O Ministério Público e o Crime Organizado
3.1.Escorço Histórico
A origem histórica do Ministério Público encontra-se entre nuvens. Há alguns milênios, no Antigo Egito, havia uma classe de escribas reais que eram os responsáveis pela fiscalização de tudo o que ocorria no território: castigavam os rebeldes, protegiam os cidadãos, reprimiam atos violentos etc. Dentre suas mais importantes funções estavam a de tomar nota das acusações e indicar o dispositivo legal aplicado e "tomar parte nas instruções para descobrimento da verdade" [108]. No século XIV, uma ordennance francesa datada de 25 de março de 1302, instituída pelo Rei Felipe, o Belo, mencionou tal instituição, a qual se encarregava dos interesses judiciais do chefe de estado. Antes mesmo desta data, em 1277, texto de Felipe Le Hardi traz referências a esses homens públicos [109]. Eram os gens du roi [110]. Por isso Ary Florêncio Guimarães afirma que "quando as ordennances dele se ocupam, o Ministério Público está em pleno exercício" [111].
No Direito Romano há menção aos Procurator Cæsaris e aos Defensoris Civitatus. José de Moura Rocha entende que não cabia a eles a pecha de procuradores da justiça, uma vez que não era do feitio dessas instituições a propositura da ação penal e nem a missão de fiscalização da lei [112].
Segundo análise da Promotora de Justiça Marlusse Pestana Daher [113], a figura do Promotor de Justiça, em território brasileiro, surge apenas no século XVII, em 1609, quando da regulamentado do Tribunal de Relação da Bahia. No Império, a Instituição era regulamentada no Código de Processo Criminal, sem qualquer referência constitucional.
Com a Constituição de 1824 eram criados o Supremo Tribunal de Justiça e os Tribunais de Relação, sendo nomeados os respectivos Desembargadores e Procuradores da Coroa, reconhecidos como Chefe do Parquet. Apenas com o Decreto 5.618, de 2 de Maio de 1874, a expressão Ministério Público é utilizada pela primeira vez no Brasil.
Posteriormente, com a Constituição de 1891, também pela primeira vez, o Ministério Público mereceu referência na Carta Magna. Não lhe sendo reconhecida, contudo, a condição de órgão autônomo. Assim dispunha o § 2º do artigo 58 da Constituição Brasileira de 1891: "O Presidente da República designará, dentre os membros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador Geral da República, cujas atribuições se definirão em lei". Vê-se, portanto, que a menção ao Parquet foi bastante lacônica.
Já na Constituição Federal de 16 de julho de 1934, cujos artigos 95 a 98, tratavam de forma mais definida a própria razão de ser do Ministério Público, há um delineamento, ainda que genérico, das suas competências funcionais. Ao Procurador Geral da República, nos termos do § 1º do artigo 95, foram designadas as seguintes atribuições e prerrogativas:
O Chefe do Ministério Público Federal nos juízos comuns é o Procurador-Geral a República, de nomeação do Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, dentre cidadãos com os requisitos estabelecidos para os Ministros da Corte Suprema. Terá os mesmos vencimentos desses Ministros, sendo, porém, demissível ad nutum.
Em 1937, um revés ocorreu à instituição do Ministério Público no Brasil. A Constituição do Estado Novo, da Era Vargas, extirpou o Parquet do ordenamento constitucional e do próprio cenário político. Apenas com a Constituição de 1946 a instituição volta ao cenário político e jurídico nacional. Em 1967, passa a integrar o Poder Judiciário e pela Emenda Constitucional nº 01 de 1969, o Poder Executivo.
3.2.A Constituição de 1988
No Brasil, até a promulgação da Constituição de 1988, tinha o Ministério Público a atribuição de representar os interesses do Poder Executivo [114]. Tal função vai de encontro às diretrizes do órgão, o qual poderia até ser confundido com os atuais Advogados Gerais da União [115].
A definição do que seja o Ministério Público no seio do ordenamento jurídico brasileiro pode ser encontrada no artigo 127 da Constituição Federal de 1988: é uma "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis."
A Carta Magna, em uma inovação pioneira frente a uma instituição governamental, assegurou ao Ministério Público independência funcional e administrativa, em face do disposto no seu artigo 127, §§ 1º e 2º.
Ainda que não tenha personalidade jurídica, é o Ministério Público independente funcionalmente. É um órgão e não uma pessoa jurídica de direito público, possuindo responsabilidades concedidas pelo ordenamento jurídico. Seria isso uma anomalia? Entendemos que não. A fim de se manter íntegro na realização de suas funções, não pode o Ministério Público ser atrelado a qualquer dos poderes do Estado [116]. Tendo a instituição responsabilidades, e sendo independente, seus membros respondem caso haja uma exacerbação dos mandamentos legais a si conferidos; devem ele agir de acordo com o mandamento legal e com suas próprias consciências [117]. Ademais, para admitir que um ente possua autonomia funcional (autonomia para desempenhar a sua função institucional) é mister que ele reúna, em torno de si, três pressupostos básicos: possuir regime jurídico, conforme os ditames da Constituição; uma própria dotação orçamentária, a si designada; e uma função específica por ele desempenhada, isto é, uma função peculiar [118].
As garantias ofertadas pela Constituição ao Ministério Público, e a capacidade de atuação por este coligida são as principais arenas das quais deve o Parquet se utilizar para instrumentalizar sua finalidade precípua. a defesa do ordenamento jurídico e dos interesses sociais. A Carta Magna de 1988 foi uma ruptura às antigas atribuições do Parquet. A sociedade clamava por uma instituição independente, onde o corporativismo e o jogo de interesses, ainda que existente, fosse dado lugar à defesa do legítimo interesse público, social.
A real importância da Instituição só recentemente, foi realmente reconhecida. O Ministério Público passou a ocupar posição autônoma frente aos três Poderes Estatais e, no exercício pleno de suas atribuições, pôde passar a exercer com independência funcional e administrativa as atribuições que lhe são afetas, destinadas, no contexto nacional, à defesa, sem reservas, dos interesses sociais e individuais indisponíveis à tutela dos interesses difusos.
3.3.Atribuições do Ministério Público
Dispôs a Carta de 1988, em seu artigo 129.:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
II – zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;
Omissis
VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;
VII – exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;
VII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;
IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.
Dentre as mais importantes funções prescritas no artigo sobrescrito estão a de fiscal da ordem legal e social e de senhor da ação penal pública.
Em nossa legislação infra-constitucional, o art. 257 do Código de Processo Penal dispõe também que "O Ministério Público promoverá e fiscalizará a execução da lei", em outras palavras, será o órgão da lei e fiscal da sua execução. Sendo um órgão da lei, não está escravizado a ela. Caso contrário, seria então, tão-só, notoriamente fiscal da sua execução, e nada mais. Entretanto, porque não é apenas o fiscal da sua execução, e sim também o órgão da própria lei, é que a observância desta não procede com a passividade dos fiscais apenas, ao contrário, conserva o seu coeficiente irredutível de personalidade e autonomia. Além disso, deve o Ministério Público discutir a própria lei, zelar pela sua presteza e justiça [119].
Tais atribuições são complementadas pela possibilidade do Parquet exercer outras funções a serem conferidas pela lei, além de exercer controle externo à atividade policial. Com base nessas premissas iniciais, pode o Ministério Público, utilizando-se da gama de poderes a ele conferidos pelo artigo 129 da Constituição Federal, instaurar inquéritos tendo em vista a apuração de infrações penais? Mais particularmente, pode o Ministério Público, na repressão às organizações criminosas, utilizar o aparato investigativo permitido pelo ordenamento jurídico brasileiro?
O tema é complexo e enseja ampla discussão doutrinária e judicial.
3.3.1.Investigações Preliminares
Havendo infração a uma norma penal incriminadora, o Estado, titular do jus puniendi, tem o dever de punir, o qual deve ser concretizado através do devido processo legal. A fim de que isso aconteça, deve o Estado colher o mínimo de elementos informativos acerca do fato. Essa colheita se faz através de procedimentos de investigação levados a efeito, normalmente, através de um inquérito policial, que seria então um "conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a apuração de uma infração penal e de sua autoria" [120], revestido de um caráter administrativo, informativo, tendo como escopo o fornecimento ao órgão de acusação – Ministério Público (na ação penal pública) ou particular ofendido (na ação penal privada) – de elementos ensejadores à proposição de uma ação penal.
Mirabete [121] entende ser a polícia judiciária "uma instituição de direito público, destinada a manter a paz pública e a segurança individual". Sua atribuição em âmbito estadual é da polícia civil, e na esfera federal é da polícia federal.
Com relação às investigações preliminares, o parágrafo único do artigo 4º do Código de Processo Penal Brasileiro nega sua exclusividade à polícia judiciária. Tal norma foi, aparentemente, recepcionada pela Constituição Federal, pois esta não estabeleceu que as investigações preliminares fossem feitas exclusivamente pela polícia judiciária, mas sim dispôs quais órgãos teriam atribuição de polícia judiciária. No § 4º do artigo 144, há a previsão de que, salvo exceções, a investigação criminal seja procedida pela polícia civil. Tal norma não é taxativa. As exceções existem. No inciso IV, § 1º do artigo 144 da Constituição, está disposto que, em âmbito federal, apenas a polícia federal pode exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União, o que não ocorre com a polícia civil nos Estados-Membros da Federação. Aresto publicado na Revista dos Tribunais [122] acorda nesse sentido: "A Constituição Federal, no § 4º, do art. 144, não estabeleceu com relação às Polícias Civis a exclusividade que confere no § 1º, inciso IV, à Polícia Federal para exercer as funções de polícia judiciária". Em sentido contrário, insurge-se o Professor Luiz Alberto Machado, para o qual a investigação policial, tal como a ação penal pública, é um monopólio e deve ser resguardada à polícia judiciária, por ser uma garantia à ordem constitucional [123].
A interpretação jurisprudencial acerca da matéria recebeu uma nova perspectiva quando o STF, em decisão de 2002, acordou no sentido de que o inquérito realizado pelo Ministério Público é válido. No voto do Ministro Relator Maurício Correia, são discorridas questões acerca da interpretação conjunta do art. 144 com o artigo 129, inciso IX, todos da Constituição Federal [124]
Portanto, há uma permissividade legal, oriunda de uma interpretação sistemática da Constituição Federal com o Código de Processo Penal, no sentido de que o inquérito realizado pela polícia judiciária não é a única forma de investigação criminal existente no ordenamento jurídico brasileiro.
O ordenamento pátrio já consente a outras autoridades, que não as policiais, a presidência de inquérito, portanto administrativo e extrapolicial, tais como: a) o inquérito para apurar infrações ocorridas em áreas alfandegárias (ex vi da alínea b do artigo 33 da Lei 4771, de 15 de setembro de 1965); b) o inquérito para apuração de infrações de competência da justiça militar; c) investigações efetuadas pelas CPIs, Comissões Parlamentares de Inquérito (§ 3º do artigo 58 da Constituição Federal e Lei 1.579, de 18 de março de 1952), as quais têm um maior poder de investigação na apuração de fatos determinados e, na constatação de crimes de competência da Justiça Comum, podem fornecer elementos ao Ministério Público para que este ofereça denúncia; d) investigação por parte do juiz nos casos de infrações tipificadas como crimes falimentares; e) inquérito para apurar crimes cometidos nas dependências da Câmara dos Deputados ou Senado Federal, cabendo à casa a instauração da investigação prefacial (Súmula 397 do Supremo Tribunal Federal); f) inquérito instaurado pelo Superior Tribunal de Justiça na apuração de crimes imputados a Governador de Estado, cabendo a presidência ao Relator do feito, o qual deve ser assistido pela Polícia Federal [125]; g) inquérito civil público, instaurado pelo Ministério Público, entre outros [126].
Com base nessas premissas, o Senado Federal, em uma tentativa de dar respaldo legal a essas reivindicações, estabeleceu no artigo 4º do Projeto de Lei 3.713/97 que:
Art. 4º. O Ministério Público, na apuração de crimes praticados por organização criminosa, requisitará procedimento investigatório de natureza inquisitiva e sigilosa, acompanhando-o, a fim de colher elementos de prova, ouvir testemunhas e, ainda, obter documentos, informações eleitorais, fiscais, bancárias e financeiras, devendo zelar pelo sigilo respectivo, sob pena de responsabilidade penal e administrativa.
Inicialmente é de se vislumbrar que tal particularidade só será atribuída ao Ministério Público caso seja em investigação de crime praticado por organização criminosa.
Mesmo assim, o lobby feito na Câmara dos Deputados foi suficiente para que tal artigo fosse suprimido do texto original. Inconformada com tal destino, a Associação Nacional dos Procuradores da República espera que, quando o projeto retornar à sua casa de origem, o Senado, tal dispositivo seja reintegrado. O principal motivo alegado pelo Ministério Público é que a sociedade não pode ficar à mercê da criminalidade organizada sem que um órgão com as atribuições do Ministério Público nada possa fazer [127]. A par dos exageros, é sabido que uma das principais células do crimine organizado se encontra entre policiais corruptos, ou predispostos à criminalidade. Eles têm maior acesso aos presos, são mal remunerados, na maioria das vezes desqualificados e sem uma infra-estrutura digna da corporação. [128]
Esses motivos e os já expostos refletem o anseio social de que uma instituição imbuída do espírito de defesa da sociedade possa combater com mais ênfase o crime organizado. A complexidade nas quais as organizações criminais se envolvem pode apenas ser enfrentada por um ente como o Ministério Público. A pressão psicológica exercida pelo Parquet sobre os criminosos é fruto da ordem constitucional, que dotou esse órgão com garantias e atribuições ímpares [129]. Sendo cada vez mais membros das forças policiais participantes de atividades ilícitas, financiadas por organizações criminosas, não pode a sociedade ter um respaldo de integridade por parte da Polícia. Se uma das funções do Ministério Público é o controle externo da atividade policial, por que não essa instituição exercer atividades não defesas pelo ordenamento jurídico pátrio? As atividades do Parquet, nesse sentido, sempre estarão, de qualquer modo, sob o olhar atento do Judiciário, o qual deverá ser sempre manejado caso algum ilícito seja cometido por um membro do Ministério Público
Não havendo na Constituição Federal norma proibitiva no sentido de que apenas a polícia judiciária tem atribuições para a realização de diligências investigatórias, pode o ordenamento infra-constitucional estabelecer medidas a fim do Ministério Público proceder a esse desiderato.
3.3.1.3. Projeto de Lei 3.713/97: Atribuições ao Ministério Público
O papel do Ministério Público é zelar para que o combate à criminalidade não seja estanque, intermitente. Tal desafio é perene. Sabendo das dificuldades apresentadas na realidade brasileira para tal fim, o legislador visou, no Projeto de Lei 3.713/97, uma maior integração entre diversos órgãos componentes da sociedade.
É garantido ao Parquet, no parágrafo único do art. 4º do Projeto de Lei, acesso a informações bancárias dos investigados. O art. 7º dispõe que as autoridades fazendárias, bancárias e as da Comissão de Valores Imobiliários, quando tiverem conhecimento de indícios de atividades do crime organizado, deverão remeter, imediatamente, documentos informativos ao Ministério Público. Para que tal argumento legal seja eficaz, é necessário respeito mútuo às instituições, além de uma estruturação prática entre esses órgãos. O artigo 13 do Projeto de Lei traz uma norma programática nesse sentido. O projeto dispõe também que empresas de transporte possibilitarão acesso direto e permanente do juiz, do Ministério Público e de autoridade policial aos bancos de dados de reservas e registro de viagens, que deverão ser guardados por cinco anos. No caso das concessionárias de telefonia fixa ou móvel, elas também deverão manter os registros de identificação das ligações por cinco anos.
Fica demonstrado que deve haver uma preocupação com a reforma das leis penais e processuais, porém a preocupação maior é em dotar os organismos responsáveis pela investigação e persecução de melhores instrumentos para a consecução desses desideratos, além de garantir ao Ministério Público uma postura mais arrojada, a fim de que possam, juntos, coordenar tais atividades.
Qualquer forma de combate ao crime organizado só poderá ser bem sucedida se houver, inicialmente, uma reestruturação das instituições.
Para que isso dê certo no Brasil, faz-se necessário o abandono da postura corporativista enraizada nas instituições político-econômicas [130].