e administração da coisa pública.
Os desdobramentos do conceito de República não se exaurem com as duas características mencionadas. Trazem, antes de mais nada, uma infinidade de preceitos que dão roupagem ao conteúdo do princípio – temporariedade e não vitaliciedade dos mandatos eletivos; prestação, fiscalização e controle das contas da Administração Pública [4], etc.
Dentro deste universo de conceitos trazidos à luz pelo desdobramento do princípio republicano, o de responsabilidade é essencial.
1.1.REPÚBLICA E RESPONSABILIDADE
O ideário republicano da representatividade está estritamente ligado à noção de função pública como corolário da persecução dos interesses públicos e do bem comum (res publica) e, por via de conseqüência, radicalmente apartados dos assuntos ou negócios pessoais dos agentes públicos [5].
Portanto, o agente público que detenha em suas mãos parcela de poder sobre a res publica responderá, sob a égide do regime republicano, por seus atos praticados, conquanto revestido em suas funções. Neste sentido, afirma Michel Temer: "Aquele que exerce função política responde pelos seus atos. É responsável perante o povo, porque o agente público está cuidando da res publica. A responsabilidade é corolário do regime republicano." [6]
Note-se que não apenas aqueles que exercem função política – membros dos Poderes Legislativo e Executivo - são passíveis de responsabilidade em face do princípio republicano, mas também, os agentes públicos incumbidos de realizar e fazer valer a justiça, quais sejam, os magistrados.
Neste sentido, socorremo-nos da lição de João Barbalho que, por seu turno, já acentuava: "É da essência do regime republicano que quem quer que exerça uma parcela do poder público tenha a responsabilidade desse exercício;" [7]
É lógico que assim o seja! Para que se exerça uma parcela do Poder Público, em qualquer nível ou esfera de atuação e, sendo a coisa pública pertencente ao povo, a contrapartida desta delegação de poderes e de representação da soberania popular será, justamente, a responsabilidade. Se pertencente é a res publica à coletividade, perante todos eles os agentes públicos devem responder.
Independe, portanto, a qualidade do agente público – se revestido de poderes de representação da soberania popular como membro do Executivo, ou ainda como manifestador da vontade popular traduzida em Direito pelo Legislativo e realizada perante dado caso concreto pelo Judiciário – para que se averigúe a responsabilidade.
Para dar fins a esta questão envolvendo a responsabilidade dos agentes públicos como corolário do regime republicano, traz-se à colação as lições de Dalmo Dallari: "Todos os que agirem, em qualquer área ou nível, como integrantes de algum órgão público ou exercendo uma função pública devem ser juridicamente responsáveis por seus atos e omissões." [8]
2. RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
Tanto o regime republicano quanto os postulados do Estado Democrático de Direito trazem, em seu bojo, a idéia curial de responsabilidade e garantia ao direito dos administrados que, juntamente com os princípios e presunções do Direito Administrativo equilibram a equação existente entre a própria Administração Pública e aqueles a quem compete a observância de seus ditames.
Não por menos Celso Antônio Bandeira de Mello diz ser construído o Direito Administrativo sobre duas bases bastante sólidas, quais sejam, o Estado, com todas as suas prerrogativas, competências e funções, e as garantias dos administrados sopesando e limitando os poderes ao primeiro atribuídos. É justamente a esse sistema de pesos e contrapesos que o autor intitula de Regime Jurídico-Administrativo. [9]
É sob este prisma que se calca a responsabilidade extracontratual do Estado [10]. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, a Responsabilidade Estatal é "a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos." [11]
Por sua vez, Hely Lopes Meirelles define a responsabilidade estatal como sendo a imposição "à Fazenda Pública a obrigação de compor o dano causado a terceiros por agentes públicos, no desempenho de suas atribuições ou a pretexto de "exercê-las." [12]
Como muito bem anotado por Celso Antônio Bandeira de Mello, recorrendo-se às lições do jurisconsulto italiano Ricardo Alessi [13], necessária é a distinção entre o fato que enseja responsabilização do Poder Público e o ato Estatal que importa em sacrifício de direito de outrem, ato este, porém, amparado pelo ordenamento jurídico positivado.
Com efeito, situações há em que o interesse privado deva ser sacrificado para que haja a satisfação de um interesse coletivo, ou seja, público. Note-se que ambos os interesses neste caso são tutelados pelo Estado, porém, por circunstâncias diversas, não pode o Estado satisfazer o segundo sem que com isto importe em reais supressões ao direito de outrem, dando-se, a equivalência destes direitos sob a égide do princípio da legalidade que por sua vez é consagrado pelo ordenamento jurídico pátrio vigente.
Assim, havendo prévia disposição legal ou ainda autorização pelo ordenamento jurídico da possibilidade de agir o Estado em nome de um interesse coletivo, sem que com isso se deixe de afetar interesses particulares, não nos encontramos diante de um caso de Responsabilidade Extracontratual do Estado, mas sim de mera intervenção pública na esfera de direitos de outrem.
Para haver responsabilidade do Estado deve, necessariamente, ocorrer violação à esfera de direitos juridicamente tutelados pelo próprio Estado e não mero sacrifício deste.
Por fim, para que se encerre estas noções preliminares acerca da responsabilidade estatal e sua distinção dos atos que importam em sacrifícios legalmente outorgados ao Poder Público, distingue Celso Antônio Bandeira de Mello [14] os atos cujo teor visam diretamente extirpar um direito alheio daqueles que, ainda que com finalidades outras, indiretamente acarretam sacrifícios ao particular.
Nestes casos, em que age a Administração sob a guarda do princípio da legalidade e por isso pratica atos lícitos, entende o citado professor que somente nos casos em que há debilidade de direitos indiretamente ocasionados pela ação do Estado – uma vez que o ato visava a consecução de outro fim – é que se pode falar em responsabilidade estatal estando, portanto, excluídos do âmbito da responsabilidade os atos que objetivam diretamente a aniquilação de direito de outrem.
2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
A responsabilidade civil do Estado – ainda que não haja conformidade de entendimento doutrinário pátrio quanto a teoria a ser aplicada em cada caso específico [15] - sofreu, de tempos em tempos, inúmeras modificações e sustentações teóricas que variavam de acordo com os referenciais políticos, históricos e jurídicos para que viesse a se apresentar com a roupagem que hoje lhe é conferida pelo Direito Administrativo.
Para que se trace uma evolução histórica desta espécie de responsabilidade, mister que se perfilhe pelas várias teorias elaboradas ao longo dos anos, sobretudo por aquelas desenvolvidas pela doutrina e Conselho de Estado franceses, atendo-se pois, ao denominado sistema europeu-continental, uma vez que o sistema anglo-saxão não exerce influência direta no direito brasileiro.
Em assim sendo, pode-se dividir as teorias sobre a Responsabilidade Extracontratual do Estado da seguinte forma:
a) Teoria da irresponsabilidade;
b) Teorias civilistas;
-Teoria dos Atos de Império e de Gestão;
- Teoria da Culpa Civil;
c) Teorias publicistas;
- Teoria da Culpa Administrativa ou da Responsabilidade Subjetiva;
-Teoria da Responsabilidade Objetiva e suas divisões. Passa-se então a abordar estas teorias sob uma perspectiva histórico-jurídica com o intuito de se concluir por qual delas optou o legislador pátrio ao promulgar a Carta Republicana de 1988 para, enfim, abordar o tema da Responsabilidade do Estado Legislador e seus desdobramentos.
2.1.1 TEORIA DA IRRESPONSABILIDADE
Outrora, quando os Estados eram governados sob o regime absolutista, prevalecia a tese da irresponsabilidade do mesmo pelos atos praticados pelos agentes estatais ou seus delegados que viessem a violar direitos de particulares.
Esta tese fundamentava-se na idéia de soberania do Estado, ou seja, era inconcebível que o próprio Estado, criador e tutelador das regras jurídicas, as violassem. Não obstante a isso, entendia-se que o Estado gozava de "autoridade incontestável perante o súdito". [16] Daí surgirem as máximas: "The king can do no wrong" como dito na Inglaterra, ou seu equivalente na língua francesa: "Le roi ne peut mal faire".
Sobre este ponto em particular, interessante anotar as palavras de Duguit [17], que claramente demonstram a noção de incompatibilidade existente entre os atos praticados pelo Estado e sua responsabilização face aos mesmos, tendo em vista ser ele próprio, a pessoa jurídica competente para a criação das normas jurídicas.
"Es, pues, en definitiva el Estado soberano quien crea el derecho y siendo así no se puede admitir que pueda ser responsable. En la concepción tradicional la responsabilidad implica una violación del derecho: y quien crea el derecho por un acto de su voluntad soberana, no puede violare. Así como en los países de monarquía absoluta ‘el rey no puede hacer mal y, por tanto, no puede ser responsable, el Estado democrático, que no es más que la nación soberana organizada, tampoco puede hacer mal ni puede ser responsable". [18]
Note-se que a teoria da irresponsabilidade do Estado não era de todo irrefutável e não compreendia "completa desproteção dos administrados perante comportamentos unilaterais do Estado." [19] Chega-se a este entendimento pois o Estado, ainda que irresponsável por atos oriundos de sua gestão, deveria arcar com os ônus resultantes de seus atos danosos ao patrimônio de particulares se estes tivessem expressa previsão legal ou ainda quando o dano fosse resultado da intervenção no domínio particular por parte do próprio Estado. [20]
Havia também flexibilização ao princípio da irresponsabilidade do Estado quando o agente público ou pessoa delegada a executar serviço público agisse, dolosa ou culposamente, no mister de funções públicas e, deste ato, resultasse em violação a direito de particulares. Assim, ainda que o agente público respondesse individualmente pelos atos danosos por ele provocados ao exercer atividades públicas, estaria o particular possibilitado de ver-se ressarcido dos prejuízos por ele sofridos. [21]
Pela flagrante injustiça proporcionada pela teoria da irresponsabilidade do Estado que elevava o mesmo a um estado de intangibilidade jurídica quando da prática de atos lesivos a terceiros, logo esta teoria passou a ser combatida pelos cidadãos que a ela se submetiam. Entendia-se, como ainda hoje se entende, que o Estado, pessoa jurídica de direito público que é, não poderia se furtar de responder pelos atos lesivos que praticara uma vez que toda pessoa jurídica era - e ainda o é - titular de direitos e obrigações. E mais: sendo ele o incumbido de tutelar o direito, jamais poderia deixar de responder por ações ou omissões causadoras de danos a terceiros.
Note-se que a França já na primeira metade do século XIX admitia a possibilidade de responsabilização estatal, porém países como a Inglaterra e os Estados Unidos da América só vieram a abandonar o princípio da irresponsabilidade do Estado nos anos de 1946 e 1947, respectivamente. O primeiro o fez através do Crown Proceeding Act onde o Estado passa a se responsabilizar pelos atos de seus agentes desde que haja "infração daqueles deveres que todo patrão tem em relação aos seus prepostos e também daqueles deveres que toda pessoa comum tem em relação à propriedade". [22] Na Inglaterra, porém, a responsabilidade estatal sofre limitações uma vez que há casos em que a Coroa não pode ser acionada.
Já os Estados Unidos da América passaram a admitir a responsabilidade do poder público através do Federal Tort Act, onde os danos decorrentes de atividades estatais, desde que culposos ou abusivos, geram ao Estado o dever de ressarcimento ao administrado. Porém, o mais comum neste país é a responsabilização do próprio agente e não da pessoa jurídica pública.
Destarte, o princípio da Responsabilidade Extracontratual do Estado passou a ser condição necessária para a boa estruturação do Estado Democrático de Direito e, com isso, tornou-se preceito fundamental em todos os países ocidentais, possuindo de país para país, peculiaridades e diferenças que não afetam em si o dever de indenizar o particular pelos danos causados por agentes públicos.
2.1.2 TEORIAS CIVILISTAS
Num primeiro momento, restou superada a tese da irresponsabilidade do poder público para, enfim, dar-se o primeiro passo rumo às teorias que preceituavam a responsabilidade estatal.
Dá-se a estas teorias o nome de civilistas uma vez que se apoiavam nos ensinamentos trazidos pelo Direito Civil que, por toda sorte, baseia-se na idéia de culpa do agente causador do dano.
2.1.2.1 TEORIA DOS ATOS DE IMPÉRIO E DE GESTÃO
A doutrina civilista que baseava para fins de responsabilidade estatal a distinção entre a natureza dos atos de império e dos atos de gestão estabelecia que apenas os de gestão, praticados pelo poder público, seriam passiveis de controle da responsabilidade jurídica.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro assim distingue os atos de império dos atos de gestão: "Os primeiros seriam os praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial, exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhante; os segundos seriam praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares, para a conservação e desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão de seus serviços;" Como neste último caso não haveria distinção entre o comportamento estatal e o do particular, uma vez que ambos se encontram em situação de igualdade, estaria pois passível de responsabilidade o poder público, desde que averiguada a culpa - latu sensu – do agente deflagrador do dano.
Modernamente, porém, a possibilidade de se distinguir os atos de império dos atos de gestão da Administração Pública, perdeu por completo sua sustentabilidade quer por ser impossível dividir a personalidade do Estado – caso contrário estaríamos diante de uma dualidade de vontades partindo da mesma entidade jurídica -, quer pela dificuldade de se enquadrar como atos de gestão todos aqueles promovidos pelo Estado com a finalidade de administrar o patrimônio público ou quando estiver a prestar serviços. [23]
Themistocles Brandão Cavalcanti, ao tratar da impossibilidade da distinção entre os atos de império e os atos de gestão, cita Léon Duguit para dar fins à velha doutrina que sustenta tal teoria. Diz o autor: "A administração, diz ele, quando intervém, não o faz, nunca, como qualquer particular. A sua intervenção tem uma peculiaridade que é a de prover ao funcionamento do serviço público, e é esse o característico que define o ato administrativo, qualquer que ele seja." [24]
Assim, encerrado o debate acerca da possibilidade de distinção entre a natureza dos atos de império da dos atos de gestão, restou impossível se falar em responsabilidade estatal, ainda que haja culpa do agente, com fundamento nestes discrímens doutrinários.
2.1.2.2 TEORIA DA CULPA CIVIL
Esta teoria versa sobre a necessidade de se enquadrar a Responsabilidade Extracontratual do Estado sob o prisma puramente civilista da questão. Assim, para que fosse imputa responsabilidade pelos atos da pessoa política bastava a mera noção de culpa – latu sensu – no atuar da Administração através de seus agentes ou prepostos.
Neste ponto, interessante assinalar as palavras de Di Pietro que assim elucida a questão: "Embora abandonada a distinção entre atos de império e de gestão, muitos autores continuaram apegados à doutrina civilista, aceitando a responsabilidade do Estado desde que demonstrada a culpa. Procurava-se equiparar a responsabilidade do Estado à do patrão, ou comitente, pelos atos de empregados ou prepostos." [25]
Note-se que por força da doutrina civilista da responsabilidade estatal é que foi editada a norma contida no art.15 do Código Civil Brasileiro de 1916, consagrando entre nós a teoria da culpa civil. [26]
Vale neste ponto enfatizar as palavras de Themistocles Cavalcanti com o intuito de criticar a idealização do legislador pátrio no sentido de inserir no bojo do Direito Civil a questão da responsabilidade estatal: "Efetivamente, o problema da responsabilidade civil do Estado, em seu conteúdo jurídico e em suas dificuldades e sutilezas técnicas exige um sistema legislativo próprio e pressupões, para a sua boa aplicação, uma maleabilidade que não se pode encontrar na regra rígida do Código Civil". [27]
Como era de se esperar, até mesmo por força do Regime Jurídico-Administrativo, a doutrina civilista foi cedendo espaço às normas e princípios de Direito Público que, por sua vez, passaram a atuar nas diversas relações existentes entre o próprio Estado – como pessoa política que é – e seus administrados regendo, como conseqüência lógica deste acontecimento, a questão da Responsabilidade Extracontratual do Estado.
2.1.3 TEORIAS PUBLICISTAS.
O completo afastamento das regras e princípios de Direito Privado para se apurar a Responsabilidade do Estado deu-se, como já de muito é conhecida, pelo famoso Arrêt Blanco [28]. A partir daqui deu-se início a um processo de atrelamento da questão da Responsabilidade Estatal aos chamados princípios de Direito Público.
Destarte, afasta-se a aplicabilidade das normas de Direito Civil para que estas dêem lugar aos princípios, regras e peculiaridades próprias do Direito Público e Administrativo.
Neste sentido, a evolução destas teorias passaram pelas idéias de responsabilidade subjetiva – baseada na culpa – para atingir a denominada responsabilidade objetiva – baseada, grosso modo, na mera relação de causa e efeito entre o ato estatal e o evento danoso.
2.1.3.1TEORIA DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVA
A responsabilidade subjetiva quer significar o dever imposto a alguém de indenizar outrem, por ter agido, o primeiro, de modo a confrontar o ordenamento jurídico – agir este que pode ser doloso ou culposo – causando, ao segundo, um dano material ou jurídico, tendo em vista a prática de um ato comissivo ou omissivo.
Para Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, estar-se-á diante da teoria da responsabilidade subjetiva do Estado quando "em atuando o agente público com culpa ou dolo responde o Estado pelos seus atos culposos ou dolosos, se no exercício das atividades que lhe são próprias, e causando dano a terceiros, por lhe serem imputados." [29]Atente-se aqui para o fato de que a responsabilidade do Estado limita-se a abarcar os atos oriundos do serviço a ser prestado, não podendo este responder pelos atos de natureza estritamente pessoal do agente.
Pois bem, para a teoria da responsabilidade subjetiva do Estado e, atentando para os princípios de Direito Público que regem esta espécie jurídica, não se faz necessária a individualização do agente que agiu culposamente para a deflagração do dever de indenizar pelo Estado, basta a idéia trazida pela doutrina francesa de faute du service, ou seja, "culpa do serviço". [30]
Sobre este ponto vale novamente citar as palavras do insigne mestre Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: "Não se trata de culpa individual do agente público, causador do dano. Ao contrário, diz respeito a culpa do serviço diluída na sua organização, assumindo feição anônima, em certas circunstâncias, quando não é possível individualizá-la, e, então, considera-se como causador do dano só a pessoa coletiva ou jurídica." [31]
A noção, então, desvincula-se da idéia de culpa do agente ou delegado de serviços públicos – noção esta eminentemente de natureza privada – para passar a significar falta, culpa do serviço, ou seja, o serviço público deixa de funcionar, funciona incorretamente ou indevidamente ou, ainda, funciona tardiamente. É dizer: a consecução do serviço público que encerre uma das hipóteses da denominada tríplice modalidade – omissão, funcionou defeituosa ou tardiamente -, é motivo suficiente para que se faculte ao administrado o pleiteio, perante os órgãos competentes, a reparação do dano daí decorrente.
Porém, em que pese estarmos tratando da responsabilidade pela faute du service, e a estarmos abordando no campo da teoria subjetiva, alguns autores a colocam como uma ramificação da responsabilidade objetiva. Neste sentido e acompanhando o raciocínio de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello [32] e Celso Antônio Bandeira de Mello [33], colocamo-nos a favor da corrente doutrinária que entende ser a teoria da faute du service eminentemente subjetiva.
Chega-se a esta conclusão primeiramente porque, para que se atue no campo da responsabilidade subjetiva do Estado, não basta haver a mera relação causal entre o ato relacionado ao serviço estatal e o dano produzido ao administrado. Mister que haja, inevitavelmente, o elemento subjetivo da culpa – latu sensu – pois é por este que se verificará o dever de indenizar, ou não, incumbido ao Estado.
Outro ponto que merece destaque para se firmar o entendimento de que a teoria da culpa do serviço é subjetiva, e não objetiva, é justamente aquele que toca a questão da presunção da culpa.
Ora, ocorre que, por vezes, restará impossível ou ainda extremamente dificultosa a prova, por parte do administrado ofendido, da má consecução do serviço pelo Estado. Assim, o ofendido pela má execução do serviço fica isento de comprovar a culpa do Estado socorrendo-se da noção de culpa presumida.
O que se quer com isso comprovar é que, ainda que a culpa seja presumida, ou seja, bastando a mera relação de causalidade entre o dano e o ato lesivo – responsabilidade objetiva do Estado – para legitimar a vítima a pleitear indenização perante o Poder Público, não destitui o caráter subjetivo da teoria. Isto se dá, pois, comprovando o Estado que no seu agir, o fez diligentemente, estará este isento da obrigação de reparar o dano o que, em caso de objetividade da conduta, restaria impossível.
Por isso é que entende Celso Antônio Bandeira de Mello haver responsabilidade subjetiva quando "a conduta geradora de dano revele deliberação na prática do comportamento proibido ou desatendimento indesejado dos padrões de empenho, atenção ou habilidade normais (culpa) legalmente exigíveis, de tal sorte que o direito em uma ou outra hipótese resulta transgredido." [34]
Diante destes argumentos parece irrefutável a noção de que a teoria da faute du service enquadre-se perfeitamente na chamada responsabilidade subjetiva do Estado.
2.1.3.2 TEORIA DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA
Toda a dogmática que serve como substrato para a teoria da responsabilidade objetiva do Estado baseia-se, nos dizeres do magistério da professora Di Pietro "no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais". [35] Desta sorte, assim como são – ao menos em tese – repartidos entre toda a coletividade os benefícios oriundos da prestação de serviços públicos por parte do Estado, o mesmo deve ocorrer quando a situação se inverte, ou seja, havendo por parte de um (ou alguns) o sofrimento de um ônus maior do que aquele que lhe era lícito suportar face aos demais, rompe-se o equilíbrio pretendido pela ordem social devendo o Estado, para que as coisas retroajam ao status quo, indenizar o prejudicado utilizando-se, para tal, recursos da Fazenda Pública.
A teoria objetiva da responsabilidade do Estado subtrai, para fins de averiguação da procedência, ou não, da responsabilização estatal, a necessidade do elemento subjetivo (culpa ou dolo). Assim, para a presente teoria, basta que haja relação de causalidade entre o comportamento comissivo ou omissivo do Estado – seja este lícito ou ilícito – e a efetiva lesão na esfera juridicamente protegida do administrado.
Themistocles Cavalcanti, recorrendo-se aos ensinamentos e expressões de Gabba, salienta que para se verificar a responsabilidade da pessoa política é necessário apenas "o nexo causal entre a pessoa e o dano, sem atender à imputabilidade baseada na culpa, no procedimento, nas circunstâncias que ocasionaram o dano." [36]
Consoante demonstrado, temos então para a configuração da teoria objetiva da responsabilidade os seguintes elementos:
a)uma ação ou omissão do Estado lícita ou ilícita;
b)dano à esfera juridicamente protegida de outrem;
c)nexo de causalidade entre o comportamento do Estado e o dano.
Assim como na teoria da responsabilidade subjetiva do Estado tem-se a idéia da culpa do serviço que lhe serve de substrato, a responsabilidade objetiva possui, como fundamento, as chamadas teoria do risco e teoria do risco integral.
2.1.3.2.1 TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO
Para a concretização do dever jurídico de indenizar o administrado com fundamento na teoria do risco administrativo, basta que do ato injusto do Estado sobrevenha dano ao particular. Assim, nas palavras de Hely Lopes Meirelles, basta o "fato do serviço". [37]
A teoria do risco baseia-se fundamentalmente no risco natural decorrente das mais variadas atividades desenvolvidas pelo Estado no cumprimento de proporcionar os serviços públicos ao mesmo incumbidos.
Por esta idéia central, qual seja, que a atividade estatal promove um risco de dano, esta teoria faz incidir sobre o Estado a responsabilidade deste como se se tratasse de uma pessoa jurídica de direito privado que atuasse no ramo de seguros em que os segurados seriam os contribuintes – administrados – que, ao pagar os tributos devidos, contribuem para a formação de um fundo patrimonial coletivo. [38]
Saliente-se, todavia, que a teoria do risco administrativo, embora dispense a prova de culpa do Estado pelo dano causado ao administrado, permite que aquele demonstre, para fins de se eximir ou de atenuar o dever de indenizar, a culpa ou concorrência da própria vítima. É dizer: por esta teoria, basta a demonstração do nexo causal, ficando, o administrado, eximido de provar a culpa o que, de toda sorte, não garante que em todo e qualquer caso deverá o Poder Público indenizar o particular pelos danos sofridos em virtude da atuação estatal.
Os dizeres acima ficam corroborados pela seguinte decisão do Supremo Tribunal Federal ao julgar o Recurso Extraordinário de n.º 113.587-5 em que litigavam o Município de São Paulo e um particular:
CONSTITUCIONAL. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. C.F., 1967, art. 107. C.F./88, art. 37, par-6. I. A responsabilidade civil do Estado, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, que admite pesquisa em torno da culpa do particular, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade estatal, ocorre, em síntese, diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. A consideração no sentido da licitude da ação administrativa e irrelevante, pois o que interessa, e isto: sofrendo o particular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, e devida a indenização, que se assenta no principio da igualdade dos ônus e encargos sociais. II. Ação de indenização movida por particular contra o Município, em virtude dos prejuízos decorrentes da construção de viaduto. Procedência da ação. III. R.E. conhecido e provido.
2.1.3.2.2 TEORIA DO RISCO INTEGRAL
Segundo o magistério de Hely Lopes Meirelles [39] há ainda, no bojo da responsabilidade objetiva do Estado, a chamada teoria do risco integral [40] que se diferencia da teoria do risco administrativo justamente por obrigar o Poder Público a indenizar o particular por todo ato que atente contra a esfera jurídica protegida do mesmo, ainda que para o surgimento do dano concorra ou dê causa a vítima.
Assim, teríamos como principal elemento diferenciador das teorias do risco e do risco integral, a admissibilidade pela primeira das causas excludentes de responsabilidade, enquanto na teoria do risco integral estas causas jamais poderiam servir como fundamento para eximir o dever jurídico de indenizar incumbido ao Estado.
Pelo caráter extremo, abusivo e injusto da teoria do risco integral, a mesma vem sofrendo fortes criticas, restando a ela poucos cultuadores, e tendo ainda reduzida sua aplicabiliadade, porquanto, caso o fosse, geraria graves conseqüências aos postulados e princípios não só do Direito Público, mas sim do ordenamento jurídico como um todo.