1 INTRODUÇÃO
Crime e sociedade pós-industrial[1]. O delito e o direito econômico. Associações essas que são inerentes a uma nova realidade da sociedade de informação, em que consumidores são expostos a práticas criminosas de diversas espécies, a exemplo da omissão de dizeres ou sinais ostensivos sobre a nocividade ou periculosidade de produtos em embalagens e invólucros (art. 63 do CDC); ou mesmo a promoção da publicidade[2] enganosa ou abusiva (art. 67 do CDC).
No mercado de consumo, o sistema penal vai atuar para fazer o controle da violação de bens jurídicos que agora já não são mais apenas individualizados, como ocorria no século XIX. Passa-se a falar numa expansão do direito penal[3] e na liquefação dos bens jurídicos, ideia essa que se desenvolveu pela literatura jurídica para designar a política criminal que considera os bens jurídicos transidividuais e a proliferação dos tipos de perigo. É o caso dos crimes contra as relações de consumo. Sánchez dá como exemplo bem claro dessa tendência "a proteção penal do meio ambiente" (SÁNCHEZ, 2002, p. 113).
O presente artigo tem por finalidade fazer uma abordagem sobre a tutela penal das relações de consumo, considerando a noção expansionista do direito penal e a segunda velocidade com que Direito aborda a punição, havendo uma noção de substituição da pena privativa de liberdade por outras medidas previstas em lei que evitam a privação de liberdade do indivíduo.
Seguindo essa linha, o Supremo Tribunal Federal aprovou a Súmula Vinculante nº 35, que versa sobre a homologação da transação penal na seara dos Juizados Especiais Criminais. Dessa forma, não haverá formação da coisa julgada material, de forma que, se houver descumprimento das cláusulas da transação, possibilitar-se-á ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial.
Como os crimes contra as relações de consumo são passíveis de transação penal, pois que são crimes de menor potencial ofensivo, o tema encontra guarida para a construção do presente discurso.
2 A DENOMINADA "SOCIEDADE DE RISCO"
O Código de Defesa do Consumidor, ao enumerar os direitos básicos no art. 6º, assim menciona:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
I – A proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos.
Nesse dispositivo, a lei menciona a palavra “riscos”. Tal expressão remete à ideia de sociedade de risco, na qual estão inseridos os consumidores, tão expostos a: acidentes de consumo; à publicidade, enganosa ou abusiva; a cláusulas ou práticas contratuais abusivas.
Primeiramente, é importante saber que o termo “sociedade de risco” foi concebido pelo sociólogo alemão Ulrich Beck na década de 80, com sua obra Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. O autor faz parte de um grupo de estudiosos, tais como como Scott Lash, Anthony Giddens, Zygmunt Bauman e Niklas Luhmann, os quais estudam a pós-modernidade.
A sociedade de risco vai se caracterizar por ser aquela em que o progresso tecnológico necessariamente é acompanhado da produção de novos perigos perante a humanidade, tais como a ameaça de dano ambiental, de impactos nucleares, de lesões causadas por novos medicamentos lançados no mercado, etc. Segundo a concepção trazida por Lopez (2013), o Direito vai encontrar nos princípios da precaução e prevenção duas formas de amenizar a possibilidade de ocorrência de danos diante de tais ameaças.
O princípio da prevenção deve ser aplicado quando se está diante de um risco de dano concreto, ou seja, existem evidências científicas de que há um perigo (LOPEZ, 2013).
Já o princípio da precaução é previsto no item 15 da Declaração do Rio (ECO 92), também conhecida como Declaração de Princípios da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Em caso de riscos que não sejam concretos, mas sim potenciais ou abstratos, que possam causar danos sérios e irreversíveis ao meio ambiente, haverá, por parte dos Estados, a obrigação de adotar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação (LOPEZ, 2013).
Esses dois princípios constitiuem-se em verdadeiros panos de fundo do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que têm por objetivo proteger o consumidor no que tange à sua saúde e segurança; quanto à publicidade enganosa e abusiva; quanto aos danos morais e patrimonais; contra práticas abusivas no mercado de consumo.
3 OS DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS VOLTADOS À DEFESA DO CONSUMIDOR E O MANDADO IMPLÍCITO DE CRIMINALIZAÇÃO
O direito dos consumidores emerge na constelação dos novos direitos inerentes à ideia de fraternidade e solidariedade. A Constituição Federal, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (art. 48), ordenou ao Congresso Nacional que, dentro de 120 dias a partir da data de promulgação do texto constitucional, procedesse à elaboração de um Código Consumerista; em seu art. 5º, XXXII, estabeleceu a defesa do consumidor como direito fundamental; no art. 170, V, definiu a defesa desse sujeito de direitos como um dos princípios da Ordem Econômica.
O consumidor é um agente econômico presumidamente vulnerável na lei.[4] Atua na sociedade da informação, da cibercultura, da agilidade da comunicação e de riscos produzidos pelos fornecedores de produtos e serviços, sendo que a violação aos seus direitos pode demandar três tipos de proteção: administrativa, cível e penal.
Como é de nosso interesse abordar a temática dos crimes contra as relações de consumo - e frise-se que o bem jurídico tutelado é a relação de consumo - e levando em consideração a posição constitucional do inciso XXII no art 5º, considere-se o seguinte: a Carta Magna não pode criar crimes nem cominar penas, em virtude do processo dificultoso necessário para que se proceda à sua alteração e em virtude do próprio princípio da legalidade. Porém, ela pode definir patamares mínimos de criminalização abaixo dos quais a incidência da atuação estatal não pode se reduzir. Cunha (2013, p. 50) denomina essas previsões constitucionais mínimas de "mandados de criminalização":
Esses patamares são verdadeiros mandados de criminalização, porque vinculam o legislador ordinário, reduzindo a sua margem de atuação para obrigá-lo a proteger (de forma suficiente/eficiente) certos temas (bens ou interesses). É o que ocorre, por exemplo, com o crime de racismo (art. 5º, XLII, CF/88), crimes hediondos e equiparados (art. 5º, LXIII, CF/88), ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV, CF/88) e com os crimes ambientais (art. 225, §3º, CF/88).
Esses mandados de criminalização podem ser explícitos ou implícitos.
Como exemplos de mandados explícitos, podem ser citados o art. 5º, XLII da Constituição, que determina que o racismo constitui crime inafiançável e imprescritível; assim como o art. 225, §3º do texto magno, que menciona a atividade lesiva ao ambiente como crime.
Já o art. 5º, XXXII da Constituição seria um excelente exemplo de mandado de criminalização implícito. Dispõe, na literalidade, o seguinte:
XXXII - O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.
A letra da Constituição não traz disposição expressa no sentido de que deva existir tipificação e cominação de penas para crimes contra o consumidor. Porém, constate-se que o constituinte orienta o legislador ordinário na positivação dessas condutas na legislação, que, no caso, seriam as leis 8.078/90 e 8.137/90, sendo que tal previsão constitucional está diretamente relacionada com o princípio da proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot) da tutela penal[6].
Com as leis que sobrevieram (Código de Defesa do Consumidor e Lei 8.137/90), respeitou-se o princípio da legalidade. Carlos Bernal Pulido, comentando a proibição de insuficiência, destaca o seguinte:
A versão do princípio da proporcionalidade que se aplica frente aos direitos de proteção se chama proibição de proteção deficiente (o Untermassverbot da doutrina alemã). Este princípio se aplica para determinar se as omissões legislativas, que não oferecem um máximo nível de asseguramento dos direitos de proteção, constituem violações destes direitos. Quando se interpretam como princípios, os direitos de proteção implicam que o legislador lhes outorgue prima facie a máxima proteção. Se este não é o caso – pelo contrário, o legislador protege um direito somente de maneira parcial ou deixa de protegê-lo por completo – a falta de proteção ótima deve ser avaliada então desde o ponto de vista constitucional mediante a proibição de proteção deficiente [...] (PULIDO, 2007, p. 827).
4 O BEM JURÍDICO E A MISSÃO DO DIREITO PENAL
Com relação à missão do direito penal, existe uma controvérsia doutrinária entre dois autores, Claus Roxin e Günther Jakobs, que são aqueles que seguem a corrente denominada funcionalista.
É Roxin (1997) quem considera a tarefa do direito penal como sendo a proteção de bens jurídicos. É importante, então, compreender o que é um bem jurídico para o Direito. Certamente, seria aquilo de que o indivíduo dispõe como sendo essencial para que haja um convívio social harmônico com as demais pessoas numa mesma sociedade. Todos precisam viver em equilíbrio. O direito penal escolhe quais são os bens materiais ou imateriais que vai proteger para que haja uma pacífica convivência sob o manto do Estado – tal é a lógica do princípio da fragmentariedade.
Nas palavras de Roxin (1997, p. 56):
[...] bienes jurídicos son circunstancias dadas o finalidades que son útiles para el individuo y su libre desarrollo en el marco de un sistema social global estructurado sobre la base de esa concepción de los fines o para el funcionamiento del propio sistema […].
Para que o ser humano possa ter pleno desenvolvimento e em respeito aos direitos fundamentais, algumas circunstâncias ou finalidades são tuteladas, como a vida, a saúde, o patrimônio, de forma que o sistema penal agasalha via fragmentariedade tais circunstâncias, de modo a não deixar os indivíduos ao desamparo. O papel do Estado, então, é de fazer incidir o ius puniendi diante das violações a tais bens.
Essa ideia construída por Roxin é dita funcionalismo teleológico ou moderado. Fernando Capez dispõe que a proteção será exercida não apenas por meio da intimidação coletiva, mas também através da celebração de compromissos éticos entre Estado e indivíduo para que haja respeito às normas. O entendimento do autor brasileiro vai ao encontro do posicionamento de Roxin (CAPEZ, 2005).
Porém, para contrapor a construção do funcionalismo teleológico, mencione-se Günther Jakobs, o qual entende que a tarefa do direito penal seria assegurar a própria norma, o sistema, e não os bens jurídicos. Jakobs vai fazer ressurgir o direito penal do inimigo por meio dessa lógica, e aqueles que violam o sistema serão considerados não cidadãos.
Braga Júnior (2015, p. 188) menciona as características do direito penal do inimigo em Jakobs:
Segundo Jakobs, o Direito Penal do Inimigo se caracteriza por três elementos: em primeiro, constata-se um amplo adiantamento da punibilidade, isto é, a intervenção jurídico penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), no lugar de – como é o habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as sanções penais cominadas desbordam de uma proporcionalidade clássica: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é considerada para reduzir, correspondentemente, a pena em abstrato cominada ao tipo penal incriminador. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou inclusive suprimidas.
Cunha (2016, p. 34) assim dispõe em sua obra:
Já de acordo com o funcionalismo sistêmico (ou radical), defendido por Günther Jakobs, a função do Direito Penal é a de assegurar o império da norma, ou seja, resguardar o sistema, mostrando que o direito posto existe e não pode ser violado. Quando o Direito Penal é chamado a atuar, o bem jurídico protegido já foi violado, de modo que sua função primordial não pode ser a segurança de bens jurídicos, mas sim a garantia de validade do sistema.
No Brasil, prevalece o entendimento de que o Direito Penal tem uma verdadeira função de assegurar bens jurídicos, sendo essa sua missão imediata.
5 A LIQUEFAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS
Num primeiro momento, o direito penal se preocupou com os bens jurídicos individuais ou clássicos, como a liberdade, o patrimônio e a vida. Yokaichiya (2009) menciona que preponderava uma visão antropocêntrica no que tange à proteção jurídico-penal.
Ocorre que desde a década de 60 já havia uma noção de reforma do direito penal, no sentido de se enxergar os bens jurídicos sob um prisma social. Isso já vinha sendo observado no contexto internacional: é o que se pode chamar liquefação dos bens jurídicos ou espiritualização do direito penal. É a busca da proteção de bens jurídicos transidividuais. Na década de 90, veio o Código de Defesa do Consumidor trazendo a previsão de crimes que lesavam direitos de natureza transidividual – os crimes contra as relações de consumo, que protegem a higidez do mercado como um todo.
Como é sabido, o direito penal é subsidiário e fragmentário. Deve incidir somente quando outras esferas do direito sejam incapazes de solucionar um determinado conflito do caso concreto – subsidiariedade – e quando houver lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico tutelado – fragmentariedade.
Quando se lida com a ideia de bem jurídico na perspectiva clássica, é justamente com a intenção de frear a atuação do Estado e seu ius puniendi. Se não houver um bem jurídico que seja protegido pela norma penal, torna-se ilegítima qualquer forma de intervenção. Essa foi a ideia traçada por Claus Roxin.
Ocorre que essa noção vai perder seu espaço quando se fala em expansão do direito penal. A ideia de desmaterialização do bem jurídico ou sua liquefação – espiritualização do bem jurídico penal – busca legitimar e modernizar a criminalização de condutas que violam o sistema econômico, as relações de consumo, o meio ambiente. Sánchez (2002, p. 54) é o autor espanhol que trabalhou o conceito expansionista e assim se manifesta:
No momento atual, em suma, o tema no debate social não é a criminalidade dos despossuídos, leitmotiv da doutrina penal durante todo o século XIX, senão, preponderantemente, a criminalidade dos poderosos e das empresas (crimes of the powerful - corporate and business crime). Agora vejamos, isso supõe a introdução de um importante erro de perspectiva sobre o que convém alertar. Com efeito, aqui e agora, continua sendo possível afirmar que os 80% da criminalidade (ao menos, da definida como tal e perseguida) permanecem manifestando-se como criminalidade dos marginalizados (lower class crime), de modo que e corre o risco de tomar a parte (menor, mas muito difundida pelos meios de comunicação) pelo todo. Daí que a aposta, que parece decidida, por uma expansão do Direito Penal, que conglobe a relativização dos princípios de garantia e regras de imputação no âmbito da criminalidade dos poderosos, sendo criticável em si mesma, pode incorrer ademais no erro adicional de repercutir sobre a criminalidade em geral, incluída a dos powerless, algo que aparentemente e ignora na hora de propor as reformas antigarantistas.
"Crimes of the powerful": são os crimes do colarinho branco, são as hipóteses de crimes praticados pelos fornecedores contra as relações de consumo, são os crimes contra o meio ambiente.
Guimarães (2004, p. 44) menciona que o “bem jurídico protegido pela norma penal – ou objeto jurídico do crime – é o valor socialmente relevante que o direito protege mediante a cominação de pena aflitiva”. O autor destaca que, nos crimes contra as relações de consumo, o bem jurídico a ser analisado tem natureza normativa, encontrando fundamento nos artigos 5º, XXXII e 170, V da Constituição. E esse bem jurídico seria o próprio consumo enquanto interesse macroeconômico.
Silva e Zanelatto (2010) afirmam que, nos crimes contra as relações de consumo, a tutela é dirigida diretamente a um bem jurídico coletivo ou difuso, supraindividual, que seria a relação de consumo. Esse bem é imaterial e autônomo. Os autores mencionam, ainda, que o Código de Defesa do Consumidor também protege outros bens jurídicos de forma reflexa, quais sejam, a saúde, a vida, a integridade físico-psíquica e o patrimônio.
O direito penal que se volta para a proteção do bem jurídico relações de consumo poderá ser considerado como uma parte integrante do direito penal econômico. Trata-se de um conjunto de normas ou ramo ínsito à sociedade pós-industrial. Lida com bens jurídicos coletivos e não mais apenas os individuais à maneira clássica do direito penal. Trata-se de um direito penal da sociedade de risco.
6 AS VELOCIDADES DO DIREITO PENAL
Diante dessa realidade que foi apontada, o autor espanhol Sánchez (2002) trabalha, ainda, com as velocidades do direito penal. Partindo da visão do autor e trazendo suas lições para a realidade do Brasil, pode-se chegar à conclusão de que suas ideias são bastante atuais e a segunda velocidade do direito penal interessa aos crimes contra as relações de consumo.
Rogério Sanhez Cunha, explicando os conceitos de Sánchez, menciona que a primeira velocidade do direito penal estaria associada ao Direito Penal Clássico, que tutela os bens jurídicos individuais. Aqui, o sistema penal se vale da pena restritiva de liberdade para punir as infrações mais graves. O processo penal tem um trâmite mais lento, justamente porque deverão ser assegurados todos os direitos fundamentais ao acusado. O processo é garantista (CUNHA, 2016, p. 41)
A segunda velocidade do direito penal não considera a existência da pena de prisão como prioridade, mas sim as penas alternativas. Existe uma flexibilização de direitos processuais para que haja uma celeridade da punição. No Brasil, tal conceito pode ser observado no âmbito dos Juizados Especiais Criminais (CUNHA, 2016, p. 41).
A terceira velocidade do direito penal é marcada por infrações mais graves, com procedimento mais rápido e flexibilização de direitos e garantias fundamentais. A pena será a privativa de liberdade. Exemplo seria a Lei 12850/13 – Lei das Organizações Criminosas (CUNHA, 2016, p. 41).
Como se pode perceber, os crimes contra as relações de consumo, que têm a pena máxima de até 2 anos, cumulados ou não com multa, serão processados e julgados nos Juizados Especiais Criminais. Daí a razão pela qual a literatura jurídica brasileira sempre fazer referência à obra de Jesús-María Silva Sánchez e a questão da política criminal de flexibilização de procedimentos ser relevante para os direitos penal e procesual penal.
7 A SÚMULA VINCULANTE Nº 35
Levando em consideração o que foi exposto a respeito da segunda velocidade do direito penal, veja-se o que dispõe a Súmula Vinculante nº 35 do STF:
A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial.
No mesmo sentido, o julgamento do Recurso Extraordinário 795.567 (STF):
Ementa: CONSTITUCIONAL E PENAL. TRANSAÇÃO PENAL. CUMPRIMENTO DA PENA RESTRITIVA DE DIREITO. POSTERIOR DETERMINAÇÃO JUDICIAL DE CONFISCO DO BEM APREENDIDO COM BASE NO ART. 91, II, DO CÓDIGO PENAL. AFRONTA À GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL CARACTERIZADA. 1. Tese: os efeitos jurídicos previstos no art. 91 do Código Penal são decorrentes de sentença penal condenatória. Tal não se verifica, portanto, quando há transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95), cuja sentença tem natureza homologatória, sem qualquer juízo sobre a responsabilidade criminal do aceitante. As consequências da homologação da transação são aquelas estipuladas de modo consensual no termo de acordo. 2. Solução do caso: tendo havido transação penal e sendo extinta a punibilidade, ante o cumprimento das cláusulas nela estabelecidas, é ilegítimo o ato judicial que decreta o confisco do bem (motocicleta) que teria sido utilizado na prática delituosa. O confisco constituiria efeito penal muito mais gravoso ao aceitante do que os encargos que assumiu na transação penal celebrada (fornecimento de cinco cestas de alimentos). 3. Recurso extraordinário a que se dá provimento.
Tal realidade se aplica aos crimes contra as relações de consumo. Assim, cabe a pergunta: a que serve a transação penal? A resposta pode ser encontrada no art. 76 da Lei 9.099/95, a qual menciona que, havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na proposta. O instituto serve para a desburocratização da justiça penal brasileira e também para fins de concretização do princípio da celeridade.
Evitando que o indivíduo passe por um processo criminal, o Estado propõe a transação e seus requisitos de cumprimento. O Supremo Tribunal Federal considerou, na jurisprudência, que a homologação de tal acordo não faz coisa julgada material e que o Estado poderá retomar a possibilidade de exercer o ius puniendi em caso de violação da transação.
8 O EXEMPLO DOS CRIMES RELACIONADOS À PUBLICIDADE ENGANOSA E ABUSIVA
Nesses termos, vejam-se os crimes previstos no Código de Defesa do Consumidor relacionados à publicidade:
Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva:
Pena Detenção de três meses a um ano e multa.
Parágrafo único. (Vetado).
Art. 68. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança.
Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa:
Parágrafo único. (Vetado).
Art. 69. Deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade:
Pena Detenção de um a seis meses ou multa.
Os crimes dos artigos 67, 68 e 69 são de menor potencial ofensivo, pois suas penas máximas não superam 2 anos, cumulados ou não com multa, nos termos do art. 61 da Lei 9099/95, e a crítica que recai em cima desses delitos previstos no CDC é que muitas vezes não atingem o seu verdadeiro objetivo, que é a função de prevenir a prática de outras ocorrências.
A eles se aplica, portanto, a transação penal, conforme exposto acima e, da mesma forma, tal instituto será aplicado a outros crimes previstos no CDC que tenham pena máxima que não supere 2 anos.
9 CONCLUSÃO
Diante das considerações expostas, é de se considerar que a pós-modernidade demonstrou a necessidade de o direito penal abranger novos bens jurídicos de natureza transidividual, em virtude da própria modificação do contexto de globalização e funcionamento mercadológico.
A liquefação de bens jurídicos e as velocidades do direito penal bem retratam que a ideia clássica de um sistema penal atrelado a um "minimalismo" não sustenta as necessidades atuais de uma sociedade que convive com crimes de ordem econômica como aqueles perpetrados contra as relações de consumo.
Em termos processuais, é de relevância a compreensão da Súmula Vinculante 35 e a percepção de que ela pode ser aplicada ao contexto dos crimes contra as relações de consumo. É necessário o cumprimento dos termos de uma transação penal quando houver a prática de um crime contra as relações de consumo, cujas penas máximas não superam 2 anos, cumulados ou não com multa, pois o Ministério Público poderá retomar a persecução penal, mesmo em se tratando de crime de menor potencial ofensivo - se houver o descumprimento.
A coisa julgada material não é formada na homologação do acordo pelo juiz porque a transação não tem os mesmos efeitos de uma sentença penal condenatória. Ao se estudar a teoria do direito processual, é de se retomar a ideia de que a coisa julgada é uma qualidade conferida exclusivamente à sentença judicial.
A Súmula Vinculante nº 35 apenas confirma o que já vinha sendo definido na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria e tais disposições são perfeitamente aplicáveis na seara do direito penal das relações de consumo.
Foi dado o exemplo dos crimes relacionados à publicidade para ilustrar o que se expôs no texto, deixando evidente, porém, que as penas impostas aos delitos previstos no CDC deixam a desejar no que diz respeito à prevenção de novas práticas criminosas contra as relações de consumo.
REFERÊNCIAS
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CAMARGO, Pedro Celso Julião de. Neuromarketing: a nova pesquisa de comportamento do consumidor. São Paulo: Atlas, 2016.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal v. 1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2005.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte geral. Salvador: JusPodivm, 2013.
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MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade de risco e direito penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005.
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PULIDO, Carlos Bernal. O princípio da poroporcionalidade na legislação penal. In: SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 805-830.
ROXIN, Claus. Derecho Penal Parte General Tomo I. Madrid: Civitas, 1997.
SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: RT, 2002.
SILVA, Edgard Moreira da; ZANELLATO, Marco Antonio. Crimes de consumo: análise dos tipos do CDC relacionados com a oferta, venda e publicidade de produtos e serviços. In: MORATO, Antonio Carlos; NERI, Paulo de Tarso. 20 anos do código de defesa do consumidor: estudos em homenagem ao professor José Geraldo Brito Filomeno. São Paulo: Atlas, 2010.
YOKAICHIYA, Cristina Emy. Breves reflexões sobre os crimes previstos no Código de Defesa do Consumidor: Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 104, jan./dez. 2009, p. 591-614.
[1] A sociedade pós-industrial ou sociedade de risco é aquela em que se observa uma função promocional do direito penal e não mais uma função minimalista de mera proteção de alguns bens jurídicos. Machado (2005) considera que o direito penal passa a ter papel prospectivo, ou seja, passa a enxergar gerações futuras, abordando temas como direito ambiental, produtos distribuídos à população ee até mesmo a questão da manipulação dos genes pelo ser humano.
[2] Num mundo em que a publicidade é dominante, a magia do consumo invade as mentes das pessoas, que passam a satisfazer suas necessidades úteis ou fúteis de acordo com a lógica concorrencial que as torna vulneráveis. Pode-se falar até mesmo na existência de um neuromarketing para efeitos de análise do comportamento do consumidor – o autor Pedro de Camargo considera esse mecanismo como uma arma para avaliar as reações existentes nos cérebros dos consumidores pesquisados, através de equipamentos como ressonância magnética, eye tracking e eletroencefalograma (CAMARGO, 2016).
[3] Jesús-María Silva Sánchez trabalhou a ideia de expansão do direito penal. O autor observou a realidade legislativa de seu tempo, que passou a considerar, com a globalização econômica e a sociedade de risco, a flexibilização das regras penais e relativização de princípios político-criminais.
[4] O art. 4º, I do Código de Defesa do Consumidor menciona como um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo “o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”.
[5] Claudia Lima Marques dá como exemplo de norma narrativa o artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor, que seria o dispositivo que versa sobre os princípios da política nacional das relações de consumo. A autora menciona que o conceito de norma narrativa foi criado pelo alemão Erik Jayme para retratar justamente as normas que traçam objetivos e fixam princípios, de modo a se evitar que tais disposições não sejam tidas por programáticas, já que estas últimas não teriam eficácia prática (MARQUES, 2008).
[6] “Ainda que, com a criminalização, acabe se instituindo um drástico limite à esfera de autonomia do cidadão, posto que a vedação legal estará escorada em coerção corporal, não se pode negar que a tipificação de condutas, em uma variedade de circunstâncias, será a única via de proteção eficaz de certos direitos fundamentais. É mesmo possível afirmar que, na própria Constituição Federal, há vários mandados de criminalização, os quais acaso não atendidos pelo Estado-Legislador, ou desvirtuados pelo Estado-Juiz, redundarão em nítida antinomia constitucional por serem atentatórios à proibição da proteção deficiente” (BROOCKE, 2016, p. 45).