11. Eficácias vertical, horizontal e vertical com repercussão lateral dos direitos fundamentais
Já falamos das eficácias dos direitos fundamentais sobre o Estado (eficácia vertical) e sobre as relações entre os particulares (eficácia horizontal). Porém, é chegado o momento de acrescentar algo à exata compreensão de tais eficácias.
Canaris, ao abordar a questão da repercussão dos direitos fundamentais sobre os particulares, afirma que não é certo falar em eficácia imediata em relação aos terceiros, propondo a observância da distinção entre eficácia imediata e vigência imediata. Afirma que, a não ser assim, "também a vinculação imediata aos direitos fundamentais do legislador privado poderia ser designada como uma eficácia imediata em relação a terceiros" 120. Adverte que os "destinatários das normas dos direito fundamentais são, em princípio, apenas o Estado e os seus órgãos, mas não os sujeitos de direito privado" 121. Nessa linha, conclui que o objeto de controle "segundo os direitos fundamentais são, em princípio, apenas regulações e atos estatais, isto é, sobretudo leis e decisões judiciais, mas não também atos de sujeitos de direito privado, ou seja, e sobretudo, negócios jurídicos e atos ilícitos" 122.
Canaris, ao destacar a distinção entre vigência imediata e eficácia imediata dos direitos fundamentais, chega ao resultado de que esses direitos têm vigência imediata, embora se dirijam apenas contra o legislador e o juiz, quando então não se pode pensar em eficácia imediata em relação a terceiros. Como é fácil perceber, Canaris está preocupado com o art. 1º, n. 3, da LF alemã, que afirma que os direitos fundamentais vinculam, "como direito imediatamente vigente", o legislador e os órgãos jurisdicionais.
Note-se, porém, que mesmo que se aceite que apenas o legislador e o juiz são os destinatários dos direitos fundamentais, não se pode negar que a decisão do juiz incide sobre a esfera jurídica do particular. Ou melhor, que o juiz, ainda nesse caso, tomará em consideração a vigência (que seja) dos direitos fundamentais sobre os particulares.
Porém, quando Canaris afirma que apenas a decisão do juiz – além obviamente da lei – deve ser objeto de controle a partir dos direitos fundamentais, ele deixa claro que também os particulares podem controlá-la com base nos direitos fundamentais – como não poderia deixar de ser 123. Ora, ao se permitir que o juiz tome em consideração a incidência dos direitos fundamentais sobre o particular, admite-se, implicitamente, que os direitos fundamentais têm valor perante os sujeitos privados independentemente de lei. Assim, o problema de se saber se os direitos fundamentais incidem sobre as relações dos particulares acaba recebendo uma resposta por outra via.
Na linha do raciocínio de Canaris, sendo o Estado o destinatário dos direitos fundamentais, a atividade do legislador e do juiz não pode ser compreendida como eficácia imediata perante terceiros. Ou melhor, nessa direção não se pensa em eficácia horizontal direta, mas apenas na intermediação da lei e do juiz para a projeção dos direitos fundamentais. Com efeito, Canaris não nega que a decisão do juiz, como destinatário dos direitos fundamentais, produz efeitos sobre as relações entre os particulares, afirmando que isso ocorre mediatamente, quando os direitos fundamentais são considerados na concretização das cláusulas gerais 124.
Como a doutrina de Canaris foi influenciada pela LF alemã, a sua preocupação básica foi a de deixar claro que os direitos fundamentais vinculam o legislador e o juiz, ainda que possam ser tomados em consideração para a definição dos litígios que envolvem os particulares. Canaris adverte que os direitos fundamentais também têm função de mandamento de tutela, obrigando o legislador a proteger um cidadão diante do outro. No caso de inexistência ou insuficiência dessa tutela, o juiz deveria tomar essa circunstância em consideração, projetando o direito fundamental sobre as relações entre os sujeitos privados. Nessa linha, se, por exemplo, o legislador não atuou de modo a proteger o empregado diante do empregador, quando tal era imperioso em face do direito fundamental, houve omissão de tutela ou violação do dever de proteção estatal.
Note-se, porém, que esse raciocínio dá valor à decisão judicial, e não à dimensão material do direito fundamental. Ou seja, o direito fundamental não é compreendido como voltado a influir diretamente sobre os sujeitos privados, mas apenas a apontar eventual violação do dever do legislador proteger um particular contra o outro. Parece que Canaris, ao pensar nas relações entre o direito fundamental material e o processo, adota o modelo da legitimidade procedimental, supondo que o direito é apenas o resultado do procedimento, e assim recusa legitimidade material aos direitos fundamentais.
Acontece que, ao menos no direito brasileiro, é importante buscar a integração dos modelos da justiça material e da legitimação procedimental, considerando as funções que os direitos fundamentais podem exercer diretamente sobre os particulares 125. É inquestionável, por exemplo, que os direitos fundamentais tem grande importância na regulação do modo de ser das relações entre o empregador e o empregado, o que somente pode significar uma eficácia imediata e direta dos direitos fundamentais sobre os privados 126.
Não obstante, essa eficácia horizontal direta ou imediata não exclui a eficácia horizontal mediata ou indireta, que se dá através da lei e da decisão judicial. Explique-se melhor: os direitos fundamentais incidem sobre os particulares de forma imediata, ainda que possam vir a ser apreciados na decisão jurisdicional. Nessa última hipótese é que a eficácia será mediata, obviamente em relação às partes do processo.
Porém, essa eficácia mediata em relação às partes não pode ser confundida com uma eficácia lateral. É que a relação do Estado com os direitos fundamentais pode ser vista de duas formas. Pode-se pensar na i) atividade estatal (p,. ex., decisão jurisdicional) que liga o direito fundamental aos particulares e ii) no direito fundamental como algo que somente pode incidir sobre o órgão estatal, porque dirigido a vincular a forma do seu próprio proceder.
Perceba-se que o conteúdo da decisão do juiz, ao tomar em consideração o direito fundamental, incide sobre os particulares. Ou seja, o direito fundamental, no caso, é tomado em conta para incidir em relação aos sujeitos privados. Trata-se, portanto, de uma eficácia sobre os particulares – e, assim, horizontal - mediada pelo juiz – e, por isso, mediata ou indireta. Ou melhor, no caso há eficácia vertical em relação ao juiz e eficácia horizontal mediata diante dos particulares.
Porém, algo distinto acontece quando se pensa na incidência do direito fundamental em face dos órgãos estatais – que também é eficácia vertical – para efeito de sua vinculação no seu modo de proceder e atuar. Nessa hipótese, o direito fundamental, ainda que tenha por objetivo vincular o modo de atuação estatal perante o particular, não se projeta sobre as relações entre os sujeitos privados, pois não tem qualquer objetivo de regular-lhes. O direito fundamental, aí, tem eficácia apenas em face do órgão estatal, pois se presta a vincular o seu modo de atuação, que possui a função de atender não apenas aos direitos fundamentais que se destinam a regular as relações entre os particulares, mas sim a quaisquer direitos.
É essa a exata situação do juiz em relação ao direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional. Esse direito se dirige contra o juiz, não se confundindo com os outros direitos fundamentais que podem ser levados à sua decisão. Esses "outros direitos" têm eficácia perante o particular. Porém, o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional implica apenas na vinculação ou em um dever do juiz, não incidindo, antes ou depois da decisão, sobre o particular.
Na realidade, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, ao ser tomado em conta pelo juiz, pode apenas repercutir sobre o particular, conforme a maior ou menor efetividade da técnica processual empregada no caso concreto, o qual pode nada ter a ver com um "outro direito fundamental".
Nessa dimensão, para se evitar a confusão entre a eficácia do direito fundamental objeto da decisão judicial, e a eficácia do direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional sobre a atividade do juiz, deve ser feita a distinção entre eficácia horizontal mediata e eficácia vertical com repercussão lateral, essa última própria do direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional.
12. O problema da eficácia vertical do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva e da sua eficácia lateral sobre os particulares
Como restou claro, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva é dirigido contra o Poder Público, mas repercute sobre a esfera jurídica das partes. Nesse caso, como demonstrado, não há intermediação do juiz em relação aos direitos fundamentais – no moldes do que ocorre com a lei -, mas simples observância do direito fundamental pelo juiz como agente do Estado, na sua atividade de prestar a tutela jurisdicional.
A própria regra processual, que constitui resposta ao dever do Estado, existe para permitir ao juiz prestar a tutela jurisdicional, quando então incide sobre os particulares. Algo não muito diferente ocorre na hipótese em que se defere ao juiz uma dimensão de poder que lhe permite a escolha entre duas ou mais alternativas para a prestação da tutela jurisdicional da melhor forma possível – exemplo do poder conferido ao juiz para a determinação das modalidades executivas dos arts. 461. do CPC e 84 do CDC -, pois aí, diante do caso concreto, só existirá uma alternativa ótima ou correta, quando o "modo" de prestação da tutela jurisdicional apenas repercutirá sobre os particulares.
Se nessas hipóteses o direito fundamental (a efetividade da tutela jurisdicional) põe em relação o particular e o Estado (eficácia vertical), a eficácia que diz respeito aos particulares somente pode ser lateral, e não horizontal. Para se compreender melhor, é necessário perceber que o Estado, além de obrigado a não agredir os direitos fundamentais e de fazê-los respeitar pelos particulares, deve tomar em conta o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional para proteger os direitos com efetividade, dando razão de ser ao próprio ordenamento jurídico.
Como é fácil perceber, tal modo de ver a teoria dos direitos fundamentais é importante diante do direito à tutela jurisdicional efetiva, pois se esse direito è voltado contra o Estado, ele indubitavelmente repercute sobre os particulares.
Quando o juiz presta a tutela jurisdicional, seja exercendo a escolha da modalidade executiva adequada, seja suprindo eventual omissão legislativa, deve aplicar a regra da proporcionalidade. Isso porque o exercício do poder jurisdicional, ainda que resulte de um direito fundamental, pode afetar não somente o titular desse direito, mas também direito fundamental de particular que a ele se contraponha, vale dizer, direito fundamental do réu. Além disso, ainda que existindo regra expressa sobre a aplicação de determinada técnica processual, ela obviamente não pode deixar de valorada na perspectiva da regra da proporcionalidade.
Há visível relação entre o direito à efetividade da tutela jurisdicional e o direito de defesa, no sentido de que a progressão do primeiro pode implicar na restrição do segundo. Lembre-se, considerando-se esses direitos, i) que o procedimento de cognição parcial implica na restrição ao direito à alegação; ii) que a tutela antecipatória – dita com base em verossimilhança – implica na restrição do direito à produção de prova; iii) que os provimentos executivos e mandamentais podem se ligar a meios executivos diversos; iv) que o juiz pode conceder provimento e meio de execução diverso do pedido; v) que o juiz pode, de ofício, ainda que depois do trânsito em julgado da sentença, conceder meio executivo diferente do fixado na sentença; e, enfim, vi) que a omissão do legislador, em instituir técnica necessária para a efetividade da tutela de um direito, deve ser suprida diante do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.
É certo que os procedimentos de cognição parcial e a tutela antecipatória instituída em procedimentos especiais, quando vistos como módulos legais, constituem frutos do dever do legislador. Acontece que o procedimento deve ser pensado como um componente necessário à realização do direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional. Nesse sentido, existe para incidir sobre os particulares, e, portanto, pode ser questionado ao ser aplicado pelo juiz.
Se o procedimento ou a tutela antecipatória são postos em normas processuais específicas que incidem sobre os particulares (módulos legais), presume-se a sua legitimidade e um equilíbrio entre os valores, de modo que somente poderão deixar de ser aplicados quando essa presunção for destruída, em razão de conterem limitações não fundadas na idéia que determina que a restrição deve estar amparada nos valores constitucionais.
No caso de omissão legislativa em relação a meio executivo adequado, não há como pensar, por óbvio, em controle da constitucionalidade da lei, mas sim se a técnica processual pretendida encontra amparo na harmonização do direito à efetividade da tutela jurisdicional com o direito de defesa, sempre compreendidos no contexto das necessidades do caso concreto. Aqui, ao contrário da situação anterior, não é o caso de destruir uma presunção, mas sim de demonstrar uma omissão. Nessa hipótese, em face da aplicabilidade imediata do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, basta verificar se a técnica processual pretendida é necessária para a realização desse direito e se nada impede, diante da análise do direito do réu, a sua concessão.
Quando o legislador afirma que a melhor resposta ao direito fundamental a efetividade da tutela jurisdicional é conferir ao juiz, diante de cada caso concreto, o poder para a escolha do meio executivo mais idôneo, a preocupação não será a de destruir presunção ou evidenciar omissão (até porque elas não existem), mas sim a de controlar o poder de escolha do juiz por meio da regra da "necessidade". Nesse último caso, tanto o autor quanto o réu podem controlar a escolha do juiz, pois se o autor tem direito à efetividade da tutela do seu direito, e assim ao meio executivo idôneo, o réu tem direito que esse meio seja aquele que lhe cause a menor restrição possível 127.