1. Introdução
No paradigma atual do constitucionalismo, não só no Brasil como em todo o mundo, é imprescindível compreender o conceito basilar dos direitos fundamentais – prerrogativas principiológicas que visam resguardar os interesses dos seres humanos e garantir-lhes condições de vida dignas. Representam o resultado de um longo histórico de evolução da sociedade humana, bem como de sua busca pelos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade que viriam a ganhar tanta importância à luz da Revolução Francesa.
Hoje, entende-se o próprio Estado como uma organização voltada para proteger e garantir esses direitos que permitem que todos coabitem harmonicamente em comunidade – um longo caminho percorrido desde os primórdios onde uma única figura centralizava todo o poder nas mãos e detinha o direito de ditar tudo aquilo que era justo ou válido. Como ensina Ferreira Filho (2005, p. 31):
O Estado contemporâneo nasce, como se viu, de uma filosofia política que o justifica exatamente pela necessidade de dar proteção dos direitos fundamentais. Lembre-se o art. 2º da Declaração de 1789: “O fim de qualquer associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do Homem.”
Com toda sua importância vital e inquestionável na estrutura de nosso Direito pós-moderno, não pode se falar, contudo, que os direitos fundamentais representam um sistema completamente perfeito e livre de certos percalços em sua aplicação. Quando transportados para casos concretos específicos, eles por vezes atritam entre si – mais de um deles pode ser aplicado à situação, porém antagonicamente, e, não havendo hierarquia entre eles, faz-se necessário ponderar aquele que melhor se adequa à busca dos resultados mais benéficos.
Entrementes, antes de delongar-nos a respeito do funcionamento dos direitos fundamentais no mundo à nossa volta, é preciso primeiro notar rapidamente algumas distinções terminológicas imprescindíveis e, em seguida, interessante refazer os passos dos direitos fundamentais, buscar a essência do conceito e sua evolução ao longo das eras.
2. Terminologia
2.1. Princípios e regras
A Constituição brasileira revela-se num sistema normativo composto de regras e de princípios, a aplicação dos dois ocorrendo de forma distinta, embora sejam ambos considerados de igual importância para o ordenamento. Assevera Barroso (2003, p. 338) em sua obra:
Normalmente, as regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já os princípios têm maior teor de abstração e incidem sobre uma pluralidade de situações. Inexiste hierarquia entre ambas as categorias, à vista do princípio da unidade da Constituição.
As regras, como exposto, têm um caráter mais preciso do que os princípios. Incide aqui, como leciona Canotilho (1992, p. 642), a lógica do “tudo ou nada”: simplesmente, ou a regra se aplica ao caso apreciado ou não. Em caso de mais de uma regra apresentar-se ajustada ao caso, porém sendo elas incompatíveis entre si, verificam-se os critérios apontados por Bobbio (1999, p. 91 a 96): o cronológico, o hierárquico e o de especialidade.
Os princípios, nas palavras de Bonavides (1997, p. 260), são “valores fundamentais, governam a Constituição, a ordem jurídica”; considera o autor que eles representam o próprio Direito. Contrariamente às regras, mostram-se mais abstratos e notoriamente desprovidos de uma hierarquia interna, sendo considerados igualmente válidos. Destarte, é preciso que se analise os princípios aplicados a cada caso em particular, sopesando-se quais têm maior peso considerando-se as circunstâncias específicas da ocasião em voga; mais adiante no artigo, trataremos com mais detalhes das resoluções para o choque entre princípios.
2.2. Direitos fundamentais e direitos humanos
Os direitos humanos e os direitos fundamentais são caracterizados por sua natureza princpiológica e sua finalidade de proteger os interesses dos seres humanos, tanto como indivíduos quanto como coletividade. A diferença entre ambos reside, na realidade, numa simples questão de abrangência de sua aplicação.
Nas palavras de Sarlet (2006, p. 35 e 36):
O termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos do direito internacional.
3. A evolução histórica dos direitos fundamentais
Os direitos fundamentais não foram resultado instantâneo de uma iluminação divina, prontos para a aplicação imediata de seu surgimento em diante. Como posto por Bobbio (1992, p. 6): “os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer.” À medida que a sociedade evoluiu e se organizou, buscou proteger as premissas fundamentais de cada indivíduo, com o sistema de direitos fundamentais expandindo-se ao passo em que novas necessidades tornavam-se proeminentes. No presente momento, fala-se em três grandes gerações ou dimensões, com alguns autores apontando o surgimento de novos direitos fundamentais pertencentes a ainda outras.
Originalmente, empregava-se o termo “gerações” para denominar os diferentes grupos históricos desses princípios; no presente, de diferente modo, prefere-se utilizar a expressão “dimensões”, visto que “uma nova ‘dimensão’ não abandonaria as conquistas da ‘dimensão’ anterior e, assim, a expressão se mostraria mais adequada nesse sentido de proibição de evolução reacionária” (LENZA, 2012, p. 958).
Antes mesmo da ascensão do conceito e sua classificação em dimensões, contudo, já é possível perceber raízes históricas do que viriam a se tornar os direitos fundamentais, tão antigas quanto algumas sociedades clássicas.
3.1. Antiguidade e Idade Média
É possível notar já na Grécia Antiga traços do que viria a ser a essência dos direitos em questão: na peça Antígona, a personagem-título descumpre ordens expressas do governante Creonte ao enterrar seu irmão, mas justifica sua ação afirmando haver uma justiça superior à dos homens, que não pode ser impedida pelas leis mundanas. Apesar de estar mais associada à argumentação do jusnaturalismo, a passagem demonstra que já se ponderava, então, existirem direitos pessoais que não podiam ser violados mesmo pelo direito positivo.
Também há no período clássico uma contribuição do cristianismo; como ensina Jorge Miranda (2000, p. 17), é essa a religião que surge pregando que “todos os seres humanos, só por o serem e sem a acepção de condições, são considerados pessoas dotadas de um eminente valor”. O ser humano passa a ser visto como uma entidade criada à imagem e semelhança de Deus e, portanto, todos os membros da espécie possuem em comum essa essência, dotada de uma dignidade intrínseca.
No medievo, documentos como a Magna Carta, outorgada pelo rei João Sem-Terra, começaram a reconhecer certos direitos – Comparato (2003, p. 79 e 80) cita princípios importantes como o reconhecimento das liberdades eclesiásticas (primeiro prenúncio da futura separação entre Estado e igreja), bases para o tribunal do júri, a liberdade de ir e vir e a necessidade da anuência dos contribuintes para o estabelecimento de impostos. Além disso, foram determinadas características muito importantes da justiça do Estado, desassociando-a da figura do monarca: a cláusula 39 desvincula da pessoa do monarca a lei e a jurisdição; Comparato cita o tratado: “Os homens livres devem ser julgados pelos seus pares e de acordo com a lei da terra.” Também se deve destacar as cláusulas 17 e 40:
Nas cláusulas 17 e 40, reconhece-se que o monarca não é dono da justiça, mas que esta constitui, em sua essência, uma função de interesse público. Até então, a fórmula executória dos julgados era literalmente vendida aos demandantes pelos oficiais régios. A partir da Magna Carta reconhece-se, portanto, que o rei tem um poder-dever de fazer justiça, assim que solicitado pelos seus súditos. (COMPARATO, 2003, p. 80)
3.2. As três dimensões modernas
A Idade Moderna trouxe consigo significantes mudanças para o mundo. O poder antes fragmentado tornou-se novamente central, a ascensão da razão e da ciência e a perda de espaço da fé religiosa, e importantes movimentos revolucionários em busca de direitos.
Deve-se enfatizar, entre eles, a Revolução Francesa, cujos ideais básicos de liberdade, igualdade e fraternidade acabaram se tornando as palavras-chave para as três grandes dimensões dos direitos fundamentais (respectivamente, primeira, segunda e terceira). A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada então pela Assembleia Geral das Nações Unidas, foi um marco inolvidável, afirmando a universalidade dos direitos fundamentais e que qualquer sociedade que não os garanta não possui realmente uma Constituição.
3.2.1. Primeira dimensão
Os direitos de primeira dimensão têm como foco a liberdade do indivíduo em face do Estado – nas palavras de Bonavides (1997, p. 563), “os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é o seu traço mais característico.”
Araujo e Nunes Júnior (2005, p. 116) dispõem sobre o tema:
Trata-se de direitos que representavam uma ideologia de afastamento do Estado das relações individuais e sociais. O Estado deveria ser apenas o guardião das liberdades, permanecendo longe de qualquer interferência no relacionamento social. São as chamadas ‘liberdades públicas negativas’ ou ‘direitos negativos’, pois exigem do Estado um comportamento de abstenção.
Em suma, os direitos classificados nesta categoria buscam resguardar a liberdade individual, restringindo o poder de interferência do Estado na autonomia pessoal; são direitos de resistência ou oposição do indivíduo em face do Estado.
3.2.2. Segunda dimensão
A segunda geração surgiu na época da Revolução Industrial, em resposta à busca dos operários por seus direitos trabalhistas, melhores condições de trabalho e assistência. Tratam-se de princípios calcados na ideia da igualdade, buscando o bem-estar social e representando uma “evidenciação dos direitos sociais, culturais e econômicos, bem como dos direitos coletivos” (LENZA, 2012, p. 959).
Enquanto a primeira dimensão impunha que o Estado desempenhasse um agir negativo, abster-se de interferir, a segunda requer que ele atue diretamente a fim de certificar-se de que os direitos que dela fazem parte sejam garantidos a todos. Como posto por Ferreira Filho (2005, p. 50):
Na Constituição brasileira de 1988 isso é cristalino. O texto afirma “dever do Estado” propiciar a proteção à saúde (art. 196), à educação (art. 205), à cultura (art. 215), ao lazer, pelo desporto (art. 217), pelo turismo (art. 180) etc. Igualmente o direito ao trabalho que se garante pelo socorro da previdência social ao desempregado (art. 201, IV).
3.2.3. Terceira dimensão
A terceira dimensão dos direitos fundamentais surge mais recentemente e refere-se a preocupações características da pós-modernidade:
Na verdade, a consciência de novos desafios, não mais à vida e à liberdade, mas especialmente à qualidade de vida e à solidariedade entre os seres humanos de todas as raças ou nações, redundou no surgimento de uma nova geração – a terceira – dos direitos fundamentais. (FERREIRA FILHO, 2005, p. 57)
Incorporando, portanto, o terceiro ideal da Revolução Francesa, a fraternidade, a terceira dimensão garante “o direito à paz, o direito ao desenvolvimento, o direito ao meio ambiente e o direito ao patrimônio comum da humanidade” (FERREIRA FILHO, 2005, p. 58) – ressaltando também o autor que há quem inclua o direito à autodeterminação dos povos e à comunicação nesta classificação. Bonavides (1997, p. 593) disputa a inclusão do direito à paz nesta dimensão, defendendo que seja tratado à parte.
Note-se que os direitos de terceira dimensão não se concentram no ser humano como indivíduo, mas sim na coletividade da espécie.
3.3. Dimensões posteriores
Há autores que defendem a existência de dimensões posteriores às três já mencionadas. Bobbio (1992, p. 6), levando em consideração os avanços na pesquisa biológica e genética, defende que os direitos do indivíduo com relação a seu material genético, cada vez mais aberto a manipulações, caracterizar-se-iam como uma quarta geração dos direitos fundamentais.
Bonavides (1997, p. 593) defende a existência de uma quarta e quinta dimensões, embora discorde de Bobbio com relação aos direitos tutelados por aquela. De acordo com seus ensinamentos, a quarta geração dos direitos fundamentais refere-se à “globalização política na esfera da normatividade”, incluindo, entre outros, direito à democracia; enquanto isso, a quinta dimensão seria o direito à paz, que o doutrinador defende ser importante a ponto de merecer ser tratado como uma dimensão à parte.
4. Colisão de direitos fundamentais
Os direitos fundamentais têm caráter principiológico – em decorrência disso, não são absolutos e tampouco taxativos. Os princípios não se apresentam de forma explícita e isolada; muitas vezes, apenas analisando o caso e suas características é que podemos entender qual direito fundamental está sendo suprimido. A existência de vários interesses não-conciliados em cada contenda e a variedade ideológica reunida pela Constituição também abrem a possibilidade para uma colisão entre direitos fundamentais, sendo necessário decidir-se qual deverá “pesar mais”.
De início, é preciso visualizar no que consistem a proporcionalidade e a ponderação, a base da resolução do encontro entre princípios constitucionais quando não é possível aplicá-los harmonicamente ou determinar uma subsunção pelos critérios comuns. Em seguida, será feita uma análise de situações concretas a fim de melhor compreender os choques entre determinados direitos e, inclusive, como o Supremo Tribunal Federal soluciona tais demandas.
4.1. Proporcionalidade e ponderação
A proporcionalidade é uma técnica usada para a resolução de uma colisão de direitos fundamentais; define Karl Larenz (1997, p. 587) que “é um método de desenvolvimento do Direito que se presta a solucionar colisões de normas, bem como para determinar as esferas de aplicação das normas que se entrecruzam e, com isso, concretizar direitos cujo âmbito ficou aberto.”
Considerando-se a ausência de uma hierarquia no âmbito dos direitos fundamentais, a única forma de resolver um impasse é buscando qual valor ou qual bem se quer tutelar no caso específico a ser analisado, sopesando-se, assim, o direito que melhor se adéqua a ele – o mais “proporcional”. Vale ressaltar que os direitos fundamentais não são absolutos, podendo um ser restringido se a intenção for garantir a proteção de outro. Na opinião de Alexy (2008, p. 116), “a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade, e essa implica aquela.”
De acordo com a doutrina brasileira, inspirada na alemã, a proporcionalidade depende de três aspectos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A respeito disso, discorre Cristóvam (2010, p. 7) que o meio escolhido deve ser pertinente para atingir o resultado que se deseja (adequação); que a decisão tomada, dentre as possíveis, deve ser aquela que causar menos prejuízo aos envolvidos ou à coletividade (necessidade); que a medida precisa ser justificável, que o direito que se busca proteger deve ter, para o caso, mais peso do que os que foram afastados (proporcionalidade em sentido estrito), critério averiguado através da técnica da ponderação.
A ponderação é a técnica utilizada para resolver os casos em que não se pode empregar os requisitos comuns de solução de colisão de normas (hierarquia, especialidade, cronologia). Requer que se veja o caso trabalhado através da ótica da proporcionalidade, considerando os diversos princípios constitucionais – nesta ocasião, os direitos fundamentais – que incidem sobre as circunstâncias e decidindo aqueles que têm um maior peso para a melhor satisfação dos interesses em voga, afastando a aplicação dos princípios que se chocam.
O problema encontrado por alguns teóricos é que, inevitavelmente, um princípio básico sempre deixará de ser cumprido, mesmo que em parte, quando aplicada a técnica da ponderação, por mais que não seja esquecido. Como posto por Marmelstein (2008, p. 394):
Talvez seja justamente aí que reside o grande problema da ponderação: inevitavelmente, haverá descumprimento parcial ou total de alguma norma constitucional. Quando duas normas constitucionais colidem, fatalmente o juiz decidirá qual a que ‘vale menos’ para ser sacrificada naquele caso concreto.
Por esse motivo, autores como o próprio Marmelstein defendem que a ponderação só deve ocorrer depois de esgotadas as tentativas de harmonização de princípios, buscando o máximo possível aproveitar todas as normas que se apresentem compatíveis com a questão debatida.
4.2. Exemplos de casos concretos
4.2.1. Caso HC 82.442/RS
Para abordar o tema dos direitos fundamentais, é de extrema importância a análise de casos concretos da aplicação dos mesmos. Como primeiro exemplo, o caso de Siegfried Ellwanger chegou ao Supremo Tribunal Federal por um habeas corpus impetrado em decorrência de publicações de obras com conteúdo anti-semita. Havia em seu livro uma série de valorações acerca dos judeus, e se questionava se seria possível limitar a liberdade de expressão devido ao conteúdo emblemático do livro. Estavam então em conflito dois direitos fundamentais: o da liberdade de expressão e o da dignidade do povo judaico.
Para o ministro Gilmar Mendes, o conteúdo da obra não fazia uma releitura histórica dos fatos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, mas agregava sim uma carga valorativa negativa sobre os judeus. Para esse ministro, era evidente que a obra propagava o ódio contra eles. Para outro ministro, Marco Aurélio, o direito à liberdade, que é um dos maiores pilares do Estado democrático de Direito, cria um ambiente em que se estimula a discussão de ideias contrapostas e, por isso, é fundamental no processo de formação do pensamento da sociedade, não podendo, dessa forma, ser suprimido.
Para o ministro Celso de Mello, não há aqui um conflito de direitos, visto que não é aceitável a publicação de qualquer tipo de obras que possam ir contra a dignidade do homem. Logo, o autor não teria o real direito de publicar o livro, posto que o conteúdo da obra é, por si só, uma afronta a princípios fundamentais do Estado brasileiro. Nelson Jobim pensa de igual modo, argumentando a favor da supremacia da dignidade da pessoa humana sobre a liberdade de expressão.
Outros ministros buscam em argumentos diversos contrapor os pontos estabelecidos por seus companheiros. Moreira Alves acredita que deve ser feita uma interpretação restritiva da Constituição e, com isso, entende que o crime de racismo não se estende a outros grupos que não sejam os negros.
Na opinião de Ayres Britto, a liberdade de pensamento e de expressão é uma característica fundamental de um Estado democrático de Direito. Para ele, a livre difusão de ideias se faz necessária, mesmo que se trate de uma obra que, em seu pensamento, seja um pouco “quixotesca” e não agregue muito conhecimento. No seu raciocínio, o modo mais correto de repreensão à obra se faria pela própria opinião pública, e não mediante censura.
Como outro argumento, afirma que a publicação do livro ocorreu antes da publicação da Lei Federal de número 8.081, de 21 de setembro de 1990, art. Número 20 adicionado à lei penal número 7.716/89, que estabelece que: “Praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, religião, etnia ou precedência nacional. Pena de dois a cinco anos”. Portanto, pelo princípio da legalidade, como não havia ainda lei que regulasse essa prática, não haveria crime.
Marco Aurélio sustenta ainda, como Moreira Alves, que deve ser feita uma interpretação restritiva da Constituição e, com isso, a imprescritibilidade dada à discriminação racista não se estenderia para este caso. A importância dessa interpretação restritiva é justamente para que não haja um tipo penal aberto, sujeito a adequação circunstancial, que poderia ocasionar uma abrangência exacerbada do crime. Desse modo, todas as condutas que não se compatibilizem com o prescrito na Constituição serão reguladas por leis infraconstitucionais. Com isso, o ato delituoso já havia prescrito.
Embora a técnica da ponderação nos pareça a mais razoável medida para se chegar a soluções em que direitos fundamentais entram em choque, é possível observar que nem sempre é adotada, pelo menos de forma explícita, pelos ministros na sua tomada de decisão. Alguns ministros buscaram soluções fora da colisão de princípios constitucionais, como no caso da interpretação restritiva, do decaimento do delito e do princípio da reserva legal, o que nos mostra outros caminhos para a resolução desse tipo de conflito.
Houve ainda o argumento de Nelson Jobim, que afirmou que haveria uma supremacia inata de um princípio pelo outro, asseverando que a liberdade de expressão nunca poderia se sobrepor à dignidade da pessoa humana. Surge então o questionamento: a dignidade da pessoa humana seria, automaticamente, uma superior hierárquica aos demais princípios? Para responder a esse questionamento, devemos analisar outros casos e suas respectivas decisões para que, com base em uma jurisprudência, possamos entender a relação que há entre esses direitos.
Vimos aqui que a liberdade de expressão entrou em conflito com o princípio da dignidade da pessoa e observamos os argumentos defendidos pelos ministros. A seguir, trataremos sobre outro caso e a sua fundamentação.
4.2.2. Caso HC 71373-4
Investigação de paternidade. Nesse caso, o fato jurídico é o pedido de um filho para que seja realizado um exame de sangue a fim da aferição da paternidade. O suposto pai recusa-se a realizar o exame. Como a justiça resolve essa contenda? O filho possui direito a sua real identidade, enquanto o presumido pai é titular de direito à intimidade e à honra.
Francisco Rezek, o relator do caso, elenca uma série de argumentos que justificam a feitura do exame. Para ele, o filho possui direito à identidade, que nada mais seria do que uma forma de garantir a sua dignidade. Além disso, afirma que o ordenamento jurídico brasileiro vem adotando uma série de garantias e direitos para o grupo das crianças e dos adolescentes, o que mostra que a proteção dos direitos dessa categoria vem sendo buscada com veemência na atualidade. Assevera ainda que, diante das tecnologias e métodos científicos modernos, a aferição da paternidade tornou-se mais facilmente acessível, vendo nisso mais um motivo para prevalecer o direito buscado pelo filho.
Para contrapor o direito que o presumido pai tem sobre sua integridade física, Rezek exemplifica que a vacinação obrigatória também é rejeitada por uma parcela da sociedade, mas nem por isso perde sua obrigatoriedade. Para ele, o direito do filho, considerando-se ainda, como dito, os meios de pesquisa que podem levar a uma maior certeza da paternidade, não pode ser “barrado” pelo direito do pai.
Para Marco Aurélio, dar maior importância ao direito à identidade do filho que o direito à integridade física do pai seria o mesmo que forçá-lo fisicamente a realizar o exame, o que, a seu ver, seria um ato de violência não permitido pela ordem constitucional. Os principais argumentos que utiliza são: existem outros meios de se comprovar a paternidade; para que haja inspeção do corpo, é preciso que haja o consentimento (princípio da privacidade), apontado pelo ministro Néri da Silveira; não existe nenhuma lei que estabeleça o exame de DNA como obrigatório (princípio da dignidade).
Como decisão, ficou resolvido que o direito à integridade física, intimidade e honra prevalecem nesse caso concreto; logo, o suposto pai não fica obrigado a realizar o exame, muito embora sua recusa valha como prova de sua paternidade.
Nesse caso, é possível perceber que há um claro conflito de direitos: de certa forma, considerando-se a abrangência do conceito de dignidade da pessoa humana, pode-se dizer que colidem o direito à dignidade do pai e o direito à dignidade do filho, desdobrando-se aqui em direito à integridade física, à honra, à real identidade, à intimidade, etc. Aqui, sopesaram-se os valores e os resultados da garantia dos direitos de ambas as partes.
Caso se houvesse favorecido o filho e concedido seu direito contestado, o único bônus seria o grau de certeza da paternidade, enquanto que surgiria o ônus de forçar o pai a realizar o exame, afastando uma série de direitos seus. Assim sendo, a decisão tomada não impediu o filho de ter garantido seu direito à identidade; apenas privou-o de ter sua identidade confirmada por um determinado método. Novamente, a ponderação foi fundamental para a resolução do conflito, embora a técnica não tenha sido expressamente citada.
4.2.3. Caso Rcl 2040
Nesse caso, a cantora mexicana Gloria Trevi, acusada de crimes em seu país de origem, fora presa no Brasil e encontrava-se em vias de ser extraditada. O grande fato é que, durante seu encarceramento, engravidou – e, de acordo com a própria, que não prestou queixa, a gravidez teria sido fruto de um estupro carcerário. De logo, procurou-se saber quem poderia ter cometido tal delito através da análise de DNA dos 61 homens que poderiam tê-la estuprado (50 policiais e 11 detentos e ex-detentos) e da placenta da suposta vítima. Problema: Gloria não queria a realização do exame. Alegava que, com isso, teria sua dignidade ferida.
Gloria argumentou que era ela a mãe e que, como pessoa humana, cabia a ela decidir se deveria ser feito ou não o exame para o conhecimento da paternidade. Além disso, afirmava que coletar seu material genético ou de seu filho sem o seu consentimento seria uma afronta aos seus direitos à intimidade e à vida privada, ambos garantidos na Constituição Federal. Por fim, argumentou que a jurisprudência lhe era favorável e citou o exemplo do caso HC 71373-4.
Em contrapartida, inúmeros argumentos a favor da realização do exame surgiram. Somente com a realização do exame de DNA seria possível a confirmação do suposto estuprador; todos os outros envolvidos já haviam se comprometido com a realização do exame; a credibilidade das instituições brasileiras estava em xeque, visto que a mídia levou o caso ao conhecimento público; interesses internacionais em questão, a relação Brasil e México; a honra e a dignidade de 61 pessoas sendo questionadas, o que acarreta em prejuízo imensurável para cada uma delas.
Para o ministro relator do caso, Néri da Silveira, a jurisprudência anterior não pode servir de fundamento para a não-realização do exame nesse caso, pois não haveria realização de exame forçado – nos casos anteriores, o exame a ser realizado seria de sangue, com a real “invasão” do corpo, enquanto neste, seria utilizado material genético da placenta, considerada lixo após o parto.
Além disso, o ministro afirma que nos casos anteriores houve recusa na coleta de DNA por ferir não o direito à intimidade, mas sim a dignidade da pessoa humana, o que não ocorreria no caso em questão, uma vez que a placenta seria descartada. Na sua argumentação, o ministro explica a necessidade de fundamentar sua decisão através de um método racional, motivo pelo qual explica a doutrina da ponderação de valores e a emprega para solucionar o caso.
Nesse caso, apenas o ministro Marco Aurélio votou contra a realização do exame, usando os mesmos argumentos que utilizou nas suas decisões anteriores: embora a placenta seja considerada lixo, não pode ser usada para nenhum fim que possa levar ao desrespeito à dignidade da pessoa humana. Entretanto, dessa vez seu voto foi vencido pelo restante.
Pode-se perceber que, para este caso, o argumento que prevaleceu foi o de que o direito à dignidade de Gloria Trevi não podia se sobressair ao direito à honra e à dignidade dos mais de sessenta envolvidos no escândalo. Aqui, diferindo dos casos anteriores, a dignidade da suposta vítima não seria afetada em quase nada, visto que seu corpo não seria exposto a nenhuma forma de agressão para a aferição da paternidade. Além disso, como viria a ser descoberto após o resultado do exame, todo o caso de estupro havia sido orquestrado por Gloria e seu empresário Sergio Andrade, sendo a gravidez fruto de uma relação entre os dois. Mais uma vez, adotou-se a técnica da ponderação para se chegar ao resultado final – embora, neste caso, a mesma tenha sido expressamente mencionada na argumentação.