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Os direitos políticos do condenado criminalmente

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Agenda 18/06/2004 às 00:00

É perfeitamente factível a instalação de Mesas Receptoras de Votos nos presídios, ainda mais com a implantação do voto eletrônico, dando oportunidade a que os encarcerados possam exercer seus direitos políticos.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. CAPÍTULO I - 1. O PODER SOBERANO. 1.1 LIMITES DO PODER SOBERANO. 1.2 A CIDADANIA. 1.2.1. A DIMENSÃO DA CIDADANIA. 1.3 STATUS ACTIVAE CIVITATIS.. 1.4 O PAPEL DO CIDADÃO NA CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DO DIREITO. CAPÍTULO II - 2. DOS DIREITOS POLÍTICOS. 2.1 NOÇÕES PRELIMINARES. 2.2 O SUFRÁGIO UNIVERSAL 2.2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO SUFRÁGIO. 2.2.2 A IMPORTÂNCIA DO SUFRÁGIO. 2.3 ALISTABILIDADE. 2.4 ELEGIBILIDADE. 2.5 DA PERDA E SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS. 2.5.1 EM DECORRÊNCIA DA CONDENAÇÃO CRIMINA. CAPÍTULO III - 3. OS DIREITOS DOS CONDENADOS. 3.1 A ORIGEM DO DIREITO DE PUNIR. 3.2 AS PRÁTICAS PUNITIVAS NO TEMPO. 3.3 REALIDADE CARCERÁRIA BRASILEIRA. 3.4 O CIDADÃO CONDENADO. 3.5 O EXERCÍCIO DO VOTO POR PARTE DO CONDENADO. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


INTRODUÇÃO

O parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal estabelece que um dos fundamentos do Estado Democrático, cujo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, é a cidadania.

Por sua vez, o art. 14 do mesmo estatuto consagra que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, enquanto o art. 5º exalta a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Partindo desses fundamentos, dir-se-ia que no Brasil de hoje está amplamente assegurado o exercício do voto com igual valor para todos. Entretanto, a realidade é bem diversa. Há ainda um longo caminho a percorrer: primeiro, porque nem todos os brasileiros têm direito ao voto - os conscritos e os condenados criminalmente estão à margem do processo democrático; em segundo lugar, porque muito se há que fazer para que todos tenham acesso aos bens de consumo mínimos, à saúde, à moradia, à educação, à informação, a fim de que possam exercer o direito de sufrágio com independência, sem qualquer influência do poder econômico.

Ao apresentar como tema os direitos políticos dos condenados, pretende-se dar ênfase à necessidade de, num primeiro momento, assegurar a igualdade de todos em relação ao direito de voto, a fim de que as outras igualdades sejam alcançadas e, via de conseqüência, se substitua a simples e pura sujeição dos excluídos aos interesses das classes dominantes pela integração social e, com isso, cada qual conquiste a liberdade, em seu sentido mais amplo.

Apesar de algumas poucas vozes estarem se levantando, muito timidamente, em defesa dos direitos dos condenados, a realidade dos presídios brasileiros demonstra o mais total abandono a que eles estão relegados, assim como também suas famílias.

Por isso, o enfoque deste breve estudo é explicitar que os condenados criminalmente, a par de sua condição de sujeitos de deveres, continuam sujeitos de direitos, e como tal cidadãos, devendo, por isso mesmo, participar ativamente do poder soberano, por meio do exercício do voto.

Assim, fundados no pacto social idealizado por ROUSSEAU, no primeiro capítulo deste trabalho, tentar-se-á demonstrar que no conceito de poder soberano incluem-se todos os brasileiros, independentemente de seus status libertatis, pois que ninguém pode ser súdito sem ser também soberano.

Somente quando puderem atuar no espaço público, a partir do exercício do direito de voto, é que os condenados obterão o reconhecimento de seus direitos básicos, e, conseqüentemente, serão vistos como sujeitos detentores de interesses válidos e de demandas legítimas.

No capítulo segundo, com suporte nos dispositivos constitucionais e nas legislações ordinárias, pretender-se-á concluir que também do ponto de vista normativo os condenados estão legitimados a participar da escolha dos responsáveis diretos pelos destinos da Nação.

A participação no poder, como característica do Estado Democrático de Direito, além de ser uma prerrogativa decorrente da igualdade natural entre os homens, vem garantida constitucionalmente, ao estabelecer-se que todos são iguais perante a lei.

A Constituição Federal de 1988, contrariamente ao que dispunham as Constituições anteriores, não veda o alistamento aos indivíduos que tenham contra si condenação criminal transitada em julgado.

De outra parte, há que se reconhecer que privar o condenado de sua prerrogativa de cidadão tem a potencialidade de criar no imaginário social a sensação de que ele pode ser submetido a humilhações e à degradação, atitudes essas que se refletem impunemente nas relações de poder da própria sociedade.

Como afirmou Pedro Armando Egydio de CARVALHO, é incontestável que a forma como a sociedade percebe e trata o condenado influencia a vivência democrática diária, centrada na dignidade de cada uma das pessoas humanas que compõem o grupo social.

Tratamento adequado, democracia fortalecida; inadequado, esmorecida; aviltante, falida. [...] Analogamente, a realidade (e não mais uma imagem ou idealização) do preso torturado e emudecido tem a potência de justificar os maus tratos infligidos aos corpos dos sem-terra e sem-teto.

Finalmente, no terceiro e último capítulo, tratar-se-á dos direitos do condenado, procedendo a uma reflexão acerca da origem do direito de punir. Tomando por fundamento as observações de BECCARIA, em sua obra Dos Delitos e das Penas, tentar-se-á estabelecer uma correlação entre o significado do suplício do corpo à sua época com o da suspensão dos direitos políticos em nossos dias, enfatizando que tanto uma prática quanto a outra, cada qual à sua maneira, são reveladoras de uma técnica de separar, de marcar e, conseqüentemente, de humilhar o condenado, a fim de reproduzir, tanto no imaginário social quanto no inconsciente do infrator, a idéia de que ele é um ser vil, destituído de qualquer moral.

Com base no pensamento de Michel FOUCAULT, far-se-á, ainda, breve incursão sobre os objetos da pena e as formas de punição nos tempos, evidenciando que há uma correspondência entre as práticas punitivas e os principais bens tutelados pela sociedade em cada época.

Também procurar-se-á dar ênfase à situação de abandono do condenado no Brasil, chamando a atenção para o fato de que o sistema punitivo brasileiro visa única e exclusivamente à população carente e estigmatizada socialmente, já que, em sua grande maioria, os condenados são pessoas provenientes das camadas mais humildes da sociedade, encontrando-se, por isso mesmo, em duplo grau de exclusão: a social e a política.

Por fim, com base na legislação eleitoral, sustentar-se-á a convicção de que é perfeitamente factível a instalação de Mesas Receptoras de Votos nos presídios, ainda mais com a implantação do voto eletrônico, dando oportunidade, assim, a que os encarcerados possam exercer seus direitos políticos.


CAPÍTULO I

O PODER SOBERANO

Deixando para trás a idéia das organizações societárias antigas ou teocráticas - que não admitia qualquer divisão no poder e nas quais não se distinguia o pensamento político da religião, da moral, da filosofia - e o feudalismo - com sua infinita pluralidade de poderes, sem hierarquia definida e incontável multiplicidade de ordens jurídicas -, surgiu o Estado Moderno, despertando a consciência para a busca de uma unidade que concretizasse a afirmação de um poder soberano, reconhecido como o mais amplo dentro de uma precisa delimitação territorial.

Significando o poder de um povo de autodeterminar-se na ordem interna ou externa, o conceito de poder soberano, guindado à condição de poder de mando em última instância, surgiu, assim, intimamente ligado ao conceito de poder político. A soberania, em essência, segundo BODIN, citado por Norberto BOBBIO, identifica o poder de legislar:

[...] poder de fazer e de anular as leis, uma vez que este poder resumiria em si, necessariamente, todos os outros e, enquanto tal, com suas ‘ordens’ se configuraria como a força de coesão capaz de manter unida toda a sociedade.

A identificação da soberania com o poder legislativo tem suas raízes no conceito de vontade geral explicitado por ROUSSEAU. Vem dele a afirmação do povo como soberano, reconhecendo a igualdade como um dos objetivos fundamentais da sociedade.

Partindo da idéia de que a ordem social não provém da natureza do homem, mas de convenções, ROUSSEAU, em sua obra o Contrato Social, albergado na realidade vivenciada na polis grega, transfere a titularidade da soberania da pessoa do governante para o povo, dotando-a das características da inalienabilidade e indivisibilidade.

A soberania é inalienável por ser o exercício da vontade geral, não podendo esta se alienar e nem mesmo ser representada por quem quer que seja. É indivisível porque a vontade só é geral se houver a participação do todo. [...] O pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus membros, e este poder é aquele que, dirigido pela vontade geral, leva o nome de soberania.

Assim, a soberania se transfere intacta do rei ao povo, de forma a propiciar a transmutação dos direitos naturais em direitos civis. Buscava ROUSSEAU a libertação política do homem, como caminho indispensável para a fundação de uma sociedade igualitária, voltada à consecução dos fins sociais.

Foi, sem dúvida, a convicção na igualdade entre os homens o primeiro elemento que levou à construção de uma nova sociedade, na qual, os homens passaram a nascer livres e iguais em direitos e dignidade.

Dessa forma, de acordo com Norberto BOBBIO, somente quando o reconhecimento dos direitos do homem se amplia para as relações entre príncipe e súditos é que surge o Estado de Direito:

É com o nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos.

Com isso, inverteu-se o fundamento do poder ou sua fonte legitimadora. O poder político passou a provir não mais de Deus, nem da tradição familiar, mas da vontade popular, do consenso dos indivíduos, transformados em cidadãos.

"É o surgimento da idéia" - diz Celso LAFER - "de que os homens podem organizar o Estado e a sociedade de acordo com a sua vontade e a sua razão", substituindo-se a pura e simples vontade do rei pelo consenso popular, refletido no sufrágio.

A partir de então, a soberania tem como característica pertencer ao povo em sua universalidade: todos os indivíduos que compõem uma nação detêm parcela desse poder de autodeterminar-se. Assim, de acordo com Fávila RIBEIRO:

Se a soberania for subtraída do povo em sua universalidade, sendo assumida por apenas uma ou algumas classes, somente elas são livres, porque podem traçar seu próprio destino e o destino político alheio, ficando os demais segmentos excluídos da soberania a mercê de ocasionais impulsos dadivosos ou de incontroláveis indisposições das camadas dirigentes.

Há que se concluir, então, que, em que pese algumas coletividades humanas serem ainda governadas por minorias, ou pela força das armas em outras (ditaduras), hodiernamente é incomum encontrar quem sustente o poder como sendo de origem divina, providencial ou hereditária. Pelo contrário, todos estão finalmente de acordo em que a soberania reside no povo. Os homens são responsáveis pela sociedade que fazem, sociedade, aliás, cuja existência só tem sentido se visar ao bem de todos.

Assentando-se que a soberania pertence definitivamente ao povo, cabe investigar, de agora em diante, quem faria parte do povo, detentor da vontade geral, com direito de escolher representantes, para, em seu nome, exercer o poder soberano.

É em ROUSSEAU e em sua concepção da vontade geral como legitimadora do contrato social que se vai buscar respaldo mais uma vez. Esclarece o autor:

Pela mesma razão por que é inalienável, a soberania é indivisível, visto que a vontade é geral ou não é; ou é corpo do povo ou unicamente de uma parte dele. No primeiro caso, essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular.

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Emerge dessa assertiva a conclusão de que a soberania não pode ser representada pela vontade de um ou de alguns homens, mas sim do corpo político como um todo, pois se alguém deixa de manifestar a sua vontade, é como se do corpo político tivesse sido excluído.

1.1 LIMITES DO PODER SOBERANO

Com base em sua tese contratualista, ROUSSEAU entende que o homem primitivo vivia movido por suas poucas necessidades, senhor de si mesmo, livre e feliz, embora permanecesse estúpido e limitado. Chamado a se desenvolver por sua própria natureza, percebe que somente na convivência com seus semelhantes adquire a palavra, a memória, as idéias, os sentimentos e a consciência moral.

Formou-se então a sociedade, na qual os homens passaram a viver em agregação. Os fracos, entretanto, em troca de segurança, tenderam a obedecer aos fortes: surgiu aí a luta pela dominação. A socialização, se de um lado propiciou ao homem o desenvolvimento de sua consciência, de outro o corrompeu. Instaurou-se a partir daí a desordem, em que a força, a sagacidade e a esperteza de alguns prevaleciam sobre outros. Não havia limites para o agir do homem, a não ser a sua própria força.

Diante desse caos, os homens novamente se uniram na tentativa de formar uma sociedade fundada não na lei do mais forte, mas na vontade racional, em que cada um pudesse agir livremente, estabelecendo com os outros contratos em que mutuamente se obrigassem. Surgiu o corpo político, cujo caráter é de ser total, pois cada qual, empenhando-se inteiramente em ser membro do corpo político, entrega sua pretensa liberdade de fazer o que bem lhe aprouver e recebe, em troca, o compromisso de seus semelhantes de também pautarem seu agir da forma acordada.

Tal submissão ao contrato social é da ordem da adesão, jamais da coerção, pois somente por sua livre e espontânea vontade é que os homens estão capacitados a abrir mão de sua liberdade ilimitada, mas insegura, para ganhar uma liberdade regulada, é verdade, mas segura, da vida na sociedade, em favor não de um chefe, mas do todo, do corpo político: é o chamado pacto social.

Pelo pacto social, ainda segundo idealização de ROUSSEAU, os homens devem dispor de "uma força de associação que defenda e proteja com toda a força comum as pessoas e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes".

Em essência, portanto, o pacto social sintetiza a idéia de que cada membro da sociedade põe sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral. Cada membro torna-se parte indivisível do todo. No lugar da pessoa particular de cada contratante, surge, então, imediatamente, um corpo coletivo, composto por tantos membros quantos sejam os votos na assembléia.

A partir daí, pode-se dizer que os associados são chamados coletivamente de povo e em particular de cidadãos, enquanto são, ao mesmo tempo, participantes da formação da autoridade soberana e a ela submetidos.

Nesse instante, o povo passa a exercitar o poder soberano. Entretanto, como adverte Norberto BOBBIO, com a revolução democrática também a vontade geral encontra um freio, uma barreira: os direitos invioláveis do cidadão.A soberania, por conseguinte, que tem como elemento central a vontade geral, também não pode tudo; sua ação encontra limites nos direitos invioláveis de cada um dos sujeitos que a compõem, quais sejam, os direitos do cidadão, cuja maior expressão são a liberdade e a igualdade.

No mesmo sentido, Darcy AZAMBUJA assevera que:

A soberania popular não é ilimitada nem despótica, em um regime são de organização política. Tem limitações naturais e necessárias no sistema democrático, pois este não é apenas o governo para o povo, mas e principalmente para a pessoa humana, que possui direitos inalienáveis. Se uma assembléia de todo o povo suprimisse um só direito individual fundamental, extinguiria ipso facto a Democracia.

De tal assertiva depreende-se que o homem, particularmente considerado, possui direitos, só podendo alienar de sua liberdade, de seus bens e de seu poder aquilo que interesse ao bem comum. Conseqüentemente, para visar sempre ao bem geral, a soberania deve ter por medida básica os direitos fundamentais de cada um de seus componentes, individualmente considerados, concretizando assim a chamada Democracia Popular, o governo do povo para o povo.

Em suma, pela natureza do pacto social, estabelece-se a igualdade entre os cidadãos, em que todos se comprometem sob as mesmas condições, mas devem gozar dos mesmos direitos.

1.2 A CIDADANIA

A cidadania, de origem na antigüidade clássica, era um estatuto unitário pelo qual todos os cidadãos eram iguais em direitos. Era atributo do morador da cidade, daquele que participava dos seus negócios, significando com isso que pertencia à comunidade. Entretanto, poucos eram os cidadãos, raras as pessoas que tinham acesso a cargos públicos e à participação nos negócios da sociedade.

Foi só na Revolução Francesa que se preparou a concreta construção do novo modelo de cidadania, o qual se traduz na máxima de que todo ‘o poder emana do povo e em seu nome é exercido’, ao se proclamar a liberdade e a igualdade entre todos os homens.

Num estado democrático, cabe ao direito o papel normativo de regular as relações interindividuais, as relações entre o indivíduo e o Estado, entre os direitos civis e os deveres cívicos, entre os direitos e deveres da cidadania, definindo as regras do jogo da vida democrática. A cidadania poderá, dessa forma, cumprir o papel libertador e contribuir para a emancipação humana, abrindo novos espaços de liberdade, por onde ecoarão as vozes de todos aqueles que, em nome da liberdade e da igualdade, sempre foram silenciados.

Assim, é de se concluir que justamente evocando a igualdade de todos perante a lei é que a cidadania confere a cada indivíduo direitos e obrigações formalmente iguais, ensejando-lhe postular justiça, isto é, a defender e afirmar direitos em pé de igualdade com os demais indivíduos, resguardando-se, assim, de possíveis agressões de outros cidadãos e das instituições estatais.

Nesse momento, o sujeito social privado emerge como cidadão: cada indivíduo, contratando consigo mesmo, acha-se comprometido como membro-soberano em face dos particulares e como membro da sociedade em face do corpo político.

Se o exercício da cidadania atua como ponto de mediação entre a sociedade civil e o poder estatal, que implica a obrigação política de obediência à ordem que o Estado organiza e garante, disso decorre que não pode haver cidadão que, a seu turno, não seja também súdito, nem súdito que não disponha de uma parcela de soberania.

Na senda contratualista de somente obedecer a um poder consensualmente formado, impõe-se concluir que para que um indivíduo seja legitimamente submetido ao império da lei, necessário se faz que, de outra parte, seja também co-partícipe na formação da vontade manifesta nessa mesma lei, quer diretamente ou por intermédio de seus representantes eleitos.

É, pois, o exercício da cidadania que legitima os compromissos civis entre os membros de um corpo político, submetendo, cada um, individualmente, à vontade geral, que, todavia, como já se viu, não é ilimitada: encontra sua fronteira nos direitos invioláveis do ser humano.

Historicamente, foi só na democracia que remonta à Grécia antiga, exercida de forma direta, que todo o corpo político, reunido na praça, governava a cidade. Lá, os cidadãos participavam das assembléias do povo, tinham plena liberdade da palavra e votavam suas próprias leis. Naqueles primórdios, entretanto, a cidadania era atributo exclusivo dos homens livres, ficando relegados à margem do interesse público as mulheres, os servos e os escravos.

Depois, passados alguns séculos em que o domínio absolutista se fez presente, em que o monarca era o Estado, retomou-se o ideal republicano da antigüidade, que abriu caminho para a democracia moderna: o regime político baseado nos princípios da soberania popular, que tem como marco histórico universalmente reconhecido a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789.

Entretanto, na República moderna, a cidadania já não pode mais ser exercida da mesma forma que na antigüidade, pois a grande massa populacional impede o exercício do poder diretamente pelo cidadão. Surge, então, a democracia representativa, que consagra a idéia do controle popular do poder pelos direitos políticos. Assim, tem-se que:

Pela doutrina da representação fundada sobre a soberania popular, a origem e o fim de toda a soberania se encontra no povo. O cidadão não pode mais exercer em pessoa o poder, mas escolhe por seu voto seus representantes.

A nova sociedade se organiza, então, em torno da vontade geral, que somente será geral, quando todos os indivíduos que compõem o povo puderem participar de forma direta ou indiretamente, por meio de representantes, do poder de autodeterminar-se, fazendo-se ouvir na elaboração das leis e no estabelecimento do direito.

Dessa forma, esclarece Paulo BONAVIDES que a soberania popular "é tão-somente a soma das distintas frações de soberania, que pertencem como atributo a cada indivíduo, o qual, membro da comunidade estatal e detentor de parcela do poder soberano fragmentado, participa ativamente da escolha dos governantes".

É a cidadania, em resumo, que identifica o indivíduo como fração ou parte de um povo. E fazer parte do povo de determinado Estado significa estar numa situação jurídica de deveres sim, mas também de direitos. Exatamente em função dessa correlação é que os condenados, sujeitos de deveres perante o Estado, não podem deixar de ser considerados cidadãos também, enquanto sujeitos de direito.

Não foi à toa, como lembra Hannah ARENDT, citada por Celso LAFER, que o nazismo iniciou sua perseguição ao povo judeu, justamente começando por privar seus membros do status civitatis, convertendo-os, assim, em inimigos objetivos.

Destituídos da cidadania, o nazismo pode perpetrar todas as barbáries que a humanidade testemunhou contra os judeus, da mesma forma que, privados de sua condição de cidadãos, do direito de votar, os condenados têm sido tratados como "o lixo" da sociedade, que deve ser recolhido e esquecido em celas infectas, para que lá apodreça.

Neste ponto já podemos estabelecer que cidadão é o sujeito de deveres, enquanto subordinado ao poder do Estado, e sujeito de direitos, enquanto fração do povo soberano, em nome de quem o poder é exercido. É, portanto, o sujeito que reivindica e promove a mutação do Direito, a ele se submetendo.

Cidadão é, no dizer de Clèmerson Merlin CLÈVE:

[...] o homem envolto nas relações de força que comandam a historici-

dade e a natureza da política. O cidadão é o agente reivindicante possibilitador, na linguagem de Lefort, da floração contínua de direitos novos.

1.2.1 A DIMENSÃO DA CIDADANIA

Segundo Hannah ARENDT, "a cidadania significa ‘pertencer’ a uma comunidade".Disso decorre que a dimensão da cidadania não se cinge apenas à relação jurídica de direitos e deveres do indivíduo em relação ao Estado. É também a relação política e social de cada cidadão em particular frente aos demais, de forma a elevar ao máximo a solidariedade da vida em comunidade, vendo no "outro" um ser humano igual e com os mesmos direitos e deveres: um semelhante, enfim.

A dimensão da cidadania, segundo se infere, não é aquela mensurável apenas na lei ou na doutrina, mas é sobretudo aquela materializada no plano dos fatos que compõem e afetam a vida dos seres humanos na comunidade em que vivem.

Sendo uma instituição em permanente desenvolvimento, que tem como fundamento o princípio de que todos os homens são livres e capazes de gozar de direitos, a cidadania ganha força na medida que se alarga, tendendo à universalização, e que enriquece o conjunto de direitos que promove.

Nesse sentido, demonstra Marshall que a cidadania não é um status meramente legal, de conteúdo estático e definitivo, algo que, concedido ao indivíduo, o acompanhe de uma vez e para sempre, mas sim um processo social [....].

Na esteira de Jair Eduardo SANTANA, a idéia de cidadania pode englobar ao menos três tipos básicos de direitos: os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais, inferindo-se disso que a cidadania possui significados múltiplos que não se excluem, mas se complementam.

Como um processo de construção social, a cidadania há de ser ampliada em dois sentidos: horizontalmente, a fim de abarcar aqueles que ainda se encontrem excluídos, até como forma de resguardar o Estado Democrático de Direito, e verticalmente, possibilitando, assim, a aquisição de novos emergentes direitos.

Nesses termos, "a Democracia não é apenas um regime político com partidos e eleições livres. É sobretudo uma forma de existência social. Democrática é uma sociedade aberta, que permite sempre a criação de novos direitos.

Assim, diante da correlação indissociável entre os direitos e os deveres do cidadão e da constatação de que a cidadania é uma permanente edificação social, qualquer argumentação retórica que tente justificar que o condenado não é eticamente ou moralmente capaz para interferir nos negócios da cidade, significando com isso que é apenas um sujeito de deveres, mostra-se totalmente infundada, pois tal situação significaria para ele a inexistência do Estado Democrático de Direito, mas a instituição de um Estado despótico.

"A cidadania, portanto, é um construído da convivência coletiva, que requer acesso público", permitindo, assim, "a construção de um mundo comum através do processo de asserção de direitos humanos".

Feitas essas colocações de forma a assentar que a dimensão da cidadania é um status em permanente construção (envolve solidariedade, civismo, patriotismo, educação, participação política e muito mais), que não pode ser usurpado do condenado, sob pena de ele continuar a ser tratado como supérfluo e descartável, já podemos, de agora em diante, investigar quem, dentre a massa populacional da Nação, é sujeito de direitos e obrigações. Isso porque, embora todo cidadão brasileiro deva ser um nacional, nem todo nacional goza do status civitatis. Há certos requisitos que o próprio Estado estabelece para que o seu componente pessoal adquira a condição de partícipe.

1.3 STATUS ACTIVAE CIVITATIS

O Estado de Direito, substituindo o Estado absolutista, descentralizou o poder monárquico em três poderes - o Legislativo, o Executivo e o Judiciário - concebendo como um dos atributos da cidadania o direito à representação política, e do cidadão, a titularidade, dentre outros, dos direitos políticos.

A cidadania envolve direitos políticos, civis e sociais, os quais refletem uma série de outros direitos, tais como direito à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade, de ir e vir, à participação política, ao sufrágio universal, etc.

A definição de cidadania de Hannah ARENDT permite uma ampliação ainda maior: o status político dos homens está associado ao direito a ter direitos.

Como visto anteriormente, ser cidadão é ser uma fração do povo, em nome do qual a soberania é exercida.

O status civitatis, ou estado de cidadania, segundo Paulo BONAVIDES, define basicamente a capacidade pública do indivíduo, a soma dos direitos políticos e deveres que ele tem perante o Estado. E ainda de acordo com o autor citado, "da cidadania derivam direitos, dentre os quais o direito de votar e ser votado (status activae civitatis) ou deveres, como dever de fidelidade à Pátria, prestação de serviço militar, observância das leis do Estado".

Entretanto, o próprio Estado estabelece requisitos para a aquisição do status activae civitatis. Nesse sentido, em que pesem as advertências de Hannah ARENDT de que mesmo "os apátridas não perdem direitos como à vida, à liberdade, à busca de felicidade ou mesmo de igualdade diante da lei por não serem nacionais", a condição básica para aquisição do status de cidadão em nosso País, atributo esse que o identifica e o integra em direitos, garantias e obrigações, ainda é ser brasileiro.

A nacionalidade é originária, quando ligada ao nascimento, que pode ser pelo jus sanguinis, em decorrência da nacionalidade dos pais, ou pelo jus soli, baseada no território em que o indivíduo nasceu; ou, numa terceira categoria, mista, quando conjuga essas duas modalidades. Também pode ser adotiva, pela naturalização, casamento, anexação de território, etc.

Além da nacionalidade, há, contudo, outros requisitos. Assim, embora a Constituição faculte o voto ao adolescente com idade entre dezesseis e dezoito anos, a maioria das outras formas de participação ativa na vida política da Nação só pode se efetivar após os dezoito ou vinte e um anos de idade, dependendo da hipótese tratada. É o caso do acesso a cargos públicos, de demandar em juízo, de obter informações, de estabelecer negócios, dentre outros.

Na lição do constitucionalista Alexandre de MORAIS, são os direitos políticos que investem o indivíduo no status activae civitatis, de forma a conferir-lhe os atributos de cidadão.

Assevera o autor que o núcleo dos direitos políticos é o sufrágio, que se expressa pela capacidade de eleger e de ser eleito:

Assim, o direito de sufrágio apresenta-se em seus dois aspectos:

- capacidade eleitoral ativa (direito de votar - alistabilidade)

- capacidade eleitoral passiva (direito de ser votado - elegibilidade).

De acordo com a Constituição Federal, art. 14, § 1º, o alistamento e o voto são:

I - obrigatório para os maiores de dezoito anos;

II - facultativo para:

a) os analfabetos;

b) os maiores de setenta anos;

c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.

Há, portanto, nesse parágrafo uma delimitação em função da idade para o exercício da cidadania, no âmbito da atuação política, excluindo-se dela os menores de dezesseis anos. Já o § 2º do mesmo dispositivo, taxativamente, estabelece que "não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o serviço militar, os conscritos".

Aqui há uma segunda delimitação. A primeira é geral, ampla e se dá no sentido vertical: menores de dezesseis anos, independentemente de qualquer outra condição, não poderão participar da vida política da Nação, pois ainda carentes de discernimento. O § 2º, por sua vez, destaca, dentre os habitantes da Nação maiores de dezesseis anos, quais estão impedidos de se alistar e, portanto, de votar. Essa delimitação se dá no plano horizontal, porque dentre o conjunto de habitantes da Nação maiores de 16 anos estão excluídos do exercício da cidadania política todos os estrangeiros e os nacionais que estejam prestando serviço militar obrigatório – os conscritos.

Sendo o § 2º uma norma restritiva de direitos, deve ela, como se sabe, ser interpretada in numeros clausus, não comportando, portanto, sejam incluídos na proibição de alistamento, e conseqüentemente do exercício do voto, os condenados.

Evidencia-se do cotejo de tais dispositivos que não prevalece nenhuma restrição constitucional em relação ao alistamento e ao exercício de voto por parte dos condenados, já que todos os nacionais, natos ou naturalizados, maiores de dezesseis anos e não-conscritos, "podem", indistintamente, alistar-se e votar.

Apesar de o art. 15 da Constituição Federal estabelecer vedação à cassação dos direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nas hipóteses previstas, dentre as quais a condenação criminal transitada em julgado, é de se frisar que, em relação ao direito de alistamento e de voto, a única restrição que fez o constituinte - e de forma expressa - foi em relação ao estrangeiro e ao conscrito, durante o serviço militar obrigatório.

Imperativo registrar-se, ainda, que para os maiores de dezoito e menores de setenta anos o "direito" de alistamento e de voto se impõe também como "dever". Bem por isso, o Código Eleitoral disciplina a aplicação de multa a quem devia ter se alistado e votado, mas não o fez.

Diz o dispositivo da Lei 4.737, de 15.7.65:

Art. 8º O brasileiro nato que não se alistar até os dezenove anos ou o naturalizado que não se alistar até um ano depois de adquirida a nacionalidade brasileira incorrerá na multa de três a dez por centro sobre o valor do salário mínimo da região, imposta pelo Juiz e cobrada no ato da inscrição eleitoral através de selo federal inutilizado no próprio requerimento.

Quanto à obrigatoriedade ao voto, prescreve o dispositivo do mesmo diploma legal:

Art. 7º O eleitor que deixar de votar e não se justificar perante o Juiz Eleitoral até 30 (trinta) dias após a realização da eleição, incorrerá na multa de três a dez por centro sobre o salário mínimo da região, imposta pelo Juiz Eleitoral e cobrada na forma prevista no art. 367.

Do descumprimento desses dois dispositivos decorre, ainda, uma série de outras sanções, aplicáveis não especificamente pela Justiça Eleitoral, mas por outros setores da sociedade, tais como:

Art. 7º.

[...]

§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá o eleitor:

I - inscrever-se em concurso ou prova para cargo ou função pública, investir-se ou empossar-se neles;

II - receber vencimentos, remuneração, salário ou proventos de função ou emprego público, autárquico ou paraestatal, bem como fundações governamentais, empresas, institutos e sociedades de qualquer natureza, mantidas ou subvencionadas pelo governo ou que exerçam serviço público delegado, correspondentes ao mês subseqüente ao da eleição;

III - participar de concorrência pública ou administrativa da União, dos Estados, dos Territórios, do Distrito Federal ou dos Municípios, ou das respectivas autarquias.

IV - obter empréstimo nas autarquias, sociedades de economia mista, caixas econômicas federais ou estaduais, nos institutos e caixas de previdência social, bem como em qualquer estabelecimento de crédito mantido pelo governo ou de cuja administração este participe, e com essas entidades celebrar contratos;

V - obter passaporte ou carteira de identidade;

VI - renovar matrícula em estabelecimento de ensino oficial ou fiscalizado pelo governo;

VII - praticar qualquer ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou imposto de renda.

Em que pese serem rigorosas todas as conseqüências previstas na legislação, em razão do descumprimento do dever de votar, chama à atenção o inciso V, que prevê a impossibilidade até de obtenção de carteira de identidade, documento básico para inserção do indivíduo no mundo civil. O indivíduo passa simplesmente a não existir como sujeito nem de direitos como de deveres.

A bem da verdade, impõe-se registrar, nesse ponto, que o § 2º do mesmo dispositivo, embora totalmente defasado em relação à Constituição Federal de 1988, excetua dessas penalidades as hipóteses elencadas nos arts. 5º e 6º, I, do Código Eleitoral, quais sejam, os analfabetos, os condenados, e aqueles que não saibam se expressar em língua nacional.

De qualquer sorte, diante de tais disposições normativas, é de se concluir que também no plano do ordenamento jurídico o condenado criminalmente não pode ser privado do seu status activae civitatis, do direito/dever do exercício do voto, sob pena de violação de norma constitucional (art. 14 da Constituição Federal de 1988), que impõe como obrigatório o alistamento e o voto para os maiores de 18 anos.

1.4 O PAPEL DO CIDADÃO NA CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DO DIREITO

As formas de manifestação da cidadania não se resumem, como já visto, na participação, periodicamente, da escolha dos representantes dos Poderes Legislativo e Executivo. Há outras.

Clèmerson Merlin CLÈVE cita algumas formas de manifestação da cidadania garantidas constitucionalmente, como a ação popular, a ação de inconstitucionalidade genérica ou por omissão, a ação civil pública, o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular. Além disso, no âmbito administrativo, o cidadão tem direito a obter informações, certidões, etc., garantias essas que visam a uma participação popular consciente.

Não se pode esquecer, entretanto, das outras formas de manifestação da cidadania, que emergem do processo de ajustamento e de sedimentação das divergências decorrentes das relações sociais, como um poder reivindicatório do reconhecimento e do exercício dos direitos humanos, exteriorizáveis na manifestação popular, nos movimentos sociais reivindicantes, na participação em movimento de lutas, na participação em organizações não-governamentais, nos sindicatos, na pressão popular e, acima de tudo, na cobrança perante os candidatos eleitos da implementação das promessas de campanha, na fiscalização dos representantes eleitos, na reivindicação por adoção de políticas administrativas, econômicas e sociais mais justas.

Apesar dessa multiplicidade de formas de manifestação da cidadania, há que se reconhecer, entretanto, que é ainda o exercício do voto que a centraliza e a fortalece, na medida em que todo e qualquer cidadão - independentemente de classe social, cultural ou econômica, de pertencer a grupos sociais ou a qualquer outra forma de organização -, pode influenciar o processo legislativo e por isso intervir nos destinos da Nação, atuando na escolha das pessoas que administrarão o País.

Diante das dificuldades quotidianas, os indivíduos excluídos e privados da satisfação das mínimas necessidades têm no voto um dos poucos instrumentos de coalizão de forças para criar e instituir novos direitos, e o fazem escolhendo quem vai propor, discutir e aprovar ou rejeitar as leis, quem vai executá-las ou quem vai fiscalizar sua implementação. Exemplo disso tem sido a participação de representantes das camadas mais humildes da sociedade na formulação e votação do Orçamento Participativo, prática que vem sendo adotada pelos governos mais populares.

A esse respeito, diz Antônio Carlos WOLKMER, que "não há dúvida de que a situação de privação, carência e exclusão constituem a razão motivadora e a condição de possibilidade do aparecimento de direitos".

A corroborar a assertiva temos que, numa retrospectiva histórica, é possível perceber que a própria formação da cidadania, em determinada época e espaço, está diretamente relacionada com as lutas, conflitos e conquistas. Assim, por séculos, a mulher, que era considerada um ser inferior ao homem, quer do ponto de vista biológico, psicológico, moral e ético, foi tida como incapaz para a vida política. A história do Direito Eleitoral mostra que no Brasil só em 1932 as mulheres adquiriram o direito de voto.

Portanto, como já assentado, os atributos, prerrogativas e deveres do cidadão não são estáticos; a cidadania não é um status "dado" pelo Estado; ao contrário, as prerrogativas e deveres do cidadão são dinâmicos, dependem de lutas, de conquistas, de avanços. Modificam-se no tempo e no espaço.

É por isso que Norberto BOBBIO, em A era dos direitos, enfatiza que o problema grave do nosso tempo, em relação aos direitos do homem, não é tanto fundamentá-los, mas sim protegê-los; que a liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor. Nesse passo, acrescentar-se-ia que, para proteger os direitos humanos, forjando a conquista de novos, é preciso, primeiro, garantir os direitos de cidadania a todos, indistintamente.

Ainda, nas palavras de Liszt VIEIRA, "a cidadania, definida pelos princípios da democracia, constitui-se na criação de espaços sociais de luta (movimentos sociais) e na definição de instituições permanentes para a expressão política (partidos, órgãos públicos)".

Por isso, é fundamental ressaltar a importância dos agentes políticos, dos cidadãos engajados nos movimentos sociais, com vistas a operar as mudanças necessárias na estrutura de nossa sociedade, sem descurar, ainda, que o centro da sociedade é o indivíduo, cuja primazia completa-se pela idéia de que todos os membros da sociedade, embora diferentes, são iguais por essência e têm os mesmos direitos.

Ao estabelecer-se, no art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal da República, que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente... ", abriu-se as portas do Estado à Democracia Participava, que envolve todos os indivíduos de uma sociedade.

Realçando o atributo da cidadania como propulsor de mudanças sociais, Vera Regina Pereira de ANDRADE, citando Norberto BOBBIO, enfatiza que foi, por exemplo:

O uso pacífico do poder político que permitiu mudanças significativas, entre as quais, em meados do século XIX, a de abrir caminho para o desenvolvimento do sindicalismo ao tornar os trabalhadores capazes de se valer de seus direitos civis coletivamente, obrigando a mudanças na tradição individualista dos direitos civis.

E mais adiante, assevera que:

[...] existe um nexo historicamente verificável entre o processo de democratização - consistente na extensão do direito político de sufrágio - e a emergência do estado assistencial. Na medida em que se ampliou o direito de sufrágio, aumentaram as reivindicações sociais cuja conseqüência foi o intervencionismo estatal na ordem sócio-econômica para atender tais reivindicações: ‘Quando os titulares dos direitos políticos eram apenas os proprietários, era natural que a maior solicitação dirigida ao poder político fosse a de proteger a liberdade de propriedade e dos contratos. A partir do momento em que os direitos políticos foram estendidos aos que nada têm e aos analfabetos, tornou-se igualmente natural que aos governantes, que acima de tudo se proclamavam e num certo sentido eram representantes do povo, passassem a ser pedidos trabalhos, escolas gratuitas e - por que não - casas populares, tratamentos médicos, etc.

De sorte que é um raciocínio absolutamente lógico pensar-se que, quando os direitos políticos forem reconhecidos também aos condenados, tornar-se-á natural aos governantes e aos dirigentes da Nação passarem a refletir melhor acerca do sistema punitivo no Brasil, sopesando seus objetivos, finalidades e eficácia.

Fixado exatamente nesse argumento foi que o Conselho Federal da OAB propôs a extensão aos presidiários do direito de voto. Artigo publicado no Jornal do Conselho Federal da OAB n. 55/1997 faz referência à seguinte argumentação de Nabor BULHÕES:

O exercício do voto manteria o preso vinculado à vida política do seu País, à certeza de que ainda é um cidadão e de que importa à sociedade e de que também é responsável pelas mudanças sociais. [...] Talvez aí esteja uma possibilidade latente de promover mudanças no próprio sistema penitenciário, vinculando-o a uma política pública-criminal e penitenciária mais humana e justa.

No mesmo periódico, o conselheiro Renato NERY, enfatizando que o Brasil precisa de uma política penitenciária sólida, séria, coerente e prática, repete denúncia de todos os dias:

Os segregados não têm voz e nem representação, encontrando na rebelião o único meio de serem ouvidos. Os presos são um zero à esquerda, ninguém se importa com eles. Constituem um estorvo que foi abandonado nas prisões, como os escravos eram jogados nas masmorras, num passado remoto, para morrerem de maus-tratos, de doenças, de fome e de abandono.

Em que pese a sociedade brasileira repudiar a pena de morte, de tortura e de castigos cruéis, acrescenta o autor que não há como negar que no Brasil há milhares de pessoas, dentre elas os presos, que são relegadas a uma pena de morte lenta, dolorosa e contínua.

Ademais, sendo fundamento do Estado Democrático de Direito a concretização da vontade popular, de nada serve a garantia formal da participação política e do exercício dos direitos ligados à cidadania a todos, se a própria sociedade cerceia a alguns a capacidade de expressarem suas aspirações, impedindo-os, conseqüentemente, de preservarem direitos e de almejarem novos.

Como bem ensinou J. J. ROUSSEAU, pelo pacto social cada um aliena de seu poder, de seus bens e de sua liberdade tudo aquilo cujo uso interesse à comunidade. Por isso, o soberano (o corpo político - os indivíduos enquanto sujeitos de direito) não pode onerar os súditos (os indivíduos, enquanto sujeitos de deveres) com nenhuma pena inútil.

E não se vislumbra utilidade alguma em impedir que os condenados exerçam seu direito de voto, a não ser mantê-los cada vez mais à margem de conquistas sociais.

Em certa passagem de sua obra O Contrato Social o nobre Cidadão de Genebra justifica a pena de morte daquele que malferiu o direito social, dizendo que a morte do culpado "é menos como cidadão que como inimigo".Na esperança de nossa civilização ter superado a pena como mera vingança, a imposição da pena a quem violou normas de conduta social deve ser, também, menos em relação ao cidadão, e sim mais em relação ao ser humano que necessita de ressocialização.

A cidadania é o ponto de partida, é o germe capaz de fazer brotar novos direitos, novos comportamentos, aptos a transformar a sociedade, tornando-a mais solidária e humana.

Nesse sentido, a cidadania pode ser vista como suporte de direitos e de obrigações formalmente iguais para todos, e, via de conseqüência, o sufrágio universal tem a capacidade de trazer em si a semente libertária e emancipadora para as classes dominadas, ante a variedade de reivindicações que possibilita e que transforma em conquista.

De outra parte, Dalmo DALLARI, ao comentar em sua obra qual a finalidade de o homem viver em sociedade, enfatiza que o objetivo principal da sociedade é alcançar o "bem comum", que consiste em propiciar a todos condições que favoreçam o desenvolvimento integral da pessoa humana. E continua o autor:

Ao se afirmar, portanto, que a sociedade humana tem por finalidade o bem comum, isso quer dizer que ela busca a criação de condições que permitam a cada homem e a cada grupo social a consecução de seus respectivos fins particulares. Quando uma sociedade está organizada de tal modo que só promove o bem de uma parte de seus integrantes, é sinal de que ela está mal organizada e afastada dos objetivos que justificam a sua existência.

Por via transversa, pois, é possível inferir-se que, quando a sociedade organiza-se de tal forma que promove a exclusão de segmentos dela, perde seu objetivo e sua finalidade. Por isso é preciso resgatar a finalidade natural da sociedade humana, que é alcançar o bem comum total, afastando os cidadãos da pura e simples submissão a leis injustas e desprovidas de objetivo social, dando oportunidade a que todos os seus membros, sem exceção, possam participar da escolha dos destinos da Nação, já que, como apregoou ROUSSEAU:

Súdito e soberano são correlações idênticas cuja idéia se reúne numa única palavra: cidadão. [...] No momento em que o povo se encontra legitimamente reunido em corpo soberano [...], a pessoa do último cidadão é tão sagrada e inviolável quanto a do primeiro magistrado.

O conceito de cidadania, em síntese, não se esgota na compreensão de ser cidadão aquele que participa dos negócios da cidade. Vai além. Trata-se do direito subjetivo de ter direitos; do direito que tem o indivíduo de lutar pelos seus ideais, por seus valores, o direito de empreender todo o esforço possível na busca da felicidade, prerrogativas essas que não podem ser negadas ao condenado, sob pena de ele tornar-se apenas um súdito à mercê do Estado.

Sobre a autora
Jane Justina Maschio

pós-graduanda em Direito pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MASCHIO, Jane Justina. Os direitos políticos do condenado criminalmente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 346, 18 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5368. Acesso em: 23 dez. 2024.

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