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O poder, o Estado, a moral: revisitando o fenômeno jurídico nas teorias de Marx e Durkheim

Agenda 05/12/2016 às 13:29

O que se propõe neste trabalho é fazer um recorte entre comparativo entre Karl Marx e Émile Durkheim e suas duas teorias sociológicas sobre o direito, projetando-as conta a luz da gênese do estado democrático contemporâneo.

1. RESUMO

Diferentes pontos de vista sobre a sociedade, implicam em diferentes visões acerca dos métodos de organização social, de modo que ao categorizar  o papel do estado e dos seus agentes burocráticos, os principais autores da teoria clássica atribuíram cargas valorativas distintas ao fenômeno jurídico – uma das expressões mais significativas do poder estatal de regular as relações sociais. De modo que o que se propõe neste trabalho é fazer um recorte entre comparativo entre Karl Marx e Émile Durkheim e suas duas teorias sociológicas que por vezes se mostram antagônicas, projetando-as conta a luz da gênese do estado democrático contemporâneo.

2. INTRODUÇÃO

Como autores inseridos em contextos históricos de profundas transformações no que entendemos por estados nacionais, tanto Durkheim quanto Marx compartilham visões que traduzem parte do espírito de seu tempo. Não é estranho pensar então que estas abordagens demonstram relações diferentes com a maneira de se pensar no estatuto jurídico, sempre um ponto de contenção quando se trata de explicitar os instrumentos de controle do estado.

Ainda que Marx não tenha detidamente tratado do que é o direito, se focando muito mais em como e porque a lei é criada do que o propósito para a existência de um sistema legal por si só, é possível extrair por entre as fissuras dos textos do autor alguns apontamentos sobre suas visões a respeito do direito em relação aos sistemas de reprodução de ideologia e das próprias relações de poder do estado, não é a toa que alguns teóricos marxistas do direito, buscaram esse significado imanente de como Marx enxergava o direito, e mais importantemente, como seria o seu “dever-ser”, tentando compatibilizar essas visões que soam um pouco conflitantes em um primeiro momento.

Por outro lado, o histórico mais acadêmico de Durkheim, inserido na universidade em uma época onde a sociologia era ensinada lado a lado a filosofia, história e direito, produziu uma visão mais apurada e direta do fenômeno jurídico, tanto é que a lei aparece de modo muito mais proeminente na bibliografia durkheimiana, sendo as questões sobre coercibilidade, anomia e punição “moedas correntes” no estudo da sociologia jurídica até os dias de hoje.

Deste modo, qualquer comparação entre os dois autores neste quesito não será necessariamente simétrica, uma vez que a produção material sobre o tema difere em seu escopo e pretensões em ambos os casos. Porém, a despeito do foco central na experiência coletiva nos dois autores, temos resultados que por vezes são diametralmente opostos, o que torna essa comparação um exercício interessante de reflexão sociológica.

Por fim, só é importante frisar que ainda que Max Weber seja uma figura extremamente proeminente no campo da sociologia jurídica, com uma compreensão muito mais precisa do fenômeno jurídico – justamente por ser também advogado, e seu “Economia e Sociedade” seja referenciado constantemente na compreensão do sistema legal-burocrático de dominação, preferiu-se limitar a comparação entre Marx e Durkheim para demonstrar as diferenças marcantes de perspectivas, a destarte de partirem de um ponto de partida similar – a primazia da coletividade sobre o individuo na construção da vivência social.

3. DESENVOLVIMENTO

Ainda que como elemento individual e descolado de seu contexto o direito seja vazio de significado, existem poucas instituições tão representativas de uma realidade social quanto suas leis. O ordenamento jurídico é ao mesmo tempo expressão de expectativas morais, de uma relação de dominação e poder a partir do estado e um instrumento de transformação social bastante incisivo e capaz de agir pontualmente sobre os grupos e os fenômenos sociais.

Porém, de um lado inverso, existe um dialogo interdisciplinar muito limitado no que tange o estudo da sociologia e o estudo do direito, ainda mais quando se trata de estabelecer uma base conceitual vinda das teorias clássicas, onde seus autores – que mesmo constantemente falando sobre o fenômeno jurídico ainda são tratados pelos juristas unicamente como “coisas da sociologia“.

Do lado da sociologia neste debate, por vezes as vezes falta a realização de que tratar de moral, estado e poder se incorre necessariamente a passagem pelo direito, o elemento de conjunção destes três temas. Assim, ao tratarmos de teorias clássicas muito se defende que a sociologia do direito não constitui um tema em apartado do estudo sociológico, mas parte de uma teoria geral da sociedade, como exprimem as palavras de Wolfgang Schluchter;

“For both Émile Durkheim and Max Weber, law is primarily a precondition of the constitution of social life which is to be elucidated within the framework of general social theory, and only secondarily an institutional realm to which this general social theory is bound to be applied.”[1].

Ao apresentar comparativamente as visões enunciadas por Durkheim e Marx a respeito do direito, tenta-se resgatar um pouco desse esforço de interdisciplinaridade, mostrando como estes são campos que estão em constante cruzamento – ou até mesmo em choque, poderiam alguns dizer, ao mesmo tempo que se enfatizam as diferenças em proposições teóricas que dão especial atenção a manifestações do coletivo, cuja atuação despersonalizada sobre o sujeito geralmente se dá justamente por meio de leis e normas burocráticas.

Em um segundo momento, essa análise também busca colocar estas concepções de encontro com uma nova realidade nacional bastante distinta do que a descrita por Marx e Durkheim durante o século XIX, observando em que pontos estes conceitos ainda permanecem coerentes com nossa realidade, e onde representavam apenas reflexos de um sistema politico-jurídico há tempos superado pelas constantes transformações sociais, tão abundantes durante o transcurso do século XX.

3.1  DURKHEIM E O DIREITO: A COERÇÃO E A SOLIDARIEDADE SOCIAL.

Se hoje existe uma sociologia voltada as ciências jurídicas, muito se deve a Émile Durkheim. Como já explicitado anteriormente, Durkheim viveu e produziu em meio a uma época em que as distinções entre o direito, a filosofia, a história e as recém-nascidas ciências sociais eram muito mais tênues, e muitos dos seus trabalhos mais importantes, como “A Divisão do Trabalho Social” de 1893, tratam de temas que tangem ou trespassam diretamente o direito, além de inúmeras contribuições posteriores nos Année Sociologique, como por exemplo as “Duas Leis da Evolução Penal“ de 1900.

Pode-se dizer que a primeira relação em esquematizar o direito dentro de um sistema de compreensão das regras sociais vem justamente com “A Divisão do Trabalho Social”.

Inicialmente Durkheim parte do ponto de vista dos fenômenos morais em sua tentativa de delinear os processos de solidariedade social, indo de encontro a problemática clara de que os fatores morais pertencem de um certo modo a esfera do subjetivo e imaterial, havendo-se de buscar uma forma de capturar a essência destes processos a partir dos seus efeitos sensíveis, a solução encontrada é considerar o direito como símbolo visível da solidariedade social,

Sobre este ponto, explica o próprio Durkheim:

“A solidariedade social, porém, é um fenômeno totalmente moral, que, por si, não se presta à observação exata, nem, sobretudo, à medida. Para proceder tanto a essa classificação quanto a essa comparação, é necessário, portanto, substituir o fato interno que nos escapa por um fato externo que o simbolize e estudar o primeiro através do segundo. Esse símbolo visível é o direito. De fato, onde existe a solidariedade social, apesar de seu caráter imaterial, ela não permanece no estado de pura potencialidade, mas manifesta sua presença através de efeitos sensíveis.”[2]

Neste ponto já conseguimos compreender a posição de qual parte Durkheim que o fenômeno jurídico está intrinsecamente ligado a argumentos de reprodução de formas de solidariedade social, e suas expressões materiais por sua vez, variam de acordo com a tipologia da solidariedade. Deste modo, através da compreensão do tipo de direito que uma sociedade exibe, é possível também classificar o tipo de solidariedade refletida nas suas práticas jurídicas[3].

Do mesmo jeito, podemos relacionar o conceito de direito para o autor com as manifestações as quais ele chama de uma consciência coletiva, em que existem certos conceitos morais compartilhados socialmente, traduzidos pelo coletivo na forma de costumes ou de leis, tal qual como Schluchter sintetiza ao dizer que: “The rules of law indeed ultimately represent simply those ideas and sentiments that are recognized by members of a society as desirable and considered as obligatory, because they are for them exemplar.[4]

Deste raciocínio conseguimos passar para o próximo passo que leva a compreensão pelo menos parcial do que o direito representa para a obra durkheimniana, ao questionarmos o porque dele ter sido eleito pelo autor como marco das relações de solidariedade. A resposta está justamente nos processos de coercibilidade que fundamentam a teoria do fato social proposto por Durkheim em seu livro “As Regras do Método Sociológico”.

Uma das pedras de toque da teoria de Durkheim é justamente seu conceito de fato social, a qual dedica o primeiro capítulo das “Regras”, para o autor, se constitui um fato social aquele externo ao indivíduo, capaz de o compelir por coerção e dotado de generalidade. Ao observarmos, ainda que superficialmente estes atributos, conseguimos compreender que para Durkheim o direito se encaixa nestas categorias com extrema clareza, não apenas sendo capaz de coagir o indivíduo, mas literalmente tendo sido desenvolvido com tal tarefa em mente, de modo que se poderia atribuir como função originária do direito, participar nos processos de manutenção da coesão social.

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Sobre a coerção, Durkheim até mesmo enfatiza: “A presença de coerção é facilmente discernível quando se manifesta externamente por uma reação direta da sociedade, como é o caso do direito, da moral, das crenças e costumes ou até mesmo da moda”[5].

Assim podemos retornar ao ponto anterior, em que diferentes formas de coerção representariam diferentes processos de solidariedade social, e como o direito serviria de indicador para tal comparação, fato tão importante a composição desta ideia que o sociólogo francês dedica boa parte da sua explicação inicial sobre os processos de solidariedade discutindo justamente as formas jurídicas e suas relações neste contexto.

Partindo inicialmente do conceito de solidariedade mecânica – ou seja, aquela que segundo Durkheim se baseia nas similitudes e é característica das sociedades pré-industriais, temos uma predominância muito forte do direito como sistema de repressão dos atos, muitas vezes ligado a instituições de cunho religioso e moral, em que não exatamente se declara uma obrigação através da observação do fato jurídico, mas se impõe uma pena ou sanção a conduta desviante e que ameaça a coesão social.

Ou melhor dizendo, que aparenta ameaçar a coesão social, pois o próprio Durkheim admite que a natureza do sentimento de ofensa ao social é variável e muitas vezes a valoratividade dada ao crime não se relaciona diretamente com a sua capacidade dissociativa– como por exemplo manipulações no mercado de ações, cujas consequências sociais podem ser bem mais destrutivas do que um homicídio, porém, a despeito desse potencial de afetar a coletividade, estes crimes são punidos de modo bem mais brando.[6]

Por outro lado, a transformação de uma sociedade pré-industrial para uma com uma forte divisão social do trabalho desloca o papel do direito de um processo expiatório para um processo de restauração do status quo, passando também a ser de responsabilidade do estado nacional, que começa a regular também as condutas a nível de obrigações de prestação, não apenas como crimes – nesta categoria se encontram os direitos contratuais, sucessórios, constitucionais e comerciais, ligados a esfera cível.

Para Durkheim, ainda que se possa defender que este tipo de direito “nada tinha de propriamente social, mas se reduzia ao conciliador dos interesses privados” [7], essa mudança demonstra que a sociedade passou a servir de mediadora desinteressada entre as partes, demonstrando que uma divisão intensa do trabalho social foi capaz de reduzir as interações diretas entre os indivíduos, surgindo o estado como mediador dessas relações.

Disso se extrai também que este processo é sinal de uma “solidariedade negativa” porque não integra diferentes parcelas da sociedade, mas acaba definindo barreiras muito nítidas entre os indivíduos, que realizam concessões dos seus direitos de agir para viver em sociedade. Essa perspectiva só se sustenta se pensarmos que existia uma solidariedade positiva posta de antemão, e estes sacrifícios recíprocos denotariam a transformação de uma sociedade que se fundamenta não pela similaridade, mas pela diferença entre suas partes, transformando o grupo em um sistema coeso e orgânico de partes interdependentes.

Assim, podemos sintetizar através da simples proposição de que um direito retributivo – expresso especialmente nas vias do direito penal, estaria ligado a formas de solidariedade mecânica e um direito restitutivo – expresso por dispositivos de direito civil e comercial, estaria presente conforme a divisão de trabalho tornasse a solidariedade orgânica.

Por óbvio, apesar de ser um indicador extremamente útil para Durkheim, o direito não era capaz de explicar todas e quaisquer sociedades em suas formas de solidariedade, uma vez que nem todas as sociedades possuem um direito sistematizado ou algo que possa ser chamado de uma regra jurídica per se, ou no pior dos casos, quando há uma dissonância entre a regra jurídica e os costumes, provocada pela incapacidade do direito em se adequar a realidade social, acaba se produzindo uma situação de anomia.

Porém, Durkheim trata isso como uma exceção a regra, ao dizer que:

“(…) essa oposição só se produz em circunstâncias totalmente excepcionais. Para isso é preciso que o direito não corresponda mais ao presente estado da sociedade e que, não obstante, ele se mantenha, sem razão de ser, pela força do hábito. Com efeito nesse caso, as novas relações que se estabelecem apesar dele não deixam de se organizar, pois elas não podem mesmo durar sem procurar se consolidar (...) Normalmente, os costumes não se opõem ao direito, mas, ao contrário, são sua base.[8]

De modo que então, para Durkheim ainda que se possa “haver tipos de solidariedade social que tão-somente os costumes manifestam, esses tipos são bastante secundários; ao contrário, o direito reproduz todos os que são essenciais, e são eles os únicos que precisamos conhecer”[9].

Certamente esse esquema não esgota a produção de Durkheim a respeito do tema, suas questões sobre a natureza da pena, tal como tópicos mais sistemáticos da sociologia jurídica, como a diferença de racionalidade por trás da common law e a civil law, são recorrentes em sua obra, demonstrando-se assim então a grande ênfase dada pelo autor na compreensão do fenômeno jurídico como parte integrante de sua teoria sociológica, onde o direito surge como produtor e produto das relações sociais, ligado intrinsecamente com os processos que permitem a vida harmônica do individuo em sociedade.

3.2  MARX E O DIREITO: SUPERESTRUTURA, IDEOLOGIA E DOMINAÇÃO.

Enquanto Émile Durkheim apresenta uma visão bastante desenvolvida do fenômeno jurídico, os apontamento de Marx são decididamente mais breves e transversais a esta questão, ou seja, se perguntarmos se existe uma teoria do direito sistematizada em Marx, a resposta provavelmente será negativa. Porém, tendo em vista o histórico intelectual de Marx, trata-se de um sido uma opção intelectual do autor, que em seus estudos trabalhou sobre as decisões jurisprudenciais das cortes alemãs e sobretudo sobre a “Filosofia do Direito“ de Hegel.

Não é a toa que muitos dos esforços em conciliar o pensamento marxista com a sociologia jurídica não partam diretamente da obra de Marx, mas de uma tentativa de extrapolar questões básicas de seu pensamento ao campo jurídico, tentando transformar este pretenso instrumento de dominação em uma práxis revolucionária, ainda assim, o legado direto do autor é bastante limitado nestas questões, apesar das fronteiras de sua produção serem decididamente amplas.

Mas o que se tem em Marx então, é terminantemente uma crítica ao direito estatal burguês, relacionando este fenômeno com as condições materiais de evolução histórica, em contraste poderíamos pensar a partir de Marx (mas não explicitamente por Marx) como se desenvolveriam as relações jurídicas fora da sociedade capitalista.

Isso porque Marx não considera o fenômeno político-jurídico posto de modo relativamente independente, ou pelo menos ligado intrinsecamente as formas primárias de organização social, mas sim, como um reflexo das condições materiais de existência, como ele exprime na sua “Contribuição à Crítica Da Economia Política”:

“As relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades.”[10]

Sistematizando a partir desses raciocínios, poderíamos dizer então que para Marx o direito assume três diferentes facetas; de um lado existe um fenômeno jurídico que organiza, constitui e reproduz as relações de produção material no capitalismo, e do outro temos um direito que propriamente faz parte da superestrutura moral e que se exprime como ideologia (esta no sentido mais pejorativo proposto por Marx) – por exclusão, se esvaziarmos o conteúdo classista desses outros dois fenômenos, podemos exprimir como seria um direito para além das relações de classe – qual seja em uma sociedade comunista.

Para compreender estes dois primeiros itens, devemos buscar então as relações que Marx faz para com o estado e a economia e como o direito se expressa nesse jogo de forças.

Do “Manifesto Comunista”, ainda que dotado de certas imprecisões de conceito com as obras mais analíticas de Marx – uma vez que trata-se de uma obra com um teor muito mais político do que por exemplo “O Capital“, se extrai o tom simplificado da visão de Marx sobre o estado burguês de sua época, através da já conhecida frase: “O Governo do Estado moderno é apenas um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia.”[11]

Deste raciocínio retiramos a primeira forma, que o direto que emana de uma classe burguesa consiste em mecanismos de reprodução do sistema de produção, voltados a manutenção dos interesses da burguesia como um todo. Os mecanismos legais seriam portanto, expressões do interesses de  classe, ou como Marx e Engels apontam, ao falar com seu imaginário interlocutor burguês:

“Vossas próprias ideias são apenas uma decorrência do regime burguês de produção e de propriedade, assim como vosso direito é apenas a vontade de vossa classe erigida em lei, vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições de existência de vossa classe”[12]

É um ponto que emana também para a segunda faceta, em que o direito não serve apenas as condições materiais de existência do sistema de produção, mas também tem seu conteúdo ideológico dentro da superestrutura.

Uma maneira de demonstrar essa afirmação e mostrando que para Marx o conteúdo do discurso jurídico pode ser afetado por posições ideológicas – o que efetivamente foi alvo de sua crítica nos seus estudos das jurisprudências nas cortes alemãs, em que por exemplo uma demanda político-jurídica vinda da sociedade (como a diminuição de impostos), pode ser motivada por uma visão distorcida da realidade, como por exemplo, uma falsa percepção dos reais interesses de uma classe econômica.

Essa distorção pode ser motivada pelo simples desconhecimento, por uma falsa consciência de classe ou até mesmo pela manipulação das percepções pelas classes dominantes, porém em todos os casos, o discurso jurídico foi afetado por relações de ideologia, produzindo resultados que tem conteúdos de pretensão moral que por sua vez, produzem ideologia.

Neste sentido, até as lutas por direitos seriam “formas ilusórias“ de luta de classes, incapazes de alterar concretamente a situação do proletariado, como enfatiza Marx ao dizer que:

“Todas as lutas no interior do Estado, a luta entre democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc., não são mais do que formas ilusórias – em geral, a forma ilusória da comunidade - nas quais são travadas as lutas reais entre as diferentes classes”[13]

A partir daí, podemos ver que para Marx, uma das principais funções do direito é obscurecer as relações de poder, pois, ainda que a pretensão do direito seja de neutralidade, as condições materiais desiguais tornam a equanimidade uma ilusão envolta na ideologia, criando uma falsa percepção a respeito dos fins do direito.

Essa proposição é ainda mais enfática se pensarmos no contexto que Marx operava, onde o direito era o garantidor da liberdade de contratar, havendo uma imensa disparidade de poderes entre contratados e contratantes, não existindo consideração do direito burguês por tal assimetria, ou como diria Engels: “the power given to one party by its different class position, the pressure it exercises on the other-the real economic position of both-all this is no concern of the law.[14]

Por outro lado, o que sobra do direito após o “fenecimento” – usando o termo empregado por Engels, do estado burguês sustentado pelo sistema capitalista? Da obra de Marx – sobretudo da “Crítica ao Programa de Gotha” se extrai que o judiciário como instituição e as funções burocráticas do aparelho estatal deixariam de existir, dando lugar a órgãos administrativos dos interesses do proletariado.

Porém, o desaparecimento do judiciário não representa necessariamente o desaparecimento do direito, isso porque ainda que não existam mais os conflitos gerados pelas lutas de classe, ainda existem certos ditames morais a serem realçados pelo direito, aos quais o processo revolucionário não pode prever, resultados apenas da vivência no estado comunista, ou seja, tal como existe uma moral própria a sociedade comunista, haveria de existir um direito igualmente próprio a estas condições de organização da sociedade.

Isso porque a ideologia e a moral seriam igualmente produtos de uma conjuntura histórica e econômica, e a moral revolucionaria não e exatamente a moral do estado comunista, como enfatiza Engels.

“In a society in which all motives for stealing have been done away with, in which therefore at the very most only lunatics would ever steal, how the preacher of morals would be laughed at who tried solemnly to proclaim the eternal truth: Thou shalt not steal!

We therefore reject every attempt to impose on us any moral dogma whatsoever as an eternal, ultimate and forever immutable ethical law on the pretext that the moral world, too, has its permanent principles which stand above history and the differences between nations. We maintain on the contrary that all moral theories have been hitherto the product, in the last analysis, of the eco­nomic conditions of society obtaining at the time.”[15]

De modo que apesar de existir uma incompatibilidade bastante forte do pensamento marxista com as instituições jurídicas burguesas, não existe um óbice a pensar na existência do direito como organizador das atividades sociais fora do sistema de classe. Porém, para isso ele teria de se desprender de sua carga ideológica e das instituições que o ancoram no estado capitalista. Uma tarefa especialmente complicada, na visão do autor, uma vez que ao menos no período histórico observado por Marx durante sua vida, as leis e o estado pouco faziam além de perpetuar sistemas de propriedade e exploração das classes trabalhadoras.

3.3  MARX E DURKHEIM NA SOCIOLOGIA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA.

Tendo visto alguns pontos centrais do fenômeno jurídico através da ótica de Marx e Durkheim, é possível se perguntar: o direito que temos hoje ainda é o direito observado por estes dois autores?

Para responder essa questão, se faz uma análise bastante breve da recepção do pensamento destes teóricos tanto na sociologia quanto no direito contemporâneo, acompanhando-se as questões de fundo histórico que marcaram o desenvolvimento destas teorias através deste último século, tal como sua recepção por outras correntes sociológicas mais recentes.

3.3.1  Marx e o direito: perspectivas contemporâneas

Marx talvez seja o caso mais complicado dentre os dois autores, uma vez que ao contrário de Durkheim, que muito colaborou na sistematização do fenômeno jurídico dentro de uma teoria sociológica, Marx se preocupou muito mais com uma crítica material as instituições jurídicas. Assim, é perceptível  um certo ceticismo do autor em acreditar na possibilidade de um estado democrático de direito e em um sistema de leis que propicie ao menos bases para uma igualdade que supere a esfera do formal.

Em um contexto de severa exploração do trabalhador europeu, em que quaisquer tentativas de estabelecer uma legislação trabalhista foram infrutíferas até o ano de 1833 (e ainda depois de sua promulgação, a efetividade destas leis foi por muitos anos bastante limitada), a severidade da análise de Marx se torna mais compreensível.

Como expõe Karl Popper:

“Em vista de tais experiências, não é mister admirar-nos de que Marx não tivesse muito elevada opinião do liberalismo e que visse na democracia parlamentar nada mais que uma velha ditadura da burguesia. É fácil era para ele interpretar esses fatos como apoiando sua análise das relações entre o sistema legal e o social. De acordo com o sistema legal, a igualdade e a liberdade estavam estabelecidas, pelo menos aproximadamente. Mas, que significava isso, na realidade? Não devemos, realmente, censurar Marx por insistir em que só os fatos econômicos são “reais” e que o sistema legal pode ser mera “superestrutura”, capa dessa realidade e instrumento da dominação de classe.”[16]

Sua visão, poderíamos dizer até mesmo pessimista, sobre o direito levou a busca de formas de compatibilizar a práxis revolucionária com formas mais estruturadas de mudança do social através da atuação do estado, sobretudo na Rússia soviética. Neste contexto, Evgeni Pachukanis produziu o seu “Teoria Geral do Direito e Marxismo“ em uma realidade onde segundo o próprio autor, “os marxistas se mostravam céticos até mesmo quanto a existência de uma teoria geral do direito“[17].

Porém,  Pachukanis, tal como em certa ordem, Piotr Stutchka, tentaram “desvendar” o fenômeno jurídico não a partir dos apontamentos de Marx em concreto, mas na busca desse significado imanente do que o direito deveria significar nos processos de luta de classe, muito mais no “dever-ser” do que no seu estado presente, para além do legalismo e das formas jurídicas consolidadas, raciocino que perdura em boa parte dos autores de uma sociologia do direito que nutrem certo apreço por Marx.

Após os anos 1970 tivemos uma forte ressurgência das teorias críticas do direito com uma base marxista ou ao menos com fortes diálogos para com Marx, em vista da existência de condições materiais de democracia que permitiram uma atuação mais direta das instituições legais sobre a vida social, resultado de processos mais intensos de organização da sociedade civil. Assim, ainda que possamos considerar a produção de Marx datada quando tratamos empiricamente sobre o fenômeno jurídico, ela ainda se encontra muito presente nas bases de certas correntes da sociologia do direito.

Ou seja, o que se extrai é que apesar da brevidade e tangencialidade da análise de Marx sobre o direito, produto de uma conjuntura politico-jurídico específica, há quem se esforce para trazer significado as teorias marxistas dentro de um contexto contemporâneo, ainda que com diferentes graus de sucesso e fidelidade ao pensamento original do autor.

3.3.2  Durkheim e o direito: perspectivas contemporâneas

Ainda que não tão debatido no mundo anglófono, e portanto um pouco deslocado das discussões que ocorrem no campo da common law, Durkheim permanece sendo uma importante referência para a sociologia jurídica continental.

Saído de outro contexto histórico e político, Durkheim conserva uma visão mais otimista das instituições, quer seja do estado ou do direito, contrastando com Marx que considerava o estado como um agente para a manutenção de interesses de classe, Durkheim mantém uma posição mais próxima ao que consideramos com o Estado de Direito, onde a função destes órgãos é promover a justiça e proteger o individuo, atuando através de poderes restritos e limitados pela atuação social.[18]

Essa noção de “freios e contrapesos”, herdado do pensamento de Montesquieu e endossado por Durkheim, ainda permanece forte na cultura jurídica contemporânea, e é uma das bases do pensamento constitucional moderno, empregado em boa parte das culturas jurídicas pelo globo.

Como o esforço de Durkheim foi mais sistemático, existiram possibilidades mais concretas de analisar e colocar suas teorias a respeito do direito a prova, como por exemplo, muitas de suas teorias que tratavam sobre a natureza das penas em uma sociedade – como é o caso da “transformação qualitativa” das penas, que segundo ele passaria de uma racionalidade retributiva para uma restitutiva conforme a sociedade se tornasse mais complexa, prosseguindo em direção a solidariedade orgânica através da divisão do trabalho.

Essa teoria foi revisitada e analisada por diversas correntes da criminologia, teóricos como Steven Spitzer em sua teoria da delinquência, tentam refutar Durkheim diretamente, outros como Rusche & Kirchheimer em “Punição e Estrutura Social” e até mesmo Michel Foucault com seu “Vigiar e Punir“ dialogam diretamente com essa noção inaugurada por Durkheim que relaciona a transformação das penas a estrutura social e seus fatores econômicos, políticos e ideológicos – conceito bastante provocativo em sua época..

Sua relação entre formas de solidariedade e tipologias jurídicas, ainda que não incontestes, foram trabalhadas por pesquisadores mais contemporâneos como Barry Schwartz e Dorwin Cartwright, que nos anos 1970 analisaram empiricamente as formas jurídicas de comunidades com diferentes graus de solidariedade a partir dos modelos propostos por Durkheim, ajudando a fomentar questões sobre pluralidade jurídica, outro tema bastante debatido na atualidade.

O que conseguimos perceber através destes breves exemplos é que a visão societária de Durkheim envelheceu relativamente bem no século XX. As contestações ao seus modelos teóricos de nada subtraem a importância de algumas de suas ideias dentro da sociologia do direito, pelo contrario, mantém vivo o debate sobre tais temas e promovem reflexões acerca de problemáticas ainda atuais ao estado da ciência contemporânea.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de que nos dias de hoje poucos se arriscam a tentar sistematizar grandes teorias sociais holísticas, ainda há espaço para algumas categorizações propostas pelas teorias sociológicas clássicas. Mesmo que não possamos toma-las em seu valor nominal em nossa conjuntura atual, as teorias de Marx e Durkheim ainda oferecem dados interessantes para pensar alguns fenômenos intrínsecos da vida em sociedade.

O direito, tratado com mais ou menos profundidade por estes autores, é uma destas categorias das quais valem a pena serem revisitadas, uma vez que existe uma crescente jurisdicionalização dos problemas sociais e ainda estamos longe de resolver um pretenso afastamento dos juristas do mundo dos fatos, de modo que uma leitura interdisciplinar pode servir como um aporte útil para ambas as áreas de conhecimento.

A visão dos dois autores aqui apresentados não poderiam ser mais distintas, enquanto Marx compreendia o direito de modo até mesmo derrogatório, a partir de sua visão de estado burguês, Durkheim parecia ter um pouco mais de fé na possibilidade das leis servirem para algo além da opressão do indivíduo – vista a previsão de que as penas se tornariam mais brandas conforme a sociedade “progredisse”, mesmo assim, ele não descartava completamente o teor de intenso controle e das relações de poder a qual este processo estava estabelecido.

Isso torna essas reflexões especialmente importantes, pois mesmo no aparente dissenso existem pontos de convergência. O direito inegavelmente emana de relações de poder, e sua relação com o social nem sempre é amigável e isso não pode ser perdido de vista, alerta especialmente relevante aos juristas, que muitas vezes se isolam dentro do seu campo de saber sem perceber as maneiras com que ele se correlaciona com a vida em sociedade, tal como a responsabilidade que estes fatos incorrem.

Mesmo que de modo algum este trabalho consiga dar conta de apresentar as questões desenvolvidas por estes autores sobre o direito em sua integralidade, ele pode servir para apresentar e sistematizar alguns pontos de importância dentro do raciocínio destas teorias, demonstrando ao menos que é impossível esquadrinhar uma moldura onde nossa sociedade se encaixa sem levar em conta o fenômeno jurídico, para o bem ou para o mal.

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[1] SCHLUCHTER, W. The sociology of law as an empirical theory of validity 2002 p. 538

[2] DURKHEIM, E. A Divisão do Trabalho Social. 1999. p.31

[3] Ao observar o esforço desprendido por Durkheim, percebemos a ênfase que ele dá no uso do direito como indicador concreto da solidariedade, ao dizer que: “Nosso método já está traçado, pois. Uma vez que o direito reproduz as formas principais da solidariedade social, só nos resta classificar as diferentes espécies de direito para descobrirmos, em seguida, quais são as diferentes espécies de solidariedade social que correspondem a elas” (Ibid. p.35)

[4] SCHLUCHTER, W. Op. Cit. p. 539

[5] DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. 2007. p.10

[6] Sobre isso Cf. DURKHEIM, E. Op. Cit. 1999. pp 41-48.

[7] Ibid. p. 88

[8] Ibid. p. 33

[9] Idem.

[10] MARX, K. Uma contribuição à crítica da economia política. 2008. p.47

[11] MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. 1999. p.28

[12] Ibid. p 42

[13] MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. 2007. p.37

[14] ENGELS, F. The Origin of the Family, Private Property and the State. 2004 p.79

[15] ENGELS, F. Anti-Dühring. In; TUCKER, R. The Marx-Engels Reader. 1978 p. 726

[16] POPPER, K. A sociedade aberta e seus inimigos – Tomo 2. 1987. p. 129

[17] PACHUKANIS, E. Teoria Geral do Direito e Marxismo. 1988. p.7

[18] Essa visão de Durkheim fica bastante clara em um pequeno artigo de sua autoria, denominado L’Etat, onde diz, a respeito do estado: Il n'en reste que, dans les sociétés complexes, il est l'instrument nécessaire parlequel se réalise l'égalité et, par conséquent, la justice. (DURKHEIM, E. L’Etat. 1958 p.7)

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Trabalho inicialmente elaborado como atividade formativa do programa de pós-graduação em sociologia da UFPR.

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