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A pesquisa clínica médica e a necessidade de sua regulamentação

Agenda 07/03/2017 às 15:46

A pesquisa clínica médica, ainda nos dias de hoje, não possui regulamentação específica. Devido às atrocidades cometidas nesse campo, é preciso que seja regulamentada, com base na ética e princípios fundamentais.

1. Conceito de pesquisa clínica médica

As pesquisas clínicas médicas são estudos nos quais pessoas voluntariam-se para testar novos tratamentos médicos (drogas e dispositivos, como exemplos), mediante prévia aprovação do Comitê de Ética e consentimento informado fornecido pelo paciente. Os médicos usam as pesquisas clínicas para aprender se um novo tratamento é eficaz, eficiente e seguro para as pessoas. Esse tipo de estudo – comumente desenvolvido nas Fases I, II, III e IV – é necessário para o desenvolvimento de novos tratamentos para doenças diversas. À vista da falta de comprovação médica-científica, são reconhecidos como tratamentos experimentais.

Necessário observar, também, que nem todas as pesquisas clínicas compreendem tratamentos médicos, mas podem ser realizadas com o intuito de observar novas maneiras de detectar, diagnosticar ou aprender a extensão da doença. Algumas são conduzidas com o fim de prevenção de doenças.

A pesquisa clínica envolve precipuamente os princípios da autonomia, beneficência, não maleficência, justiça e dignidade da pessoa humana.


2. Breve histórico

O termo “experimentação humana” ainda evoca em muitos a impressão de experimentos atrozes conduzidos em prisioneiros da Segunda Guerra Mundial (em especial, judeus). Ademais, a impressão negativa foi propagada no pós-guerra por episódios notáveis de pesquisa clínica envolvendo seres humanos, com a seleção de prisioneiros, deficientes mentais, pobres e minorias étnicas como, por exemplo, o estudo de Tuskegee em sífilis.

Vejamos dois casos emblemáticos em detalhes:

2.1. O caso médico de Nuremberg

O julgamento do médico Karl Brandt e outros nos anos de 1946 e 1947 pelo Tribunal Militar de Nuremberg revelou terríveis e absurdos experimentos conduzidos por cientistas e médicos nazistas em prisioneiros dos campos de concentração sem que tivessem seus consentimentos ou qualquer forma de controle ético. O caso afetou a confiança da comunidade internacional e levantou o questionamento acerca da proteção e do bem estar do sujeito de pesquisa deixados unicamente sob o juízo e a consciência de um investigador.

Os experimentos incluíram a deliberada infecção com tifo, malária, febre amarela, varíola, paratifoide, cólera, difteria para avaliação de vacinas e drogas experimentais; provocar feridas de guerra e não tratá-las para teste de eficiência de antibióticos nas infecções agravadas; ensaios nos quais os indivíduos foram trancados em câmaras de baixa pressão que simulavam a altitude elevada de mais de 68.000 pés – os aviões comerciais atualmente voam à altitude média de 11.000 pés – ; testes de congelamento nos quais os sujeitos eram postos nus a temperaturas abaixo do ponto de congelamento ou colocados em tanques de gelo; envenenamento de comida para determinar os efeitos da exposição; esterilizações por meio de cirurgia, altas doses de raio-x e substâncias químicas; morte de prisioneiros para obtenção de crânios e esqueletos para  análise de diferenças “raciais”.

2.2. O caso Tuskegee

Nos anos de 1930 e 1973, o Departamento de Serviços de Saúde Pública dos EUA (U.S. Department of Public Health Services – USPHS) conduziu um estudo da evolução natural da sífilis em Tuskegee, no Estado do Alabama. Os sujeitos de pesquisa eram em maioria negros, muitos dos quais sofriam de sífilis e tiveram o tratamento negado, conforme previsto no estudo, não obstante a disponibilidade de terapia baseada em arsênio e, após, na década de 1950, o conhecimento da penicilina como medicamento efetivo no combate à doença.

Necessário destacar que os sujeitos de pesquisa de Tuskegee foram informados de que o objetivo do estudo era tratá-los. Deliberadamente o USPHS os enganou. Ainda, quando alguns sujeitos de pesquisa morreram, o USPHS induziu as suas famílias a darem o consentimento para o exame anatômico como último estágio do estudo. O estudo sequer foi submetido ou aprovado por um comitê de ética.

No começo da década de 1970, o caso veio a público, com a descoberta de que o estudo não obteve o consentimento informado dos sujeitos de pesquisa e aos quais injustificadamente foi negada a penicilina quando esta se tornou disponível a partir da década de 1950. O litígio civil foi trazido pelos sobreviventes e finalizado em acordo monetário.


3. Regulamentação

Dado o cenário de arbitrariedades com graves danos e mortes provocados a pretexto de desenvolvimento científico, os organismos internacionais resolveram produzir uma série de documentos e tratados para regular o assunto. Apontamos a seguir os principais aplicáveis ao Brasil:

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- Código de Nuremberg (1947): criado a partir do Tribunal Internacional de Nuremberg, que julgou os crimes no contexto da Segunda Guerra Mundial, e reconhecido internacionalmente (inclusive pelo Brasil), foi inovador ao definir uma série de princípios éticos que regem a pesquisa com seres humanos.

- Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948): documento marco na história dos direitos humanos, foi elaborada por representantes de diferentes origens e culturais de todas as regiões do mundo e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de Dezembro de 1948, como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos e serve de inspiração para diversos tratados internacionais de direitos humanos e ordenamentos jurídicos nacionais.

- Declaração de Helsinki (1964): redigida pela Associação Médica Mundial (WMA), é considerado o principal documento internacional que estabelece um conjunto de princípios éticos que regem a pesquisa com seres humanos. Já foi objeto de revisão em sete oportunidades por meio de Assembleias Gerais, sendo que a última foi realizada em Fortaleza (Ceará), em 2013.

- International Ethical Guidelines for Biomedical Research Involving Human Subjects (2002) (em português, “Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisa Biomédica Envolvendo Sujeitos Humanos”): elaboradas pela organização não governamental Council for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS) com o objetivo de garantir que os princípios éticos contidos na Declaração de Helsinque possam efetivamente ser aplicados na prática, particularmente nos países em desenvolvimento. A CIOMS coopera com a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). O documento foi assinado pela World Medical Association, da qual a Associação Médica Brasileira é integrante. A última versão data de 2002, porém se encontra em fase de revisão.

Documento das Américas em Boas Práticas Clínicas (2005): no âmbito do continente americano, dispõe sobre “as diretrizes para as boas práticas clínicas que podem servir como fundamento para as agências regulatórias, assim como para investigadores, comitês de ética, universidades e empresas”. O Brasil é um dos países signatários do Documento.

Já na regulação interna do tema, destacamos as seguintes normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Federal de Medicina:

AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA)

- Resolução ANVISA nº 34/2008: “institui o Sistema de Informações de Estudos de Equivalência Farmacêutica e Bioequivalência - SINEB e o Cadastro Nacional de Voluntários em Estudos de Bioequivalência – CNVB”.

- Instrução Normativa ANVISA nº 4/2009: instituiu um guia de inspeção para verificar o cumprimento das Boas Práticas Clínicas (Documento das Américas em Boas Práticas Clínicas) nas pesquisas clínicas com medicamentos e produtos para saúde, a fim de garantir a qualidade dos resultados de eficácia e segurança obtidos, bem como assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade cientifica, aos sujeitos de pesquisa e ao Estado.

No texto, a ANVISA também estabeleceu que, na inobservância das Boas Práticas Clínicas, poderá determinar a interrupção temporária da pesquisa, a suspensão das atividades de pesquisa clínica do investigador envolvido na condução inadequada de um protocolo de pesquisa, ou mesmo o cancelamento definitivo de uma pesquisa clínica no centro em questão ou em todos os centros no Brasil, a invalidação dos dados provenientes dos centros e ensaios clínicos, a atualização de uma lista de centros não recomendados e a possibilidade de notificação de outros órgãos pertinentes (como o Conselho Federal de Medicina e Conselho Nacional de Saúde).

- Resolução ANVISA nº 4/2009: dispõe sobre as normas de farmacovigilância para os detentores de registro de medicamentos de uso humano, com a previsão de que as empresas e instituições responsáveis pela realização de pesquisas clínicas executadas no período pós-registro – estudos da Fase IV – devem encaminhar ao Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) as notificações de eventos adversos graves, ocorridas em território nacional, o mais breve possível desde o conhecimento pelo patrocinador do estudo.

- Resolução da Diretoria Colegiada - RDC ANVISA nº 38/2013: aprova o regulamento para os programas de acesso expandido, uso compassivo e fornecimento de medicamento pós-estudo.

- Resolução da Diretoria Colegiada - RDC ANVISA nº 9/2015: “dispõe sobre o regulamento para a realização de ensaios clínicos com medicamentos no Brasil”.

- Resolução da Diretoria Colegiada - RDC ANVISA nº 10/2015: “dispõe sobre o regulamento para a realização de ensaios clínicos com dispositivos médicos no Brasil”.

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE (CNS):

- Resolução CNS nº 251/1997: aprova normas de pesquisa envolvendo seres humanos para a área temática de pesquisa com novos fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos, com definição das Fases I, II, III e IV, estabelecimento da forma do protocolo de pesquisa e das atribuições do pesquisador, do Comitê de Ética em Pesquisa e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.

- Resolução MS/CNS nº 292/1999: regulamenta de forma complementar a Resolução CNS nº 466/2012 (que revogou a Resolução CNS nº 196/1996) no que diz respeito às pesquisas coordenadas do exterior ou com participação estrangeira e pesquisas que envolvam remessa de material biológico para o exterior.

- Resolução CNS nº 466/2012: prescreve os deveres das partes envolvidas nas pesquisas clínicas e, em especial, estabelece diretrizes para salvaguarda da segurança do paciente, minimização ou eliminação de parcialidade, garantia da confiabilidade dos dados e promoção de desenvolvimento de novas terapias seguras e efetivas por meio de ensaios clínicos.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM)

- Resolução CFM nº 1.885/2008: veda “ao médico vínculo de qualquer natureza com pesquisas médicas envolvendo seres humanos, que utilizem placebo em seus experimentos, quando houver tratamento eficaz e efetivo para a doença pesquisada”.

- Resolução CFM nº 1.931/2009: aprova o Código de Ética Médica, com disposições e vedações aos médicos relativas à pesquisa clínica.

Como se observa da relação das principais normas brasileiras referentes à pesquisa clínica, não temos sequer uma lei que regule o assunto, inserido no âmbito da pesquisa científica, conforme previsto no art. 218 da Constituição Federal de 1988. Temos somente normas de natureza administrativa e ética, editadas pela ANVISA, CNS e CFM, que, não obstante os esforços despendidos, não apresentam a força da lei civil – cuja competência legislativa é privativa da União (art. 22, inciso I da CF) e demanda intensas discussões no âmbito do Congresso Nacional.

Por essa ausência de norma legal, atualmente se encontra em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado nº 200/2015, de iniciativa dos Senadores Ana Amélia, Waldemir Moka e Walter Pinheiro, visando à regulação da pesquisa clínica no país.

Enquanto pende a discussão e a aprovação da lei apropriada para prescrever a matéria, a pesquisa clínica no Brasil deve apoiar-se nos princípios e fundamentos presentes na Carta Magna, na legislação infralegal e nos documentos internacionais aplicáveis que ditam os padrões éticos mínimos exigidos (standard of care), sujeitando-se inclusive à avaliação por comitê de ética estrangeiro quando se tratar de experimento médico sob patrocínio de entidade estrangeira.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HWANG, Helen. A pesquisa clínica médica e a necessidade de sua regulamentação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4997, 7 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53041. Acesso em: 22 nov. 2024.

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