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Sobre mediações e papeizinhos

Agenda 26/10/2016 às 12:33

Como a mediação está se transformando num procedimento burocrático no Brasil, ao invés de se moldar à simplicidade da Lei 13.140/15.

Quando se acumula muita experiência de vida, percebemos que as coisas simples são as que melhor resolvem as situações. Contudo é um velho hábito do ser humano (ou do brasileiro?) complicar aquilo que poderia ser simples e eficaz. Nesse contexto me refiro à recente Lei 13.140/15, que passou a viger em dezembro de 2015. É a lei que regula a Mediação, que nada mais é do que uma resolução de conflitos que, em tese, deveria ser mais rápida, eficaz e econômica do que os meios judiciais normais, e acessível a qualquer cidadão: pagando-se o mediador, caso seja possível, ou de forma não onerosa, caso haja necessidade da gratuidade.

Por acreditar que a cultura de paz deve ser implantada definitivamente no coração do homem e que pequenas ações podem fazer um mundo melhor, me tornei mediadora. Não gostava da advocacia, porque era obrigada a tomar partido de alguém. Tomar partido quase nunca nos traz paz, porque não existe ninguém 100% certo em algum conflito. Sempre existem dois lados e duas maneiras de se enxergar uma mesma realidade. Por isso, quando me tornei mediadora, pensei, de forma empolgada e talvez ingênua, que muitas pessoas gostariam de resolver seus próprios conflitos com a ajuda de um facilitador, ao invés de entregar seus problemas nas mãos de um terceiro para obter uma solução, no caso, um juiz.  De fato, ainda acredito que muitas pessoas pensem assim. Acho que, pela lógica, se a mediação fosse explicada e entendida pelas pessoas como acontece, por exemplo, em outros países, muitos se interessariam por mediar ao invés de litigar.

Assim, ao tentar aplicar a Lei 13.140/15, com toda sua simplicidade, comecei por instituir um projeto em uma ONG de periferia, onde entendi que poderia, de forma voluntária e gratuita, ajudar as pessoas em conflito a dialogarem melhor e resolverem seus desentendimentos. Meu projeto era bem singelo: atendia aos próprios pais e parentes das crianças atendidas pela ONG, de acordo com o texto legal. Meu espaço físico era uma sala com uma mesa redonda e 6 cadeiras e o refeitório da ONG disponível ao lado, para se tomar um café ou comer um pão de queijo.

Tive o cuidado de observar os princípios contidos no art 2º da Lei 13.140/15:

Art. 2º - A mediação será orientada pelos seguintes princípios:

 - imparcialidade do mediador; 

 II - isonomia entre as partes; 

 III - oralidade; 

 IV - informalidade; 

 - autonomia da vontade das partes; 

 VI - busca do consenso; 

 VII - confidencialidade; 

 VIII - boa-fé. 

Nas minhas mediações procurei atender a todos os princípios e explicava para as partes em linguagem simples o que nos propúnhamos a fazer ali. Ainda que as partes não estivessem em boas relações, comigo sempre foram respeitosas e atentas.

Ainda de acordo com a referida lei,

 Art. 3º - Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação. 

§ 1o A mediação pode versar sobre todo o conflito ou parte dele. (grifo nosso)

§ 2o O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público.

Nas minhas mediações, atenta aos princípios, mediei também conflitos como um todo ou parte deles. As que exigiam o crivo do MP foram encaminhadas por mim ao Fórum.

E por que achei que estava apta a ser mediadora?  Segundo a mesma lei,

Art. 04 -O mediador será designado pelo tribunal ou escolhido pelas partes. ( grifo nosso)

 § 1o O mediador conduzirá o procedimento de comunicação entre as partes, buscando o entendimento e o consenso e facilitando a resolução do conflito

Art. 9º -  Poderá funcionar como mediador extrajudicial qualquer pessoa capaz que tenha a confiança das partes e seja capacitada para fazer mediação, independentemente de integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe ou associação, ou nele inscrever-se. (grifo nosso)

Entendi estar apta a mediar porque cursei Mediação de Conflitos na Pontifícia Universidade Católica do meu Estado, que me capacitou a ser mediadora extrajudicial. Fiz também dois cursos de capacitação na Universidade de Harvard e outros cursos aqui no Brasil, incluindo Práticas Simuladas de Mediação.  Dessa forma, de acordo com a lei, no início do ano de 2016 eu estava plenamente capacitada a mediar, o que de fato aconteceu. Completei várias mediações com sucesso, atingindo 90% de acordo entre as partes que mediei. As pessoas saiam da sala satisfeitas e dizendo “puxa, como foi fácil, achei que seria horrível e não foi”, o que me dava imensa gratificação pessoal.

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Neste interim fiz um acompanhamento para saber se os acordos firmados nas mediações das quais eu participava estavam sendo cumpridos. Estavam. Puxa, que alegria! Mas a alegria deu lugar a outras preocupações: o advogado da ONG criou objeções ao projeto, dizendo ser perigoso lidar com isso, caso alguém se arrependesse do próprio acordo e entrasse na justiça contra a ONG. Preocupada, me dirigi ao Tribunal do Estado para que eles me trouxessem a solução através de alguma burocracia pertinente, algum papel que protegesse a ONG de eventual problema. O Tribunal demorou meses para me dar alguma informação, apesar da boa vontade de seus integrantes. Obtive informações diversas, não só do Tribunal, mas de outras fontes relacionadas: sugeriram que eu montasse um núcleo de conciliação dentro da própria ONG, que por óbvio não tem espaço físico nem se presta a ser núcleo de conciliação regido pelo governo. Ouvi que eu não poderia mediar sozinha (apesar de que sempre tive uma colega também voluntária que mediou comigo, mas veja bem, a lei não obriga a isso); disseram que eu deveria obrigatoriamente montar uma câmara; como constestei o fato diante da lei, me disseram que eu deveria me inscrever na lista de mediadores judiciais, o que é bom, mas não estou impedida de ser uma mediadora extrajudicial, porque segundo a lei estou capacitada e tenho a confiança das partes; que eu não poderia fazer acordos que não versassem sobre todos os direitos envolvidos no caso;, sendo que a lei fala que o acordo pode ser total ou parcial. Também ouvi de outras partes do meu Estado argumentos vindos de juízes, tais como: “se sou juiz vou virar um mero homologador de acordos dos outros? Me recuso” .

Por outro lado, os advogados, em sua maioria, se sentem ameaçados pelo processo da mediação. Se eu não judicializar, como vou ganhar dinheiro? Caros, em que momento os advogados foram excluídos do processo de mediar? Muito pelo contrário, mediar junto com seu cliente, ajudando-o a trazer solução mais rápida e econômica do que pagando custas judiciais, é um serviço a mais que se acrescenta ao portfólio do advogado, e não um entrave ao seu trabalho. O advogado não está ali para aumentar o conflito, mas para trazer solução e paz. Qual cliente do mundo não prefere ter preservado o seu direito de também opinar pela solução do seu caso? De poder falar e ser escutado? E qual cliente não se sente feliz e seguro em ter um advogado consigo, para que lhe sejam explicados seus direitos? Uma coisa não é divorciada da outra. Muito ao contrário, são complementares, o trabalho do advogado e do mediador.

Bom, e o que era pra ser simples, virou uma coisa de doido. Meu trabalho humanitário, que eu gostava tanto de fazer, passou a me preocupar, porque não quero prejudicar a ONG. E as pessoas, que precisam de ajuda e que ficariam satisfeitas em obtê-la, se quiserem, devem procurar o Estado, através da Defensoria Pública, e entulhar ainda mais os fóruns que já contam com 110 milhões de processos em trâmite.

Mas essa não é a única perda da estória toda. A mediação, ao contrário do que muitos pensam, não é um acordinho entre as partes. Não é a estória do “eu quero receber 100, o outro quer pagar zero, então chegamos ao resultado final de 50”. Não, senhores operadores do direito e leigos: a mediação é muito mais que isso. Trata-se de  ensinar às partes escutarem o que o outro tem a dizer. É mostrar que os dois lados tem um pouco de razão. É mostrar que as pessoas podem, sim, se empoderar de seus próprios problemas e que tem força para resolvê-los se realmente quiserem, bastando para isso uma orientação. É usar técnicas que ensinam as partes a dialogar. É proteger as relações de família como  num divórcio, por exemplo, em que a luta que os pais travam entre si, recai sobre os filhos, e ensinar a esses pais que os filhos não sairão ganhando nessa guerra. É mostrar que escolas e alunos ditos problemáticos podem chegar a soluções práticas que contemplam as duas partes. É trazer valores como educação, compromisso com a verdade e moral à mesa como sendo importantes e impossíveis de serem descartados. É colocar pessoas que antes nem se olhavam para conversar e dali pra frente terem a percepção de que conseguirão dialogar novamente se for necessário.

E além de ser tão precioso para as relações familiares, pode também resolver problemas de empresas, conectando empresários a fornecedores, consumidores, funcionários entre si, enfim, assim como o conflito humano não tem fim, tampouco o uso da mediação o tem.

 A mediação é mesmo pacificadora. Que pena que precisemos de muitos, muitos papéis, papeizinhos, formulários, folhinhas, regras que não estão na lei, e um mundo inteiro de burocracia para nos impedir de resolvermos nossos conflitos de maneira simples e civilizada.

Sobre a autora
Lia Marchiori Andrade

advogada, mas atua como mediadora, capacitada pela PUC Minas e pela Harvard Law School em Mediation Disputes e Complex Mediation Disputes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Lia Marchiori. Sobre mediações e papeizinhos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4865, 26 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53029. Acesso em: 26 dez. 2024.

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