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Direito das minorias e comunidades quilombolas: a constitucionalidade do Decreto 4.887/03

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Os direitos das minorias devem ser vistos sob uma perspectiva constitucional. Com base nessa premissa, este artigo revisitará o debate acerca da constitucionalidade do Decreto 4.887/03, que está sob questionamento no STF, na ADI 3.239.

INTRODUÇÃO

Ao mencionar as premissas em que a Assembleia Constituinte de 1988 se baseou, o preâmbulo da Constituição Federal explicita que aqueles representantes visavam à instituição de um Estado Democrático de Direito destinado a assegurar “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social (...)”.

Nesse contexto, foi instituído o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), pelo qual se assegurou às comunidades remanescentes de quilombolas o direito à propriedade das terras tradicionalmente por elas ocupadas. A medida, de nítido caráter afirmativo, objetivou tutelar povos tradicionalmente excluídos, marginalizados e com pouco ou nenhum poder político.

Sucede que a premissa de que o Poder Público deve agir com base em procedimentos formais, isonômicos e positivados demandou a edição de um texto normativo que especificasse o procedimento pelo qual o artigo 68 pudesse ser concretizado pelos órgãos estatais. Tal ato normativo é o Decreto Federal 4.887/03, cuja regularidade constitucional está sendo debatida na ADI 3.239, proposta em 2004, sob a relatoria original do Min. Cezar Peluzo e que se encontra pendente de julgamento.

Este trabalho pretende, portanto, revisitar o debate acerca da (in)constitucionalidade do Decreto 4.887/03, à luz de uma teoria que defende a tutela de grupos minoritários, como forma de efetivar a Constituição Federal.


1. DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS MINORIAS COMO INSTRUMENTO DE EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL

Uma nação que pretenda constituir um Estado Democrático de Direito deve tutelar os direitos e as garantias fundamentais dos indivíduos e da coletividade, como base a dignidade da pessoa humana, que pode ser entendida desde sua acepção religiosa, fundada no respeito ao próximo, até o imperativo categórico da filosofia kantiana, que se desenvolve em alguns axiomas, tais como:

a) uma pessoa deve agir como se a máxima da sua conduta pudesse transformar-se em uma lei universal;

b) cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo, e não como um meio para realização de metas coletivas ou de outras metas individuais; e

c) as coisas têm preço; as pessoas têm dignidade.[1]

Daí a importância de se impedir que determinadas pessoas sejam inferiorizadas e estigmatizadas por condições físicas, sociais ou culturais próprias que as tornem diferentes do padrão desejado ou considerado como o de maior valor pelos grupos dominantes.

Conforme a lição de Flávia Piovesan, “a efetiva proteção dos direitos humanos demanda não apenas políticas universalistas, mas específicas, endereçadas a grupos socialmente vulneráveis, enquanto vítimas preferenciais da exclusão”. Dessa maneira, a implementação dos direitos humanos vai além de considerar entre suas características a universalidade e indivisibilidade, pois necessita da inclusão do valor diversidade.[2] Mas, afinal, quem são esses grupos minoritários?

Segundo o conceito de Francesco Capotorti, minorias seriam

um grupo numericamente inferior ao resto da população de um Estado, em posição não dominante, cujos membros - sendo nacionais desse Estado – possuem características étnicas, religiosas ou linguísticas diferentes das do resto da população e demonstre, pelo menos de maneira implícita, um sentido de solidariedade, dirigido à preservação de sua cultura, de suas tradições, religião ou língua.[3]

Atualmente, o termo minorias é utilizado não apenas para caracterizar grupos minoritários numericamente, mas principalmente levando-se em conta a sua efetiva participação na sociedade e nos órgãos de poder. Pode-se incluir, portanto, entre esses grupos minoritários índios, negros em geral e comunidades quilombolas em particular, ciganos, homossexuais, deficientes, mulheres, idosos.

Quanto maior a discriminação numa sociedade, mais desigual ela tenderá a ser, e maiores serão os conflitos dela resultantes. Sobre o tema, Joaquim Barbosa assinala que

é preciso uma ampla conscientização sobre o fato de que a marginalização sócio-econômico a que são relegadas as minorias, especialmente as raciais, resulta de um único fenômeno: a discriminação. Com efeito, a discriminação, como um componente indissociável do relacionamento entre os seres humanos, reveste-se inegavelmente de uma roupagem competitiva. Afinal, discriminar nada mais é do que uma tentativa de se reduzirem as perspectivas de uns em benefício de outros. Quanto mais intensa a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem o seu combate, mais ampla se mostra a clivagem entre discriminador e discriminado. Daí resulta, inevitavelmente, que aos esforços de uns em prol da concretização da igualdade se contraponham os interesses de outros na manutenção do status quo.[4] (Grifos nossos).

Sucede que para combater essa patologia social, cabe aos Poderes Públicos agir concretamente para minorar as desigualdades. Sob esse contexto, surgiram nos Estados Unidos as primeiras políticas sociais conhecidas como “ações afirmativas”, tendentes a solucionar a intensa marginalização social e econômica do negro na sociedade americana, que, posteriormente, foram estendidas a outras minorias, como índios, mulheres e deficientes físicos[5].

Tais ações afirmativas, também conhecidas como “discriminação positiva”, além de efetivarem o princípio constitucional da igualdade material e viabilizarem a paz social, em muitos casos robustecem o desenvolvimento socioeconômico do país, ao universalizarem direitos anteriormente destinados a apenas determinadas parcelas da população. Por outro lado, seu viés pedagógico é capaz de realizar profunda mudança de comportamento, no momento em que aproxima culturas antes distantes, constituindo-se em uma das mais expressivas manifestações do Estado Social.

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Assim, através destas ações o Estado consegue tutelar a igualdade, por meio do reconhecimento dos mais básicos direitos a grupos minoritários, entre os quais se destacam a proteção à existência, inclusão, autonomia e igualdade.

Não obstante, parcela da sociedade ainda resiste em aceitar a legitimidade de algumas dessas políticas. É o que está se evidenciando atualmente na ADIn 3.239/DF, proposta pelo Partido Democratas, em que se sustenta a inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03, que operacionaliza a demarcação e a titulação das terras às comunidades quilombolas remanescentes.

 Em suma, o Decreto 4.887/03 dispõe sobre o procedimento para identificação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos tratadas pelo artigo 68 do ADCT, cuja redação é a seguinte

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

Foram longos anos sem edição de lei formal que tão somente instrumentalizasse o reconhecimento dessa propriedade. O Decreto objeto de impugnação no STF tem o escopo justamente de estruturar a forma pela qual a Administração Pública realizará tal direito, não havendo motivo para a declaração de sua inconstitucionalidade, conforme será exposto nos tópicos que se seguem.


2. DA ADI 3.239 E A CONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO 4.887/03

Estabelecida norma tendente a efetivar o artigo 68 do ADCT, o Partido Democratas (DEM) propôs perante o STF Ação Direta de Inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03, tombada sob a epígrafe 3.239/DF, com base, resumidamente, em quatro fundamentos:

  1. Inconstitucionalidade do critério de autoatribuição para a identificação dos quilombos;
  2. O Decreto 4.887/03 é um regulamento autônomo, sem embasamento em lei, o que não seria possível ante o princípio da legalidade;
  3. A inconstitucionalidade do uso da desapropriação, prevista no art. 13 do Decreto 4.887/03, bem como do pagamento de qualquer indenização aos detentores de títulos incidentes sobre as áreas quilombolas, tendo em vista o fato de que o próprio constituinte já teria operado a transferência da propriedade das terras dos seus antigos titulares para os remanescentes dos quilombos;
  4. A invalidade da caracterização das terras quilombolas como aquelas utilizadas para “reprodução física, social, econômica e cultural do grupo étnico” (art. 2º, § 2º do Decreto 4.887/03), além da impossibilidade do emprego de “critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades de quilombos” para medição e demarcação destas terras (art. 2º, § 3º).

No curso do processo a AGU e a Procuradoria-Geral da República manifestaram-se pela improcedência do pedido. Contudo, o ministro relator Cezar Peluzo votou pela inconstitucionalidade do Decreto, aduzindo, entre outros argumentos, que, independentemente de o art. 68 do ADCT constituir norma de eficácia limitada, contida ou plena, deveria ser complementado por lei em sentido formal. Acrescentou que embora louvável o ideal de proteção aos descendentes de quilombos, não se poderia ignorar o crescimento dos conflitos agrários e o incitamento à revolta que a usurpação de direitos, decorrente do decreto discutido, poderia trazer.

Nesse meio tempo (abril de 2013), a ADI entrou na pauta de julgamento do STF, mas a apreciação foi adiada, em razão de pedido de vista. Em 2015, novamente o processo foi listado para julgamento, mas a Suprema Corte adiou, pela segunda vez, o julgamento em março daquele ano. Até o final desse artigo, não houve julgamento pelo STF.

2.1. Das comunidades quilombolas remanescentes e o critério de autoatribuição

No período anterior a abolição, várias comunidades de escravos espalharam-se pelo território nacional, traduzindo-se numa forma de resistência ao regime de trabalho escravo que perdurou por todo o Brasil colônia e império. Findou-se a escravidão e as terras ocupadas pelos outrora escravos continuam servindo-lhes como morada e meio de subsistência através, sobretudo, da agricultura familiar. As estratégias de dominação transformaram-se não mais a conversão do negro em mercadoria, mas sim em perpetuação do modelo hierarquizante, que não possibilitou a inserção dos ex-escravos na cidadania brasileira, a exemplo do subemprego nas terras do antigo senhor e na marginalização nos centros urbanos.

Em meio a esse mar de dominação na zona rural, viam-se algumas ilhas de resistência, os chamados quilombos. Chega-se aqui ao cerne da questão que pretendemos discutir nesse tópico: a questão quilombola e o reconhecimento destas comunidades tradicionais por parte do Estado brasileiro, juntamente com a regulamentação de suas terras.

Ora, passados mais de cento e vinte cinco anos da abolição da escravidão no Brasil, a questão do reconhecimento das comunidades quilombolas debatida na ADI 3239 encontra obstáculos que demonstram que a luta por estas terras ainda é alvo de aspirações políticas que desconsideram a historicidade e importância destas terras para tais comunidades.

O primeiro empecilho encontrado diz respeito a não delimitação, no texto constitucional, de quem sejam as comunidades quilombolas remanescentes. Durante esse período de incerteza fora criada a Fundação Palmares, tendo como finalidade “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira.” Coube inicialmente à Fundação Palmares, após esquecimento da questão durante a década de 1990, através da Medida Provisória 2.216-37/01, tratar do reconhecimento das comunidades quilombolas.

Contudo, com base nessa MP foi expedido o Decreto Federal 3.912/01, que não teve vida longa, pois dispunha serem terras passíveis de titulação as ocupadas por quilombos em 1888 ou por remanescentes das comunidades quilombolas em 5 de outubro de 1988. Em seguida, editou-se o Decreto 4.887/03, transferindo a competência no que se refere à demarcação de terras quilombolas ao INCRA, já que esta instituição possui maior capacidade operacional em questões agrárias. Surgiu, com essa transferência, a necessidade do trabalho de antropólogos, responsáveis pela definição da natureza da relação entre comunidades e terras ocupadas, uma vez que o caráter dessa relação é o cerne na caracterização dessas comunidades como quilombos.

O Decreto 4.887/03 assim define, no seu artigo 2°, as comunidades quilombolas:

Art. 2°. Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

§ 1°. Para fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.

Verifica-se, pela leitura do Decreto, que um dos principais critérios para a definição de uma comunidade quilombola é a própria autoafirmação de seus membros. Todavia, sempre que existe um litígio envolvendo a questão das terras pertencentes a essas comunidades, a parte contrária, invariavelmente, utiliza-se do argumento de que no local não existia nenhum quilombo, usando o conceito da historiografia tradicional, no qual só podem ser considerados quilombos os locais onde os escravos fugidos resistiam ao regime escravocrata antes da abolição. Ora, não é difícil compreender que essa identidade entre os quilombos antigos e atuais seria, na prática, impossível, em razão da passagem de várias décadas, que acarretaram inevitavelmente mudanças estruturais e antropológicas nos quilombos.

Portanto, sabendo-se que o conceito de quilombos é eminentemente histórico e antropológico, a definição legal não poderia prescindir desta interdisciplinaridade. Como elucida Maria Elizabeth Guimarães Teixeira,

A despeito do conteúdo histórico, o conceito de quilombos, contemporaneamente, designa a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil. Ele não mais se refere a resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica nem, tampouco, se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogenia constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados. Consiste, sim, em grupos que consolidaram um território próprio e nele desenvolveram práticas cotidianas de resistência e reprodução de seus modos de vida. O que os define é a experiência vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória comum e da continuidade enquanto grupo.[6]

Daí a importância dos requisitos estabelecidos pelo Decreto, por impedir ingerências externas e visões distorcidas da real natureza dos quilombos. Portanto, o critério atual é antropológico e juridicamente correto na definição do que seja uma comunidade quilombola, não se podendo confundi-lo com o conceito colonial de reunião de escravos fugidos.

2.2. Da impossibilidade de caracterização do Decreto como autônomo

Um dos principais argumentos do autor da ADI reside no fato de que a titulação prevista no art. 68 da ADCT foi feita através de decreto presidencial, sem nenhuma previsão legal que o amparasse, o que o tornaria um decreto autônomo, incompatível com o ordenamento.

Tal raciocínio, todavia, não está correto, vez que verdadeiramente o Decreto 4.887/03 não é um regulamento autônomo.

Com efeito, o artigo 68 das Disposições Transitórias, embora não localizado no Título II da Constituição Federal, encerra uma norma com nítido conteúdo de direito fundamental[7], porquanto estabelece direitos mínimos às comunidades quilombolas, como o direito à moradia e a sobrevivência digna, tutelando, desta forma, o princípio maior de qualquer ordenamento jurídico, que é a dignidade da pessoa humana. Dirley da Cunha Jr., a propósito, conceitua os direitos fundamentais como “aquelas posições jurídicas que investem o ser humano de um conjunto de prerrogativas, faculdades e instituições imprescindíveis a assegurar uma existência digna, livre, igual e fraterna de todas as pessoas[8]”, o que acentua o caráter fundamental do referido artigo.

Por veicular norma definidora de direitos fundamentais, a interpretação o art. 68 do ADCT deve se pautar pela máxima efetividade.

Ora, tal artigo não fez menção à reserva legal, não comprometeu sua eficácia à necessidade de regulamentação “nos termos da lei” ou “na forma legal”, de maneira que não há necessidade de lei em sentido formal para delimitar o procedimento a ser utilizado, tampouco para explicitar o que viria a ser considerado “remanescentes das comunidades dos quilombos”, porque aqui bastaria uma interpretação sistemática e teleológica da Constituição.

Portanto, uma vez que a densidade da mencionada norma constitucional é suficiente, havendo apenas a necessidade de regulamentação para uma atuação administrativa adequada, uma vez que estão suficientemente indicados, no plano normativo, o objeto de direito (a propriedade definitiva das comunidades dos quilombos), seu sujeito ou beneficiário (os remanescentes das comunidades dos quilombos), a condição (a ocupação tradicional das terras), o dever correlato (reconhecimento da propriedade e emissão dos títulos respectivos) e o sujeito passivo ou devedor (o Estado, Poder Público)[9], pode-se afirmar que, de fato, o Decreto 4.887/03 não é regulamento autônomo, pois apenas estabelece o procedimento apto a tornar efetiva norma constitucional definidora de direito fundamental.

De outro giro, já há previsão legal que ampara o mencionado decreto, haja vista a existência da Convenção 169 da OIT, incorporado no direito brasileiro pelo Decreto 5.051/04, que além de versar sobre povos indígenas, é aplicável às populações “cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições”, o que torna indubitável sua aplicação em relação às comunidades quilombolas remanescentes.

Ressalte-se, ainda, que o artigo 14 da Convenção 169 prevê expressamente o direito à propriedade das terras tradicionalmente ocupadas. E o item 3 deste mesmo artigo, por sua vez, contempla a obrigação de os Estados instituírem “procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terra formuladas pelos povos interessados”. 

Dessa forma, é robusta a adequação normativa do Decreto impugnado, porque em verdade se tem apenas a formulação de um procedimento isonômico, através do qual se operacionaliza a concretização de um direito assegurado constitucionalmente, sem criação de novos deveres ou obrigações à população.

2.3. Da constitucionalidade do uso da desapropriação

A ADI defende a inconstitucionalidade do uso da desapropriação, argumentando que a Constituição já teria operado a transferência dos títulos dos antigos proprietários aos remanescentes dos quilombos, razão pela qual não haveria motivos para se indenizar aqueles que já não possuem direito algum sobre os territórios. Vejamos a redação do caput do art. 13 do Decreto 4887/2003, objeto dessa controvérsia:

Art. 13.  Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvelobjetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber.

Pois bem, em verdade, ao contrário do que fez quando tratou dos territórios indígenas, a Constituição não invalidou expressamente os antigos títulos dos territórios quilombolas, o que é lógico, se observarmos que a propriedade indígena de fato é originária, pois foram eles os primeiros e naturais senhores das terras brasileiras. Os quilombolas, por sua vez, não se tratam de "povos originários", porque foram transferidos à força de seus territórios africanos para serem escravizados, valendo, aqui, a máxima impeditiva do uso da analogia segundo a qual “não existindo a mesma razão, não haverá o mesmo direito”.

Ademais, a tutela dos territórios quilombolas se faz em decorrência do interesse de toda a sociedade em proteger o patrimônio cultural e a existência digna destes povos.  Daí porque o instituto da desapropriação caberia perfeitamente, porquanto estaria sendo utilizado segundo o “interesse social” de que trata o art. 5º, XXIV, CF, ou mesmo para “promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social”, na forma do art. 1º e 2º, III, da Lei 4.132/62, que define os casos de desapropriação por interesse social e dispõe sobre sua aplicação.

2.4. Da delimitação dos territórios  quilombolas

O Decreto define como terras ocupadas por remanescentes de quilombos aquelas utilizadas por eles como instrumento necessário à sua reprodução física, social, econômica e cultural. Vejamos a redação do seu art. 2º, §§ 2º e 3º:

§ 2o  São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.

§ 3o  Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.

Reconhecendo a essência do conceito de propriedade rural para tais populações, o Decreto 4.887/03 ainda prevê em seu art. 17 que a titulação ou reconhecimento do domínio em favor das comunidades quilombolas será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso, com obrigatoriedade de inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade.

A respeito, leciona Daniel Sarmento que,

Para comunidades tradicionais, a terra possui um significado completamente diferente da que ele apresenta para a cultura ocidental de massas. Não se trata apenas da moradia, que pode ser trocada pelo indivíduo sem maiores traumas, mas sim do elo que mantém a união do grupo, e que permite a sua continuidade no tempo através de sucessivas gerações, possibilitando a preservação da cultura, dos valores e do modo peculiar de vida da comunidade étnica.

Desta forma, como estas comunidades estão umbilicalmente ligadas à terra, o único modo de se evitar que sua cultura desapareça é garantir-lhes a propriedade, nas dimensões necessárias a sua sustentação e reprodução, seja ela física ou cultural. Daí a razão do critério da tradicionalidade para a demarcação, ou seja, são quilombolas as terras tradicionalmente ocupadas.

Não há como definir os limites dessa tradicionalidade senão por elementos fornecidos pelos próprios integrantes da comunidade[10]. Obviamente que somado aos dados fornecidos pela comunidade interessada serão elaborados laudos e pareceres, para isto o INCRA deverá ser auxiliado por profissionais habilitados, sejam antropólogos, historiadores, ou qualquer outro profissional que possa honestamente contribuir com a delimitação do exato território destas comunidades étnicas.

Deste modo, não há razão para questionar o procedimento utilizado no que se refere ao território objeto da demarcação quilombola, uma vez que é amparado por critérios técnicos, históricos e antropológicos razoáveis e adequados à titulação.

Sobre os autores
Mauro Oliveira Magalhães

Procurador do Estado de São Paulo. Especialista em Direito e Economia. Ex-Analista Jurídico do MPBA.

Paulo César de Almeida

bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana e advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Mauro Magalhães; ALMEIDA, Paulo César. Direito das minorias e comunidades quilombolas: a constitucionalidade do Decreto 4.887/03. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4884, 14 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53638. Acesso em: 26 dez. 2024.

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