INTRODUÇÃO
Fruto da guerra econômica entre os Estados da federação, tornou-se cada vez mais frequente a instituição de programas de incentivo fiscal promovido pelos entes estaduais com o intuito de atrair investimentos e gerar empregos regionais. Os programas dispensam, total ou parcialmente, o imposto estadual incidente sobre a circulação de mercadorias e serviços, o ICMS. Aliás, a duvidosa proposta política de ampliar a oferta de empregos e renda é a principal plataforma nas campanhas eleitorais para os governos estaduais (VARSANO, 1997).
Apontada por muitos como uma causa indireta dos problemas fiscais dos Estados, hoje em crise, o montante financeiro objeto das renúncias fiscais promovidas pelos programas de desenvolvimento nas dispensas do pagamento de ICMS para utilização na ampliação do parque industrial ou instalação de empresas acaba por atingir, indiretamente, as receitas dos entes municipais, uma vez que fazem jus a percentual expressivo na arrecadação do ICMS (VEIGA, 2009).
Isso não foi diferente para o Estado de Goiás. Ainda em 19 de julho de 1984, por intermédio da Lei Estadual nº 9.489/1984, o Governo do Estado instituiu o “Fundo de Participação e Fomento à Industrialização do Estado de Goiás – FOMENTAR”. O programa visava incrementar a industrialização do Estado mediante a utilização do ICMS devido pelas empresas aderentes para financiar empreendimentos de expansão do parque industrial.
Posteriormente, através da Lei Estadual nº 13.591/2000, foi instituído o “Programa de Desenvolvimento Industrial de Goiás – PRODUZIR e o Fundo de Desenvolvimento de Atividades Industriais – FUNPRODUZIR”, cujo auspicioso projeto apresentado ideologicamente no preâmbulo da Lei, visava financiar ampliação do parque industrial de empresas Goianas. Para tanto, o plano de financiamento prevê que as empresas aderentes sejam dispensadas do pagamento do ICMS em percentuais definidos na Lei em nítido subsídio de natureza tributária.
Ambos os programas mencionados permitem que o Estado de Goiás conceda às empresas a dispensa do pagamento de parte do ICMS devido. Para adesão, as empresas precisam fazer prévia declaração do tributo a recolher, além de apresentar projeto de expansão de suas atividades econômicas. Na prática, isso implica em que o Estado repasse ao Município apenas 30% (trinta por cento) de sua parcela constitucional do ICMS decorrente da adesão ao FOMENTAR e 27% (vinte e sete por cento) do ICMS ao PRODUZIR.
O presente artigo, longe de pretender esgotar a matéria, aborda como o sistema jurídico brasileiro reconhece no direito à repartição tributária como expressão do caráter federativo do ente municipal. Notadamente, apreciará, de modo particular, os programas instituídos pelo Estado de Goiás.
1 INCENTIVO VERSUS CONSTITUIÇÃO
Diz o art. 1º da Constituição que a República Federativa do Brasil é formada pela “união indissolúvel” dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se como Estado Democrático de Direito. Os Municípios, portanto, alcançaram status de igual frente a União e Estados, gozando de autonomia política e administrativa, nos termos do art. 18, da Carta Magna.
Nesse sentido, leciona Sacha Calmon Navarro Coêlho:
[...] O federalismo brasileiro, pois, reflete a evolução do país, nem poderia ser diferente. A Constituição de 1988 promoveu uma grande descentralização das fontes de receitas tributárias, conferindo aos estados e municípios mais consistência (autonomia financeira dos entes políticos periféricos, base, enfim, da autonomia política e administrativa dos mesmos). À hipertrofia polícia e econômica da União dentro da Federação e à hipertrofia do Poder Executivo federal em face do Legislativo e do Judiciário, vigorantes na Carta de 67, seguiram-se a distrofia da União na Federação e a hipertrofia do Legislativo federal nos quadros da República federativa. (sic) (2010, p. 97)
A efetividade dos dispositivos constitucionais que garantem autonomia ao Município se dá, também, na repartição das receitas tributárias auferidas pelos demais entes federais, verificável, dentre as hipóteses, no art. 158, da Constituição, verbis:
Art. 158. Pertencem aos Municípios:
[...]
IV – vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviço de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.
Sendo intuitivo, percebe-se que o Estado de Goiás não pode dispor da parcela do ICMS pertencente aos Municípios, como que agindo em total desrespeito à autonomia do ente municipal, sobretudo em tempos de severa rigidez financeira do País.
Veja-se, na redação do art. 2º, alínea “a”, da Lei nº 9.489/1984, que as fontes do FOMENTAR são os recursos do ICMS a serem pagos pelas empresas do programa:
Art. 2º - São fontes de recursos do FOMENTAR:
a) Tesouro Estadual, que concorrerá com valor de até 12 (doze por cento) VETADO sobre as vendas de mercadorias tributadas pelo Estado de Goiás realizadas pelos empreendimentos implantados ou expandidos com apoio técnico, financeiro ou, ainda, mediante participação acionária do FOMENTAR;
Igual situação se nota na redação do art. 20, da Lei nº 13.591/2000, cujas fontes do PRODUZIR decorrem do ICMS já constituído pelas empresas aderentes:
Art. 20 – A concessão de financiamento com base no faturamento e arrecadação tributária propiciada pela empresa beneficiária, conforme estabelecido no regulamento, será operacionalizada obedecendo-se aos seguintes critérios:
I - o valor da parcela mensal do financiamento, calculada sobre o montante do imposto que a empresa beneficiária tiver de recolher ao Tesouro Estadual, será de até:
Embora no caso do PRODUZIR haja previsão repasses dos entes para compor o FUNPRODUZIR, no art. 8º, inciso IV, a cogitar-se de transferências voluntárias, o programa, na verdade, institui aproveitamento das receitas dos Municípios pelo Estado de Goiás em completa revelia de seus interesses autônomos.
A despeito da nobre intenção, o projeto desonerador se mostra terrivelmente prejudicial aos Municípios, uma vez que estão na linha de repartição das receitas tributárias do ICMS. De fato, caracteriza-se como ofensa à cooperação própria do sistema federal brasileiro, conforme bem pondera João Francisco Neto, ao dizer que “a solidariedade fiscal entre a União e os entes federados, corrigindo distorções e dando início à um processo de aprimorando do federalismo fiscal no Brasil” (2009).
2 POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA
A prática comum dos Estados se assenhorarem de recursos dos repasses obrigatórios recebeu especial insurgência do Município de Timbó em razão do programa similar instituído pelo Estado de Santa Cataria. O caso chegou ao STF em 2008, recebendo repercussão geral e contemplou os interesses autônomos dos Municípios, conforme se verifica abaixo:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 572.762-9 SANTA CATARINA
RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI
RECORRENTE : ESTADO DE SANTA CATARINA
ADVOGADO (A/S) : PGE-SC ROGÉRIO DE LÚCIA
RECORRIDO (A/S) : MUNICÍPIO DE TIMBÓ
ADVOGADO (A/S): CARLOS EDUARDO SERPA DE SOUSA
EMENTA: CONSTITUCIONAL. ICMS. REPARTIÇAO DE RENDAS TRIBUTÁRIAS. PRODEC. PROGRAMA DE INCENTIVO FISCAL DE SANTA CATARINA. RETENÇÃO, PELO ESTADO, DE PARTE DA PARCELA PERTENCENTE AOS MUNICÍPIOS. INCONSTITUCIONALIDADE. RE DESPROVIDO.
I – A parcela do imposto estadual sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, a que se refere o art. 158, IV, da Carta Magna pertence de pleno direito aos Municípios.
II – O repasse da quota constitucionalmente devida aos Municípios não pode sujeitar-se à condição prevista em programa de benefício fiscal de âmbito estadual.
III – Limitação que configura indevida interferência do Estado no sistema constitucional de repartição de receitas tributárias.
IV – Recurso extraordinário desprovido.
Por ocasião do julgamento, o Douto Relator pronunciou em seu voto que o direito à receita pelo Município “independeria de efetivo ingresso do tributo no erário estadual”. Sim e porque o repasse do produto da receita estaria sendo transferido diretamente aos interessados no programa instituído pelo Estado de Santa Catarina.
De modo similar os programas instituídos pelo Estado de Goiás transferem os recursos mediante aproveitamento pelo aderente via contrato de financiamento, os quais deveriam ser recolhidos aos cofres do Estado. A situação é tão grave que, conforme recordou o Ministro Carlos Britto, a verba “pertencente aos Municípios que a Constituição chega a apenar o Estado com intervenção federal se a respectiva entrega aos Municípios deixar de ser feita” (na inteligência do art. 34, inciso V, alínea “b”, da CF).
Sabiamente, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás vem se posicionando em consonância com a decisão do Supremo, conforme se vê nos seguintes julgados:
AGRAVO INTERNO NO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO E APELAÇÃO CÍVEL. COBRANÇA. ICMS. PROGRAMA FOMENTAR, ARTIGO 158, IV, CF. DESPROVIMENTO. I – Segura em precedentes do Supremo Tribunal Federal, com relevo na autonomia financeira e política, e no partilhamento da receita advinda do produto da arrecadação do ICMS, este tribunal vem, exaustivamente, reafirmando o direito de os municípios de obter o repasse alinhado no art. 158, IV, Constituição Federal, sem qualquer decesso advindo de empréstimos ou doações do Estado de Goiás à empresas fomentados por benefícios fiscais. II – Agravo interno desprovido. (TJGO. Proc. Rec. 255236-50.2007.8.09.0011. Rel. Des. Beatriz Figueiredo Franco. 3ª Câm. Cível. DJ 2039 de 03/06/2016).
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. DECISÃO DO RELATOR QUE DECIDIU APELAÇÕES CÍVIES E REMESSA OBRIGATÓRIA. ICMS. PARCELA DO TRIBUTO DO ICMS QUE PERTENCE AO MUNICÍPIO E RETIDA PELO ESTADO. FEDERALISMO COM REPERCUSSÃO GERAL. 1. O Plenário do STF, no julgamento do RE 572.762/SC, Rel. o Min. Ricardo Lewandowski, consolidou o entendimento de que o repasse da quota constitucionalmente devida aos municípios não pode se sujeitar à condição prevista em programa de benefício fiscal de âmbito estadual. 2. A decisão paradigma, adotada pelo pronunciamento do relator para confirmar a condenação imposta pela sentença de 1º grau ao Estado de Goiás, mesmo que envolva discussão afeta a outro estado da federação, adéqua-se, perfeita e juridicamente, ao caso concreto. O mesmo Pretório Excelso, em julgados das suas Turmas fracionárias, também condenou o ente estadual, ora agravante, ao repasse constitucional aos municípios goianos que lá recorreram, desconsiderando-se os programas de incentivos fiscais concedidos pelo ente estadual sobre o ICMS. Precedentes citados: RE 831331 AgR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 28.04.2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-090 DIVULG 14-05-2015, PUBLIC 15.05.2015; RE 824353 AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 22.09.2015m PROCESSO ELETRÔNICO DJe-225 DIVILG 11.11.2015 PUBLIC 12.11.2015) 3. Não se mostra irrazoável a verba honorária imposta na decisão agravada, a ser suportada pela fazenda pública estadual vencida, porque fixada nos termos do art. 20, parágrafo 3º e 4º do CPC. AGRAVO IMPROVIDO. (PROC/REC 402746-87.2009.8.09.0111 – DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. Rel. Des. Orloff Neves Rocha. 1ª Cam. Cível. DJ 1992 de 09.03.2016).
A toda evidência, nota-se que os julgamentos acabaram por prestigiar o texto constitucional, lembrando que a guerra fiscal desenfreada entre os membros federativos não traz benefícios para nenhum dos participantes da Administração, sendo terrivelmente prejudicial aos serviços mais essenciais diretamente prestados nos municípios, onde se vive de verdade.
CONCLUSÃO
Não se pode duvidar, portanto, que a Constituição de 1988, ao primar pela democracia social, aumentou suas competências em amplos setores sociais, obrigando-se a descentralizar a responsabilidade dos entes federativos locais, os quais não podem mais ficar reféns das transferências voluntárias dos Estados.
Assim, é inadmissível que os municípios Goianos continuem a perder tanto dos recursos do ICMS sem ao menos tomarem conhecimento das quantias dispensadas nos subsídios disponibilizados pelo Estado de Goiás nos programas desoneradores.
As posições dos tribunais evidenciam que o Estado de Goiás também cometeu o equívoco de valer-se de incentivos fiscais em prejuízo aos entes municipais. Devem receber, portanto, a sua parcela constitucional dos tributos estaduais não podendo esta ser utilizada sem que os municípios possam cooperar junto à ação desoneradora.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. rev. e atual. Rio: Forense, 2010.
FRANCISCO NETO, João. Responsabilidade Fiscal e Gasto Público no Contexto Federativo. 2009. 272 f. Tese (Doutorado em Direito Econômico e Financeiro) - Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário. Universidade de São Paulo. Faculdade de Direito. São Paulo, 2009, p. 51. Disponível em: Acesso em: 22 jan 2016.
GOIÁS. Gabinete Civil. Lei nº 9.489, de 19 de julho de 1984. Disponível em: <http://www.gabinetecivil.goias.gov.br/leis_ordinarias/1984/lei_9489.htm> Acesso em: 28 nov 2016.
______. Gabinete Civil. Lei nº 13.591, de 18 de janeiro de 2000. Disponível em: <http://www.gabinetecivil.goias.gov.br/leis_ordinarias/2000/lei_13591.htm> Acesso em: 28 nov 2016.
MARTINS, Breno Ferreira; VEIGA, Thais Romero. Os efeitos da guerra fiscal entre os Estados. São Paulo: 2009. Disponível em: <http://www.fiscosoft.com.br/main_online_frame.php?page=/index.php?PID=222118&key=4516412> Acesso em: 19 nov 2016.
VARSANO, Ricardo. A guerra fiscal do ICMS: Quem ganha em quem perde. São Paulo: 2009. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/%20PPP/article/viewFile/127/129> Acesso em: 22 nov 2016.