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As desapropriações de urgência para obras da Copa do Mundo sem justa remuneração.

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Agenda 11/11/2016 às 19:42

Analisa os casos de desapropriação de bens imóveis para fins de obras de interesse público para a Copa do Mundo FIFA 2014, ocorrida no Brasil.

Introdução

A propriedade é um direito fundamental de primeira geração, quais sejam aqueles que compõem um mínimo existencial de prerrogativas nas quais o Estado não pode ingerir, respeitando os seus limites.

Ocorre que este direito não é absoluto, em especial quando se trata desta relação de propriedade diante da Administração Pública, que, mediante algumas situações específicas goza da possibilidade de tomar para si a propriedade do indivíduo, desde que respeitado o devido procedimento de desapropriação.

A Constituição Federal de 1988 assegura em seu artigo 5º, inciso XXIV, como direito fundamental, a necessidade de o Estado, ao desapropriar bens imóveis dos indivíduos, por necessidade ou utilidade pública, oferecer justa e prévia indenização em dinheiro.

Dado o recente acontecimento do evento esportivo mundial “Copa do Mundo FIFA 2014”, organizado pela Federação Internacional de Futebol Associada, e que teve o Brasil, bem como Fortaleza, como uma das cidades-sede, muitas obras de mobilidade urbana e utilidade pública foram iniciadas, exigindo, por parte da administração pública, inevitavelmente o início de alguns procedimentos de desapropriação.

Neste artigo, deve verificar-se o procedimento de desapropriação realizado no município de Fortaleza para fins de obras de utilidade pública, bem como tecer análise crítica sobre a constitucionalidade de tal procedimento, sob a proposta investigativa de se as disposições constitucionais, em termos de garantia dos indivíduos proprietários, efetivamente estavam sendo respeitadas.

Após uma análise crítica conclusiva sobre a constitucionalidade, ou não, deste procedimento, este trabalho irá se debruçar sobre o princípio que fundamenta a possibilidade de desapropriação: o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.

A partir da leitura de Humberto Ávila, este trabalho estudará se houve evolução semântica e conceitual deste princípio, ou se o mesmo permanece estanque à moda do Direito Administrativo legalista e exegeta de outrora.

É que o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, segundo Humberto Ávila antes não se adequava ao conceito propriamente dito de princípio, uma vez que não era suscetível aos exercícios de ponderações no caso concreto, como se faz com os demais princípios. Este, em particular, já previa, per si, a prevalência do interesse público sob o particular, irrestritamente, e em qualquer instância, o que não o adequava aos termos de princípio.

A roupagem moderna deste princípio, todavia, adéqua-se a uma noção flexível e constitucionalizada, a partir da concepção de que o indivíduo é a finalidade última da administração e assim sendo, a noção de interesse público, passaria, também pelo encaixe com a percepção do interesse do indivíduo. A concepção é absolutamente diferente.

Esta percepção será importantíssima para que se chegue a uma conclusão sobre a adequação do procedimento de desapropriação de urgência às noções de neoconstitucionalismo e de direito administrativo atualizado.


1 A propriedade como Direito Fundamental limitado pelo interesse da Administração Pública: As desapropriações

O direito à propriedade privada é previsto constitucionalmente no art. 5º, XXII, da Constituição Federal de 1988 e compõe historicamente o grupo dos chamados direitos fundamentais de primeira dimensão; direitos que expressam a liberdade individual do cidadão, e que representam um limite mínimo no qual o Estado não poderá ingerir (non facere), observado que a propriedade é, possivelmente, o direito mais sólido e basilar dentre os que o indivíduo venha a possuir, porquanto é elemento essencial da estrutura econômica e social de qualquer estado (CÂMARA, 1981).

Os indivíduos se organizam em tono da propriedade. O meio ambiente é fonte de riqueza e de satisfação de necessidades, de sorte que o Estado sempre buscou a proteção à propriedade individual (REIS, online).

Nos primórdios da civilização humana, a propriedade era mantida por cada indivíduo independentemente da utilidade que fosse dada por seu dono. Entretanto, a noção de bem comum erigida com o surgimento da noção de Estado, alterou significativamente esta concepção. Nesse sentido, Monteiro (1998, p.1):

“o homem, no passado, podia usar, gozar e dispor da coisa que lhe pertencesse, como melhor lhe aprouvesse, sem que fosse lícito opor qualquer restrição ao livre exercício desse direito. Todas as legislações, sem discrepância, proclamavam então a intangibilidade do domínio, verdadeiro resquício da propriedade quiritária, no direito romano, sinônima de direito absoluto, de propriedade absoluta. Gradativamente, porém, modificou-se essa concepção egoística e individualista, que logo se tornou obsoleta, graças às tendências fundamentais da civilização atual.”

Ocorre que o direito à propriedade, não assumindo caráter absoluto, como quaisquer outros direitos, encontra limitação relacionadas às necessidades coletivas, de modo que a administração pública possui direito de desapropriação do bem imóvel do indivíduo, tanto para casos de necessidade e utilidade pública; prevista no direito brasileiro através da Lei 3365/41; quanto para casos de desapropriação por interesse social, regrado pela Lei 4132/62.

Segundo Whitaker (1927, p.3), é o instituto jurídico através do qual a autoridade pública, mediante indenização, determina que a propriedade individual seja transferida a quem dela se utilize, para melhor interesse da coletividade.

Já Cretella Júnior (1992, p.22) define a desapropriação como ato pelo qual o Estado, necessitando de um bem para interesse coletivo, subtrai direito do proprietário sobeste bem, mediante prévia e justa indenização em dinheiro.

Ambas as modalidades de desapropriação são reguladas principiologicamente, pelo que prevê o art. 5º XXIV, da Constituição Federal de 1988, que prevê que “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”.

Perceba-se, que ao prever o instituto da desapropriação, o constituinte deixou explicitamente demonstrado o seu caráter de garantia constitucional ao direito de propriedade do indivíduo, asseverando que sendo inevitável a necessidade da administração pública de tomar para interesse coletivo a propriedade privada, deve haver indenização prévia e justa, em dinheiro.

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Fato é que a desapropriação, em que pese aparente um ato de violência em detrimento do direito constitucional à propriedade, tem como finalidade buscar compensar, dentro dos parâmetros de legalidade, estabelecidos por lei, a perda patrimonial obtida.

Não se trata, pois, de um ato estatal de autoritarismo gratuito, mas, sim, de um ato administrativo, que apenas poderá ser imposto ao indivíduo mediante a demonstração do interesse público sobre o bem, e precedido de indenização justa e prévia (CARVALHO; 2009).

Dentre as modalidades de desapropriação, a que será objeto de análise para fins de melhor instruir o presente estudo será a desapropriação para fins de necessidade e utilidade públicas, cujo procedimento é previsto pela Lei Federal 3365/41.


2. Os Procedimentos de Imissão Urgente na Posse - Lei 3365/41: Análise crítica do art. 15, §1º

O decreto lei 3365/41 prevê a disciplina dos procedimentos de desapropriação de propriedades privadas, por necessidade e utilidade pública.

Perceba-se que a promulgação deste decreto ocorreu em 1941, período em que a visão de direito administrativo possuía orientação estritamente legalista, tendo como “pano de fundo” uma configuração estatal autoritária e ditatorial, em período que em muito antecedeu a promulgação da Constituição de 1988, diferentemente da atual percepção do direito administrativo sob o prisma da juridicidade, imiscuído na concepção moderna de Estado Democrático de Direito.

Esse reflexo histórico e normativo traçado refletiu diretamente no viés procedimental previsto neste decreto lei, em especial, no seu art. 15, §1º, que trouxe em seu bojo a previsão da necessidade de desapropriação em caráter de urgência pelo estado.

Segundo esta previsão legal, “se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685. do Código de Processo Civil, o juiz mandará imití-lo provisoriamente na posse dos bens, independentemente da citação do réu, mediante depósito”.

Observe-se que o mandamento legal é que judicializando a questão o próprio Estado, se alegar urgência na desapropriação, poderá ser imisso na posse de maneira imediata, desde que comprove o depósito de percentual do valor do imóvel, sendo que esta mensuração será feita pelo próprio Estado, independentemente de qualquer parecer prévio de perito isento e imparcial.

Não restam dúvidas que tal dispositivo apoia-se no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, bem como não restam dúvidas de que este procedimento viola frontalmente a garantia constitucional de indenização justa e prévia, prevista no art. 5º, XXIV, da Constituição de 1988.

No sentido de reconhecer a agressão deste procedimento ao direito de indenização justa e prévia, em desapropriação, alguns Tribunais de Justiça estaduais, chegaram a sumular entendimento no sentido de que é necessária que haja analise pericial prévia, por perito indicado pelo juízo para que seja autorizada a imissão de posse emergencial. Senão vejamos:

Súmula 30: Cabível sempre avaliação judicial prévia para imissão na posse nas desapropriações. (TJSP)

Súmula 28: Nas desapropriações por utilidade pública, não obstante o contido no artigo 15, § 1º, do Decreto-Lei nº 3.365/41, exige-se a avaliação judicial prévia ao deferimento na imissão provisória da posse do imóvel.” (TJPR)

Também a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem sinalizado neste mesmo sentido: o de que a imissão de posse emergencial não deverá ocorrer antes de análise pericial imparcial prévia:

RECURSO ESPECIAL. REPETITIVO. ART. 543-C DO CPC. DESAPROPRIAÇÃO. IMISSÃO PROVISÓRIA NA POSSE. DEPÓSITO JUDICIAL. VALOR FIXADO PELO MUNICÍPIO OU VALOR CADASTRAL DO IMÓVEL (IMPOSTO TERRITORIAL URBANO OU RURAL) OU VALOR FIXADO EM PERÍCIA JUDICIAL. – Diante do que dispõe o art. 15, § 1º, alíneas “a“, “b“, “c” e “d“, do Decreto-Lei n. 3.365/1941, o depósito judicial do valor simplesmente apurado pelo corpo técnico do ente público, sendo inferior ao valor arbitrado por perito judicial e ao valor cadastral do imóvel, não viabiliza a imissão provisória na posse. – O valor cadastral do imóvel, vinculado ao imposto territorial rural ou urbano, somente pode ser adotado para satisfazer o requisito do depósito judicial se tiver “sido atualizado no ano fiscal imediatamente anterior” (art. 15, § 1º, alínea “c“, do Decreto-Lei n. 3.365/1941). – Ausente a efetiva atualização ou a demonstração de que o valor cadastral do imóvel foi atualizado no ano fiscal imediatamente anterior à imissão provisória na posse, “o juiz fixará independente de avaliação, a importância do depósito, tendo em vista a época em que houver sido fixado originalmente o valor cadastral e a valorização ou desvalorização posterior do imóvel” (art. 15, § 1º, alínea “d“, do Decreto-Lei n. 3.365/1941). – Revela-se necessário, no caso em debate, para efeito de viabilizar a imissão provisória na posse, que a municipalidade deposite o valor já obtido na perícia judicial provisória, na qual se buscou alcançar o valor mais atual do imóvel objeto da apropriação.

(Resp 1185583/SP – Recurso Especial 2009/0227457-0, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Órgão Julgador S1 – Primeira Seção, Data do Julgamento 27/06/2012, Data da Publicação 23/08/2012. destacamos).

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, espelhando o entendimento do STJ, também concorda no que tange à impossibilidade de imissão emergencial na posse antes de prova de valor real do imóvel por perito oficial do juízo, tudo isto para resguardar indenização justa e prévia ao proprietário:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESAPROPRIAÇÃO. IMISSÃO NA POSSE. AVALIAÇÃO PRÉVIA. JUSTO VALOR DA INDENIZAÇÃO. NECESSIDADE.

A jurisprudência do STJ é reiterada no sentido de que a imissão provisória na posse só será concedida mediante avaliação prévia, na qual se estabelecerá justo valor ao bem, afastando a norma de regência, qual seja o art. 15, do Decreto Lei 3365/41.

(Agravo de Instrumento Cv Nº 1.0079.13.033624-5/001. Rel. Des. JUDIMAR BIBER. Publicado em 04/06/14. Destacamos.).

O próprio Supremo Tribunal Federal, quando questionado pelo governador do Estado de São Paulo acerca deste entendimento, através da ADPF 249, se manifestou no sentido de que a interpretação dada pelos outros tribunais da federação acerca da necessidade de perícia prévia anterior à imissão provisória na posse do bem imóvel, não violaria o disposto em Súmula daquele Tribunal e nem mesmo caracterizaria cenário de incerteza jurídica para o Estado.

Ressalte-se, por fim, que a imissão na posse, ainda que não represente a transferência de propriedade, mas, em termos de usufruto do bem imóvel já estabelece efeitos definitivos, assim como em termos de definição de valor indenizatório para desapropriação, porquanto não há maior exatidão de análise pericial do que a que é feita antes de qualquer intervenção ou demolição do estado. (CARVALHO FILHO; 2014)

Em que pese haver tais entendimentos adequados à realidade constitucional e à integridade de direitos dos proprietários, o que se percebeu durante o período que antecedeu o evento “Copa do Mundo FIFA 2014”, nas cidades-sede foi a potencialização absoluta do interesse da administração pública, em detrimento da garantia constitucional da desapropriação mediante justa e prévia indenização.

O website da BBC Brasil noticiou já às vésperas do evento, a triste situação de proprietários de imóveis em Recife (PE), retirados sob caráter de urgência de suas propriedades e que até então haviam recebido a indenização muito abaixo do valor de mercado, que unilateralmente é fixada pelo Estado, de acordo com o intransigente art.15§1º, do Decreto Lei 3365/41. 1

Casos práticos como o narrado foram facilmente encontrados nos tribunais brasileiros. Julgamentos em que, em nome da mais pura supremacia do interesse público sobre o particular, garantias fundamentais constitucionais dos proprietários foram lesadas.

A exemplo, segue jurisprudência ilustrativa de caso de desapropriação ocorrido em razão das obras para a Copa do Mundo, na cidade de Fortaleza (CE), em que pese a juíza de primeiro grau ter reconhecido o direito de perícia prévia, antes da imissão imediata da posse pelo município, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, reformou a decisão, conferindo direito à imissão urgente, mesmo sem a realização de perícia. Seguindo a estrita legalidade do art. 15, § 1º do Decreto Lei 3365/41:

PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESAPROPRIAÇÃO. UTILIDADE PÚBLICA. INDENIZAÇÃO PELO PREJUÍZO QUE A DESAPROPRIAÇÃO OCASIONOU. DESNECESSIDADE DE AVALIAÇÃO JUDICIAL PRÉVIA. PRECEDENTES TJ/CE. - DESNECESSIDADE DE AVALIAÇÃO JUDICIAL PRÉVIA DA ÁREA DECLARADA COMO DE UTILIDADE PÚBLICA, A FIM DE POSSÍVEL INDENIZAÇÃO PELOS PREJUÍZOS CAUSADOS PELA INSTITUIÇÃO DA SERVIDÃO ADMINISTRATIVA, DEVENDO O VALOR REAL DO COMPENSATÓRIO SER BUSCADO NO ÂMBITO DO MÉRITO, E NÃO EM FASE PRELIMINAR DA ACTIO. AGRAVO CONHECIDO E IMPROVIDO.

(TJCE,Agravo de Instrumento nº 0004610-18.2013.8.06.0000, 2ª Câmara Cível, Relator Francisco de Assis Filgueira Mendes, 22/01/2014)

Os casos de desapropriação, por utilidade pública, para a Copa do Mundo, chamam a atenção, especialmente pelo fato de que, meses após o evento, tem-se, conforme noticiado publicamente, inúmeras obras não concluídas a tempo para o evento, e incompletas por falta de orçamento, e que além de tudo isso, retiraram bens de seus originais proprietários sem a justa compensação.

Em 07(sete) de junho de 2015, quase um ano após o evento esportivo, a Folha de São Paulo, periódico conceituado internacionalmente, publicou reportagem dando ênfase às 35 (trinta e cinco) grandes obras programadas para a Copa do Mundo e que encontram-se atualmente inacabadas. Interessante ressaltar que a cidade de Fortaleza (CE) foi uma das quais a reportagem jornalística se ateve, fato este que ressalta a veiculação feita previamente neste estudo com aquela urbe. 2

As inúmeras desapropriações ocorridas com esteio no art. 15, 1§º, do Decreto Lei 3365/41, dispensando-se a justa e prévia indenização, abre margem para rediscussão do princípio que dá fundamento a tal procedimento: o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.

A problemática da questão deve ser resolvida a partir da análise interpretativa deste princípio, de modo a verificar evolutivamente sua semântica jurídica à época da edição do Decreto Lei 3365/41 e como é percebido atualmente, mediante a constitucionalização do direito administrativo e seus efeitos, posteriormente à promulgação da Constituição Federal de 1988.


3. O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular: definição, evolução e efeitos

Bandeira de Mello (1997, p.29) conceitua o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular como um verdadeiro axioma reconhecível no Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o particular, como condição, até mesmo de sobrevivência e asseguramento deste último.

A partir deste princípio é que se justifica a posição privilegiada da administração pública em detrimento do particular. Segundo Ávila (2001), este princípio, em sua acepção original, busca fundamentar os atos praticados pelo administrador público não sob um prisma motivador pessoal, mas, sim, sob a responsabilidade de atender interesse coletivo.

Ocorre que a percepção tradicional do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado não se ocupa em questionar quem determina os interesses públicos e baseado em quê esse interesse dito público é determinado, para fins de se sobrepor ao interesse particular.

É sobre este viés crítico que Ávila (2001) passa a descontruir a noção tradicional deste axioma do Direito Público como um verdadeiro princípio. O “princípio” da supremacia do interesse público sobre o particular é na verdade, uma dita regra abstrata de preferência em caso de colisão, uma vez que desde já estatui que há supremacia absoluta do interesse público sobre o privado, sem se questionar, no caso concreto qual poderá ser mais importante.

Segundo Ávila (2001), a supremacia do interesse público não possui em sua essência as características típicas de uma norma-princípio, uma vez que estas resguardam interesses diversificados e abstratamente contraditórios, de modo que apenas poder-se-ia entender se no caso concreto, haveria prevalência do interesse público, ou do interesse privado, diante da observação do caso concreto.

Da maneira em que é descrito, este princípio denota o período histórico, jurídico e político em que era pertinentemente invocado: à época da promulgação do Decreto Lei 3365/41, tinha-se no Brasil um regime autoritário e ditatorial, e tinham-se normas de direito administrativo eivadas do puro legalismo, sendo precedente à Constituição Federal de 1988, não havia em que se falar na condensada noção de principiologia e valores que se debate hodiernamente.

Sob a ótica de um direito administrativo, pós 1988, constitucionalizado e valorativo, fazem sentido as críticas feitas por Ávila (2001), no sentido de que este preceito, não possui validade principiológica.

Em primeiro lugar, porque o dito “princípio” se funda na premissa de que o interesse público é superior ao interesse privado, estabelecendo, desde já uma hierarquia estanque e imutável, como se o interesse público fosse dissociado do interesse privado. Ocorre que tais interesses são indissociáveis. Haberle (1970) afirma que os elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado, na medida em que apenas existe razão de ser para a existência do estado, se houver alguém, o particular, a quem servir. Não há contradição entre estes interesses, há em verdade uma conexão estrutural e necessária.

Logo, em primeiro plano, a supremacia do interesse público, perde fundamento de validade, porquanto parte de uma equivocada concepção de que o interesse público e particular são dissociados e intangíveis. O que, em verdade, não são, conforme salienta ISENSEE:

Na prática política é bastante discutido o que proporciona o interesse público numa concreta situação, se ele obtém a primazia frente a interesses particulares colidentes ou como deve ser obtido um ajuste. Mas não se trata de medidas inconciliáveis ou antinômicas. Então o bem comum inclui o bem de suas partes (...) Interesses privados podem transformar-se em públicos. Bonum commune e bonum particulare exigemse reciprocamente. Essa principial coordenação exclui uma irreconciliável contraposição. A tensão entre ambos é, no entanto, evidente”

Ainda como argumento para demonstrar exclusão de fundamentos de validade da supremacia do interesse público, Ávila (2001) ressalta a sua incompatibilidade com postulados normativos extraídos das normas constitucionais, e cita como exemplos o caso do princípio da proporcionalidade e da concordância prática.

Estes princípios, já aceitos pela doutrina e jurisprudência brasileira, tem em sua essência a semântica da interpretação dos casos concretos e, em havendo conflito de interesses, resolver o embróglio a partir dos critérios alexyanos de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. Algo que para a “regra abstrata de prevalência” é incabível.

Por fim, ÁVILA (2001) chega à conclusão de que o “princípio” da supremacia do interesse público sobre o privado, não é rigorosamente um princípio jurídico ou uma norma princípio, porquanto possui apenas um grau de aplicação, regra abstrata de prevalência do interesse público sobre o privado; prevê uma ultrapassada separação entre o público e o privado, que modernamente não possui sentido prático algum, uma vez que conforme a doutrina haberliana, que aponta que o público está em relação de complementariedade com o privado.

As conclusões são preciosas para o cerne da questão das desapropriações sem justa e previa remuneração (Ávila; 2001):

Dessa discussão orientada pela teoria geral do Direito e pela Constituição decorrem duas importantes conseqüências. Primeira: não há uma norma-princípio da supremacia do interesse público sobre o particular no Direito brasileiro. A administração não pode exigir um comportamento do particular (ou direcionar a interpretação das regras existentes) com base nesse “princípio”. Aí incluem-se quaisquer atividades administrativas, sobretudo aquelas que impõem restrições ou obrigações aos particulares. Segundo: a única idéia apta a explicar a relação entre interesses públicos e particulares, ou entre o Estado e o cidadão, é o sugerido postulado da unidade da reciprocidade de interesses, o qual implica uma principial ponderação entre interesses reciprocamente relacionados (interligados) fundamentada na sistematização das normas constitucionais. Como isso deve ser feito, é assunto para outra oportunidade. (Grifou-se)

Ora, diante da noção moderna de direito administrativo, em que há muito se suplantou a superficialidade da estrita legalidade, e passou-se a considerar o direito administrativo sob orientação de princípios e valores constitucionais, torna-se válido perceber que as desapropriações ocorridas de maneira açodada, sem justa e prévia indenização, com base em utilidade pública, a exemplo do que ocorreu para fins de obras públicas para a Copa do Mundo de 2014, e que violam garantia constitucional à propriedade, são absolutamente contrárias à nova percepção que se estimula, na doutrina e na jurisprudência: o entendimento de que a administração pública apenas obtém efetivamente a realização do interesse coletivo, a partir do exercício racionalizado do poder de que é dotada, respeitando, em cada caso concreto, a observância do respeito aos direitos dos indivíduos, na formação de sua vontade.

O argumento principal para demonstrar a impropriedade das referidas desapropriações passa especialmente pela compreensão da evolução semântica do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.

Sobre o autor
Alex Santiago

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Fortaleza. Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Professor de Direito Penal e Processo Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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