A regulamentação do art. 226 § 3º, da CF, tão ansiosamente reclamado, finalmente saiu, traçando os parâmetros da união estável e dispondo sobre os direitos e deveres dos concubinos .
Ainda não tínhamos absorvido a Lei nº 8.971/94 e eis que outra chega dispondo sobre a mesma matéria, numa extravagância tipicamente brasileira, em que legislar ainda é o melhor remédio para todos os males.
Por diversos estágios da evolução da sociedade, o concubinato tem se manifestado de forma constante, pois afinal nunca deixou de ser a união livre entre um homem e uma mulher, no mesmo leito, sem formalidades e sem qualquer interferência oficial. A variação está no tratamento que o ordenamento jurídico dispensa ao fato, refletindo o grau de aceitação da sociedade.
A realidade que temos hoje, no Brasil, como resultante dessa evolução, em que as construções jurisprudenciais foram decisivas, é um instituto oficialmente reconhecido, com assento constitucional e previsão legal.
A análise da Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996, comporta, de início, algumas considerações críticas que me atrevo a fazer.
A lei optou por mudar a terminologia até então usada por leigos e juristas. Rompeu-se com os conceitos mais técnicos, já sedimentados na doutrina, na jurisprudência, nas leis anteriores e na própria história do Direito de Família. Companheira ou concubina agora é convivente; concubinato é convivência. Temos, então, um substantivo comum de dois para designar os concubinos: o convivente, a convivente. E um nova designação para o Direito Extramatrimonial: Direito da Convivência, Direito Convivencial ou Direito dos Conviventes (1).
O professor mineiro Rodrigo da Cunha Pereira, estudioso do assunto, talvez tenha a melhor justificativa para essa inovação do legislador ao lembrar que o termo concubinato tem, no Brasil, sentido pejorativo entre os leigos, sendo ofensivo chamar uma mulher de concubina. Lembra, ainda, do conceito de "convivência duradoura" para designar o concubinato pelo direito soviético (2).
Entretanto, a expressão companheira não traz essa conotação negativa e já foi consagrada em nossa jurisprudência como uma união livre mais idônea e repeitável do que o concubinato (cf. RT 467/135; RT 519/295; RTJ 82/933). Por que a nova lei não repetiu a anterior (8.971), adotando essa expressão já tão bem dissecada pela jurisprudência?
Pretender-se, agora, fazer distinções entre as diversas previsões legais (concubina - Código Civil; companheira - Lei nº 8.971; e convivente - Lei nº 9.278) seria confundir a compreensão do povo, destinatário das leis, sem qualquer efeito prático relevante. O fato é o mesmo; as distinções e suas conseqüências devem ficar por conta dos julgados, em cada caso concreto.
A definição de união estável, no artigo 1º da lei em apreciação compromete o papel criativo da jurisprudência que vinha traçando seus contornos, com os julgamentos de caso a caso.
Não há mais o impedimento quanto à constituição de uma união estável com um(a) companheiro(a) casado(a), mas separado(a) de fato, como a Lei nº 8.971 proibia, ao se referir em seu art.1º, expressamente, a "um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo". A nova lei não fez a restrição anterior, marcando assim um avanço nesse sentido.
Críticas de lado, legem habemus! Resta-nos procurar
analisar seu espírito e tratá-la com a melhor hermenêutica,
para que seja mais eficaz e alcance o fim a que se propôs.
O art. 1º da Lei 9.278, ao definir a entidade familiar, traçou seus requisitos como sendo: a) convivência duradoura, pública e contínua; b) convivência entre um homem e uma mulher; c) convivência com objetivo de constituição de família.
Como se percebe, omitiu-se o tempo da convivência e a existência de filhos (Art. 1º da Lei nº 8.971/94), como fatores determinantes da entidade familiar. Mas, essa omissão não significa que o legislador tenha desprezado o fator tempo como implemento do estado convivencial (3). Daí porque usou o adjetivo duradoura. Para aferição daquilo que é duradouro deve-se recorrer a um juízo de avaliação do tempo da convivência, a sua estabilidade.
Não se pode caracterizar como união estável uma união de meses, de um ano, de até dois anos, principalmente sem a existência de filhos. Havendo estes, ainda assim, deve aferir-se as circunstâncias da união, se esta realmente nasceu com o propósito de constituição de uma família, se há continuidade na convivência. Só com o tempo é que se consolida o companheirismo próprio de uma família. Pode não haver no início o objetivo de constituir família; é uma experiência que só vai ser consolidada com a convivência. A aferição do tempo vai requerer, portanto, um juízo de razoabilidade.
A só existência de um filho não conta, pois, como sabemos, a concepção pode ocorrer ocasionalmente, até de um simples encontro, de natureza meramente sexual, sem qualquer propósito de durabilidade.
Importante, por conseguinte, para configurar-se a união estável é a aferição desses requisitos legais, considerando-se, ainda: a) a convivência more uxorio; b) a afeição recíproca; c) a comunhão de vida e de interesses; d) a conduta dos conviventes; e) a posse do estado de casado.
Ao referir-se a Lei nº 9.278 à convivência entre
um homem e uma mulher teria negado decisivamente a aceitação
das uniões homossexuais como união estável
ou deixou mesmo essa matéria para o Direito das Obrigações?
Creio que esse será mais um desafio à jurisprudência.
A Lei nº 9.278 pretendeu tratar o concubinato com as mesmas formalidades de um casamento, já definindo sua natureza jurídica como contrato. Retirou-lhe assim seu romantismo e interferiu na vontade particular do cidadão, quando já se fala em privatização do Direito de Família. Enquanto o casamento é um contrato, adverte Diogo de Campos, determinante, por si mesmo, de efeitos jurídicos que se impõem aos cônjuges, a união de fato é um estado, cujo conteúdo e duração está dependente da vontade dos concubinos - de cada um deles (4).
O legislador desprezou o fato natural, espontâneo, alternativo, que sempre foi o concubinato para querer reduzi-lo a um acerto prévio de vontades. Em sua previsão, imaginou um homem solteiro propondo a uma mulher uma convivência duradoura, com objetivo de constituir uma família, assegurando respeito, assistência moral e material, comunhão parcial de bens e garantias, em caso de rescisão do contrato. Eis uma união estável que com o decurso do tempo, pode ser convertida em casamento.
Ao tratar da dissolução da convivência, a terminologia usada foi a mais técnica possível: rescisão. Não bastou dizer "dissolvida a união estável"; precisou torná-la mais explícita, mais técnica: "dissolvida a união estável por rescisão". O art. 6º (vetado) trazia o conceito de rescisão contratual nos seguintes termos: " Ocorre a rescisão quando houver ruptura da união estável por quebra dos deveres constantes desta lei e do contrato escrito, se houver" (art. 6º § 3º, do Projeto de Lei nº 1.888- C, de 1991 ). No parágrafo seguinte, também vetado, aludia a "denúncia do contrato".
Com esse tratamento e previsão, a Lei nº 9.278 fixou as seguintes conseqüências para a dissolução da convivência:
a) dever de prestar alimentos por um dos conviventes ao que dela necessitar;
b) divisão dos bens, conforme dispõe a lei ora examinada ou conforme estipulado em contrato escrito.
Em caso de morte, ao sobrevivente será assegurado direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família.
A Lei nº 8.971 tratou o problema sucessório com mais
detalhe, chegando a garantir ao companheiro supérstite
a totalidade da herança, na falta de descendentes e ascendentes
(art.2º, III). Creio que, nessa previsão, não
houve revogação do disposto na lei anterior, por
ser perfeitamente compatível com a Lei nº 9.278.
A preocupação com alimentos, até no sentido mais estrito do termo, era a que assaltava mais os concubinos desamparados. Quantas ligações duradouras foram bruscamente encerradas porque o concubino apaixonou-se por outra e resolveu casar-se, deixando sua ex-amante sem condições de sustentar-se? Algumas com idade já avançada e sem perspectiva de conseguir trabalho.
Mais uma vez a força criativa da jurisprudência convenceu os legisladores dos novos rumos do direito, principalmente no direito de família, aquele que mais reflete a dinâmica das relações sociais.
A Lei nº 9.278 assegurou ao convivente separado e necessitado direito a alimentos, como cumprimento do dever de assistência material assumido no momento ou ao início do contrato de convivência. Haverá o juiz, evidentemente, de atentar para o binômio necessidade/possibilidade para fixação do quantum da pensão, além das circunstâncias da rescisão.
O rito pode ser o ordinário, se a prova não vier pré-constituída, ou o da Lei nº 5.478, se a prova da convivência acompanhar o pedido. Neste último caso, não se pode deixar de conceder os alimentos provisórios.
Se os alimentos ficaram assegurados aos conviventes, a fortiori,
os filhos têm a mesma garantia conferida pela ordem jurídica
(Lei nº 5.478/68), aqui, como instituto de direito parental.
Especificamente, o dever de prestar alimentos, exsurge do texto
legal pela dicção do art. 2º, III da lei comentada,
quando consigna como dever dos conviventes o sustento e a educação
dos filhos comuns.
Os bens dos coniventes são divididos nos mesmos moldes do regime de comunhão parcial de bens, no casamento, isto é, comungam os adquiridos na constância da convivência. Tais bens são considerados frutos do trabalho e da colaboração comum, ainda que adquiridos só por um dos conviventes.
A existência de contrato entre os concubinos, como pretende a lei, pode estipular de forma diferente a divisão dos bens.
Os bens adquiridos antes da união dos conviventes não estão sujeitos a divisão, assim como os adquiridos com o produto desses mesmos bens.
A administração do patrimônio comum formado
pelos conviventes competirá a ambos, como em uma sociedade,
onde a igualdade é a regra. É a isonomia (art. 5º
,I, da CF) em sua indiscutível extensão.
O artigo 9º, da Lei nº 9.278 veio dirimir a controvérsia doutrinária e jurisprudencial em torno do tema e apontar aquilo que, a meu ver, sempre foi óbvio (5).
A competência fixada pela lei comentada para conhecer das causas relativas à união estável é do juízo das varas de família. Após o advento da Constituição Federal de 1988, o entendimento de que a matéria era de Direito das Obrigações, e, portanto, afeta às varas cíveis, negava o espírito da norma constitucional.
Andou bem e com acerto o Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul que já havia sumulado (Súmula nº 14)
esse entendimento.
São estas as conclusões que se apresentam como resultado do estudo da Lei nº 9.278/96:
a) uma nova terminologia foi adotada para se referir aos concubinos: o convivente, a convivente;
b) a caracterização de uma convivência como união estável requer a simultaneidade de três requisitos: convivência duradoura, pública e contínua; convivência entre um homem e uma mulher e convivência estabelecida com objetivo de constituição de família.
c) a Lei nº 9.278 previu duas hipóteses de dissolução da convivência: rescisão ou morte;
d) a dissolução da convivência importa no dever de prestação alimentícia ao convivente que necessitar, respeitada a possibilidade do outro;
e) a união estável poder ser transformada em casamento mediante requerimento dos conviventes ao Oficial do Registro Civil competente;
f) a competência para conhecer e julgar as causas relativas
à convivência é das varas de família.
(1) Na linguagem popular, temos as seguintes denominações para a concubina: amante, amásia, amiga, arranjo, banda -de-esteira, barregã, camarada, caseira, china, comborça, espingarda, fêmea, gato, manceba, moça, murixaba, muruxaba, osso, puxavante, rapariga, sexta-feira. (cf. Dicionário Aurélio Eletrônico. Rio: Nova Fronteira, 1994.
(2) Pereira, Rodrigo da Cunha. Concubinato e União Estável. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, ps.12 e 38
(3) "Na união estável não existe o estado conjugal, mas, meramente, o esado convivencial". Álvaro Villaça, in União Estável - Antiga Forma de Casamento de Fato. IOB nº 17/94, p.334
(4) Campos, Diogo Leite de. Lições de Direito da Família e das Sucessões. Coimbra (Portugal): Almedina, 1990, p. 17.
(5) Na revista do IMB, Direito Concreto, nº 9, há uma sentença da minha autoria, de 1991, atribuindo a competência da vara de família para conhecer de questões envolvendo dissolução de sociedade de fato.