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A administração pública e o terceiro setor

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Agenda 18/05/2017 às 14:50

A dicotomia público-privado vem sendo relativizada. Assiste-se ao fenômeno da fuga para o direito privado. A Administração Pública vem ganhando contornos empresariais, passando a preocupar-se com o controle dos resultados, em prestígio à eficiência.

Resumo:  A dicotomia público-privado, cada vez mais, vem sendo relativizada. Assiste-se a um fenômeno que se convencionou chamar de “a fuga para o direito privado”. Neste contexto, a Administração Pública contemporânea ganha contornos empresariais, passando a preocupar-se com o controle dos resultados, em prestígio à eficiência. Assim, partindo-se do pressuposto de que o setor público não-estatal pode atuar de maneira mais eficiente, passam-se para as mãos da sociedade civil os serviços não exclusivos do Estado, onde não se faz necessário o uso do Poder do Estado. A atuação estatal passa a ser de fomento e regulação dessas atividades. Nesta seara, crescem as parcerias público-privadas[1], dentre as quais as efetivadas com as entidades do Terceiro Setor. Enfim, a relação entre a Administração Pública e o Terceiro Setor é uma realidade, de sorte que começam a surgir questionamentos, dúvidas, que incumbem ao jurista dirimir. Um desses problemas, ponto crucial do estudo, relaciona-se com a necessidade ou não de licitação nas contratações empreendidas com e pelas as entidades do Terceiro Setor.

Palavra-Chave – Administração Pública. Descentralização. Parcerias Público-Privadas. Terceiro Setor. Licitação.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Fundamento e Conceito de Terceiro Setor. 1.1. Breve Contexto Histórico. 1.2 Princípios Norteadores da Administração Pública Gerencial. 1.2.1 Princípio da Subsidiariedade. 1.2.2 Princípio da Participação. 1.2.3 Princípio da Autonomia. 1.2.4. Princípio da Profissionalização. 1.2.5. Princípio da Transparência. 1.2.6 Princípio da Consensualidade. 1.3 Principais Fundamentos do Terceiro Setor: O Princípio da Subsidiariedade e o Fomento. 1.4 A relação do Terceiro Setor com a Administração Pública. 1.5 O Conceito de Terceiro Setor. 1.5.1 A exigência de finalidade pública. 1.5.2 A expressão “paraestatal” e o Terceiro Setor. 1.5.3 O conceito de Terceiro Setor. 2. As Entidades do Terceiro Setor. 2.1 A divergência sobre quais entidades compõem o Terceiro Setor. 2.2 Serviços Sociais Autônomos (Sistema “S”). 2.2.1 Serviço Social Autônomo criado antes da Constituição da República de 1988 e o Serviço Social Autônomo criado após a Constituição da República de 1988: diferenças? 2.3.Organizações Sociais – OS e organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP. 2.3.1. O Contrato de Gestão e o Termo de Parceria. 2.3.2. Outros aspectos dos regimes jurídicos das organizações sociais e das organizações da sociedade civil de interesse público. 2.4 Entidades de Apoio. 3. O Terceiro Setor e as Licitações. 3.1 As Licitações. 3.2. Serviço Social Autônomo e Licitação. 3.3. Organizações Sociais, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público e Licitação. 3.3.1 A escolha das entidades para receberem a qualificação de OS e de OSCIP. 3.3.2. A escolha das OS e das OSCIP’s para celebrarem contrato de gestão ou termo de parceria com o Poder Público. 3.3.3. A contratação realizada por OS e OSCIP’s com utilização de recursos públicos. 3.3.4. A contratação pela Administração Pública de OS e OSCIP’s (sem ser para celebração de contratos de gestão e termos de parceria). 3.4 Entidades de Apoio e Licitação. 4. Conclusão.


1 FUNDAMENTOS E CONCEITO DE TERCEIRO SETOR

1.1 BREVE CONTEXTO HISTÓRICO

Antes de conceituarmos o Terceiro Setor e explicitarmos os seus fundamentos, é necessário analisar brevemente o contexto histórico da existência das entidades do Terceiro Setor.

Com efeito, o surgimento das entidades do Terceiro Setor, bem como das agências reguladoras, ocorreu em função da crise do Estado brasileiro, incapaz de, sozinho, satisfazer as necessidades coletivas da população.[2]

Com o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, o Governo Fernando Henrique Cardoso evidenciou a preocupação com a mudança do Estado burocrático para um Estado gerencial.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao tratar da evolução da administração pública, aponta três fases: (i) administração regaliana, do absolutismo, onde prevalecia o interesse do rei, (ii) administração burocrática, do estatismo, em que passou a prevalecer o interesse do Estado, (iii) administração gerencial, da democracia, onde prevalece o interesse da sociedade. Acrescenta que a transição da administração burocrática para a administração gerencial, no Brasil, iniciou-se antes de finalizada a mudança da administração regaliana para a burocrática, vez que, segundo ele, “as atividades e comportamentos do Estado-administrador continuam aferrados a conceitos e princípios do patrimonialismo, do paternalismo e do assistencialismo personalizantes e ineficientes.”[3]

Em que pese a crítica acima referida, o fato é que a transição do Estado burocrático para o gerencial, no Brasil, chamada de reforma administrativa, iniciou-se pautada em duas etapas: primeiro foram feitas reformas constitucionais (Emenda Constitucional 19/1998) e posteriormente começou uma etapa legislativa ordinária, ainda inconclusa.[4]

O Estado gerencial é aquele preocupado com os resultados e com o atendimento dos interesses da sociedade. Para alcançar tais misteres, o Estado afasta-se de determinadas atividades, assumindo, muitas vezes, um papel regulatório. Enfim, o Estado gerencial é mais eficaz. Ao tratar da reforma administrativa, explica Silvia Faber Torres que ela é “consistente na substituição de um modelo burocrático de gestão, que se concentra no processo e se caracteriza por ser lenta, cara e orientada para si mesma e não para o administrado, por um modelo gerencial, direcionado aos resultados e ao cidadão.”[5]

Neste contexto, ensina Paulo Modesto:

Não prover diretamente o serviço não quer dizer tornar-se irresponsável perante essas necessidades sociais básicas. Não se trata de reduzir o Estado a mero ente regulador. O Estado apenas regulador é o Estado Mínimo, utopia conservadora insustentável ante as desigualdades das sociedades atuais. Não é este o Estado que se espera resulte das reformas em curso em todo o mundo. O Estado deve ser regulador e promotor dos serviços sociais básicos e econômicos estratégicos.[6]

Diante desta tendência do Estado em se tornar predominantemente, mas não exclusivamente, regulador, passou-se a estimular a atuação de particulares que colaborem com a administração pública. Destarte, o Terceiro Setor vem crescendo e se fortalecendo no Brasil.[7]

1.2 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL

Conforme explicitado, o florescimento do terceiro setor tem como raízes a transição da administração burocrática para a gerencial (reforma administrativa). Destarte, mister adentrarmos no estudo dos princípios norteadores do Estado gerencial.

Leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto que a partir dos princípios da eficiência e da legitimidade surgiram novos princípios fundantes do novo conceito de Administração Pública. Sustenta que esses novos princípios podem ser classificados em três ordens: políticos, técnicos e jurídicos.[8]

Dentre os princípios políticos inserem-se o princípio da subsidiariedade e o princípio da participação; na ordem dos princípios técnicos há os princípios da autonomia e da profissionalização; e, finalmente, dentre os princípios jurídicos colocam-se o princípio da transparência e o princípio da consensualidade.[9]

Passa-se, agora, à análise dos referidos princípios.

1.2.1 Princípio da subsidiariedade

O princípio da subsidiariedade remonta à doutrina social da Igreja Católica, tendo sido expressamente previsto na Encíclica Quagragesimo Anno do Papa Pio XI (1931). [10]

Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o referido princípio “diz respeito à relação entre níveis de concentração de poder e respectivos níveis de interesses a serem satisfeitos.”[11]

Pode-se constatar no princípio uma dimensão externa e uma interna.

Pela dimensão externa[12] do princípio da subsidiariedade dá-se primazia ao indivíduo, a quem se reconhece o direito e a prioridade de atuação em busca da satisfação de seus interesses. Em segundo lugar, cabe aos grupos intermédios a satisfação de seus interesses coletivos. E, finalmente, compete à sociedade civil como um todo a atuação em prol de seus interesses gerais. Destarte, o Estado somente atuará quando a sociedade não puder fazê-lo em função da necessidade do exercício da coação. Assim, somente se transfere às entidades públicas aquelas atividades que, por sua natureza ou complexidade, demandem a ação imperativa do Estado.[13][14]

Na dimensão interna ou política do princípio da subsidiariedade, tem-se que, na atuação estatal, a primazia é do ente local (no federalismo brasileiro, os Municípios), que se encontra mais próximo da sociedade, tendo, portanto, melhores condições de conhecer e atender às suas necessidades; quando as decisões e ações locais forem insuficientes, as demandas passam para o ente regional (no Brasil, os Estados); por fim, atuará o ente nacional (no caso brasileiro, a União), quando os entes regionais não puderem agir eficientemente. Assim, os Municípios são competentes para os assuntos de interesse local, os Estados para os de interesse regional e a União para os de interesse nacional. [15]

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Com efeito, o princípio da subsidiariedade espraia-se para fora das fronteiras nacionais, de sorte que “a atuação dos Estados soberanos deverá preferir sempre à entidades inter e supranacionais, que só deverão agir quando as entidades políticas nacionais não tenham condições de satisfazer certos interesses gerais que transcendam sua capacidade de ação.”[16]

Percebe-se, pois, que o Estado subsidiário cria uma verdadeira cadeia de subsidiariedade.[17]

Dessa forma, sustenta Silvia Faber Torres que a Administração Pública contemporânea deve, cada vez mais, utilizar-se da subsidiariedade “com vistas a assumir um papel mais restrito – porém não minimalista – de mediador, criando condições para que os homens realizem adequadamente seus fins, com o que se propiciará uma relação estável entre o poder público e a sociedade.”[18]

1.2.2 Princípio da participação

Num contexto de democracia participativa, é essencial a participação dos administrados nas decisões do poder público que influirão em sua esfera de interesses.

É importante ressaltar que a participação dos cidadãos, através de variados instrumentos, tais como o referendo, o plebiscito, a iniciativa popular, o recall[19],legitima a atuação estatal, que certamente será cumprida com mais facilidade pelos administrados, vez que terá maior aceitação social.[20]

1.2.3 Princípio da autonomia

O princípio da autonomia confere flexibilidade a entidades e órgãos para que adequem suas funções às necessidades de gestão da coisa pública.[21]

Essa flexibilidade permite maior eficiência e economicidade, o que seria impensável no seio de um Estado burocrático, onde há a necessidade de observâncias de padrões rígidos e burocratizados.

Conforme leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “esta nova concepção parte da fixação prévia da finalidade para determinar-se a partir de um âmbito de competência, invertendo a visão clássica, que partia da fixação da competência para referi-la a uma certa finalidade.”[22]

Neste contexto, amplia-se a autonomia de gestão de entes da Administração Pública e estende-se a autonomia a entes para e extraestatais.[23]

O princípio da autonomia é aplicado além da estrutura do Estado, por meio das transferências de execução das atividades estatais a entes da sociedade, com fins ao atendimento dos interesses públicos.[24]

Convém ressaltar que as referidas transferências operam-se apenas quanto ao exercício, vez que a titularidade estatal conferida pelo ordenamento jurídico é indisponível, indelegável.[25]

Ganha importância nesta seara a figura das entidades intermédias, que serão analisadas adiante.

1.2.4 Princípio da profissionalização

Com arrimo na doutrina de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, podem-se apontar duas razões que determinam uma gestão profissional em detrimento de uma gestão burocrática: (i) a necessidade de a Administração atuar em searas que exijam cada vez mais conhecimentos técnicos, onde praticamente não há escolhas políticas, (ii) a necessidade de que a Administração não se conforme em utilizar-se de recursos humanos (pessoal) menos qualificados que os das entidades privadas.[26]

O princípio da profissionalização encontra-se intimamente ligado ao princípio da eficiência, afastando, por conseguinte, a desnecessária burocratização do seio das entidades públicas. Vale citar as palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto segundo o qual, o princípio da profissionalização

afasta qualquer burocratização de entidade ou órgão público além do mínimo indispensável para o cumprimento das suas tarefas de rotina, ou seja, o desempenho das atividades-meio. De resto, todas as atividades devem ser necessariamente orientadas pela atividade-fim, ou seja, pela finalidade.[27]

1.2.5 Princípio da transparência

A atuação transparente da Administração Pública permite a efetivação do controle estatal – realizado pela própria Administração Pública e pelos demais Poderes – e do controle social – empreendido pelas entidades da sociedade civil e pelos cidadãos.[28]

De fato, na medida em que permite a realização dos dois tipos de controle referidos, o princípio da transparência é veículo de efetivação dos princípios da participação e da impessoalidade.

Num contexto de democracia participativa e de Estado gerencial, a transparência da ação estatal é fundamental para a legitimação de seus atos.

1.2.6 Princípio da consensualidade

Pelo princípio da consensualidade, a atuação da Administração Pública em relação à sociedade, sempre que possível, deve pautar-se pelo consenso, em detrimento da imperatividade.[29]

A idéia é mudar a mentalidade da Administração Pública. Durante muito tempo a Administração se pautou no ato administrativo; a atuação era impositiva. Hoje, o ato administrativo anda ao lado dos contratos administrativos e outros atos jurídicos; a Administração tem buscado ouvir o particular e ajustar suas vontades. Saímos de uma Administração Pública impositiva e vamos para uma Administração Pública consensual, cuja atuação é pautada pela participação cada vez maior dos administrados.

Insta salientar que a Administração Pública pode ser exercida por subordinação ou por coordenação. Nas sempre elucidativas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

A Administração Pública subordinativa é unilateral, hierarquizada e linear, sendo suas manifestações tradicionais praticamente esgotadas, enquanto a Administração Pública coordenativa é multilateral, equiordinada e radial, apresentando manifestações sempre novas e em plena expansão.[30]

Como manifestação da consensualidade, difunde-se a atuação da Administração Pública por meio de pactos: contratos e acordos. A principal diferença entre essas figuras é que os contratos pressupõem prestações recíprocas, com vistas ao atendimento dos distintos interesses dos contratantes, ao passo que nos acordos, as prestações são integrativas, objetivando alcançar o interesse comum. [31]

A consensualidade já começa a se tornar uma realidade na Administração Pública e deve, cada vez mais, ser buscada, uma vez que torna as normas e decisões mais aceitáveis e obedecidas, simplifica a gestão estatal, facilita o controle contra abusos, dentre inúmeros outros benefícios.

1.3 PRINCIPAIS FUNDAMENTOS DO TERCEIRO SETOR: O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE E O FOMENTO

Dentre os principais fundamentos do Terceiro Setor, destacam-se o princípio da subsidiariedade (já estudado) e o fomento.

A idéia de subsidiariedade estatal se dá tanto na ordem econômica (arts. 173 e 174 da Constituição da República), como na ordem social.[32] Interessa para o presente estudo a aplicação do princípio da subsidiariedade na ordem social.

A chamada reforma da sociedade caracteriza-se pela transformação da mentalidade da sociedade que, atuando de forma cooperativa e solidária, passa a assumir a tarefa de coesão social.[33] O princípio da subsidiariedade, por sua vez, é um dos pilares da referida reforma. O Estado subsidiário, conforme já explicitado, deixa de atuar em alguns setores, permitindo e encorajando a atuação da própria sociedade civil organizada.

Neste contexto, ganham importância as entidades intermédias. Cumpre, neste diapasão, trazer à baila as lições de Silvia Faber Torres, pela sua clareza e síntese:

(...) as entidades intermédias, que integram a sociedade pluralista e se colocam entre o indivíduo e o Estado, consistem em verdadeira garantia da liberdade frente ao poder público centralizador e autoritário. Elas não são comunidades políticas, porquanto não fazem parte do governo, mas tampouco são privadas. São, ao revés, realidades sociais formadoras do corpo político do Estado, que têm reconhecidas suas esferas de competências próprias, cujo desempenho vem tendo sua relevância ampliada a cada dia.[34]

Diogo de Figueiredo Moreira Neto, por sua vez, ao tratar das entidades intermédias, afirma que:

(...) a expressão abrange tanto os entes intermédios criados pela sociedade para cuidar de problemas derivados da existência desses novos interesses coletivos e difusos, quanto os que possam ser criados pelo próprio Estado, para atuar, por delegação, mais proximamente das comunidades diretamente interessadas, podendo, deste modo, tanto se apresentarem como entes nascidos da própria esfera do Estado, como a ele aderir, como entes privados delegatários de cometimentos públicos, tudo com um amplo arco de opções, desde os entes mais próximos aos mais afastados do Estado, conforme seja necessário para atingir o máximo de eficiência e de efetividade na ação de colaboração.[35]

Dentre as entidades intermédias, por sua vez, encontram-se as entidades do Terceiro Setor.

Com efeito, a subsidiariedade confere autonomia aos entes do Terceiro Setor em face da ação estatal; assim, o Terceiro Setor pode atuar em prol do interesse público, que deixou de ser monopólio estatal. Abre-se, pois, espaço ao público não-estatal, devendo o Estado garantir a atuação dos entes intermédios.[36]

Quando o Terceiro Setor age, o Estado economiza recursos, que serão empregados em outros setores, e as necessidades da população são igualmente atendidas. Cada vez mais, então, o Estado se utiliza da atuação de particulares para o atendimento do interesse público.

Neste sentido, é necessária a colaboração do Estado para a atuação das entidades do Terceiro Setor. Isto é feito através da atividade de fomento.

Para a análise do tema, faz-se preciso uma curta digressão: Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao classificar as atividades da Administração Pública quanto à natureza dos interesses, fala em administração extroversa e em administração introversa.[37]

A administração pública introversa ou interna é aquela atividade administrativa interna, que diz respeito ao dia-a-dia da Administração Pública. Refere-se à gestão de pessoal, bens e serviços internos da Administração Pública. Ou seja, a administração introversa preocupa-se com os próprios interesses institucionais da Administração Pública, com a sua atividade-meio (interesses públicos secundários).[38]

A administração pública extroversa ou externa refere-se às atividades típicas do Estado prestadas para os particulares em geral, pelo próprio Estado ou por seus delegados. Isto é, a administração pública extroversa é caracterizada pela satisfação das atividades-fim da Administração Pública.[39]

Segundo a classificação de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, são cinco as atividades que compõem a administração pública extroversa, quais sejam: o exercício da polícia, a prestação de serviços públicos, o ordenamento social, o ordenamento econômico e a prestação de fomento público. [40] No presente estudo, tratar-se-á do fomento público, por ser um dos fundamentos do Terceiro Setor.

O ilustre administrativista brasileiro conceitua o fomento público como

a função administrativa através da qual o Estado ou seus delegados estimulam ou incentivam, direta, imediata e concretamente, a iniciativa dos administrados ou de outras entidades públicas e privadas, para que estas desempenhem ou estimulem, por seu turno, as atividades que a lei haja considerado de interesse público para o desenvolvimento integral e harmonioso da sociedade.[41]

Para fins didáticos, o citado professor divide o estudo do fomento público em quatro seções: planejamento estatal, fomento social, fomento econômico e fomento institucional.[42]

O fomento público social é o que ocorre no caso dos serviços sociais autônomos[43], enquanto o fomento público institucional é o inaugurado pelas Leis nº 9.637/1998 – referente às organizações sociais – e nº 9.760/1999 – que disciplina as organizações da sociedade civil de interesse público.[44]

Através do fomento, o Estado auxilia a atuação do Terceiro Setor, sem, contudo, substituí-lo.[45]

É interessante ressaltar que o fomento é um dos instrumentos da subsidiariedade “pelos quais se garantem os sensíveis valores que lhes são intrínsecos, entre eles a justiça e a liberdade, com estimular a sociedade para que, ela própria, realize os interesses que lhes correspondem e promova, assim, o interesse público.”[46]

Com efeito, a atividade de fomento alicerça-se no fato de que a sociedade pode atuar de modo a satisfazer os interesses públicos, e essa atuação merece ser incentivada e subsidiada.[47] É interessante para o Estado estimular a atuação do particular porque, caso este deixe de satisfazer os interesses públicos, o Estado terá que fazê-lo, o que importará em dispêndios orçamentários (que são escassos), em necessidade de recursos humanos (pessoal), etc.

Finalmente, cumpre explicitar que a atividade de fomento pode ser realizada por diversos meios, dentre os quais isenções fiscais, subvenções, desembolso efetivo, dentre outros instrumentos. De todo modo, o fomento deve ser realizado dentro dos limites da razoabilidade e excepcionalidade, “sob pena, de um lado, de tornar-se um privilégio injustificado em favor de alguns grupos sociais e, de outro, de manter a sociedade sob a dependência constante do poder público.”[48]

1.4 A RELAÇÃO DO TERCEIRO SETOR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A doutrina administrativista em geral, ao tratar do tema do Terceiro Setor, ensina que ele coexiste com o Primeiro e o Segundo Setores.[49] Com efeito, o Primeiro Setor é o Estado, o Segundo Setor é o mercado, enquanto o Terceiro Setor é composto por entidades privadas sem fins lucrativos e de fins públicos.[50]

É importante salientar, conforme Fernando Borges Mânica, que o requisito da ausência de finalidade lucrativa não é suficiente para enquadrar uma entidade no Terceiro Setor; é essencial que a entidade tenha finalidade pública[51], como veremos em seguida.

Pela análise desta simples classificação já resta claro que o Terceiro Setor não faz parte do Estado, não integra a Administração Pública. Entretanto, é essencial delimitarmos a relação existente entre a Administração Pública e o Terceiro Setor. É o que se passa a fazer.

A Administração Pública pode ser subdividida em Direta e Indireta. A Administração Pública Direta brasileira é formada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, “a Administração Direta é o conjunto de órgãos que integram as pessoas federativas, aos quais foi atribuída a competência para o exercício, de forma centralizada, das atividades administrativas do Estado.”[52]

A Administração Pública Indireta, por sua vez, é composta pelas autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista, que agem mediante delegação. Nas palavras do ilustre doutrinador, a “Administração Indireta do Estado é o conjunto de pessoas administrativas que, vinculadas à respectiva Administração Direta, têm o objetivo de desempenhar as atividades administrativas de forma descentralizada.”[53][54]

No que tange aos concessionários e permissionários de serviços públicos, eles não integram a Administração Pública.[55]

As entidades do Terceiro Setor também não integram a Administração Pública, mas com ela se relacionam.

Já ficou assente que as entidades do Terceiro Setor atuam em prol do interesse público, de sorte que colaboram com o Estado na realização de alguns de seus misteres.

O Estado, em regra, efetua a descentralização[56] de suas atividades por meio da delegação. As delegações administrativas podem ser concretizados por meio da lei, do contrato administrativo, do ato administrativo complexo e do ato administrativo – delegações legal, pactual e unilateral.[57]

Com relação às entidades do Terceiro Setor, sua atuação é respaldada pela delegação social feita pelo Estado. Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, na delegação social “a transferência se opera em favor de entes criados pela própria sociedade, dedicados à colaboração no atendimento de interesses legalmente considerados como públicos.”[58]

Por meio da delegação social, o Estado limita-se a atuar subsidiariamente, sempre que as entidades privadas possam atuar com maior eficiência. [59]

Finalmente, há que se ressaltar que as entidades do Terceiro Setor agem em colaboração com o Estado, agem em parceria com o Estado com vistas à concretização do interesse público. Neste sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto as enquadra no que denomina de Administração Associada, que estaria ao lado da Administração Direta e da Administração Indireta. [60]

1.5 O CONCEITO DE TERCEIRO SETOR

Desde logo, há que se ressaltar que não há consenso quanto ao conceito de Terceiro Setor, bem como não há consenso quanto às entidades que o integram. O tema é debatido e tortuoso, razão pela qual merece uma análise cuidadosa.

1.5.1 A exigência de finalidade pública

Expôs-se na seção anterior que o Terceiro Setor é composto por entidades privadas sem fins lucrativos e com finalidade pública. Quanto ao requisito da ausência de finalidade lucrativa, a doutrina parece ser unânime ao exigi-lo. Porém, no que se refere à exigência de finalidade pública, há certa divergência, que merece ser apontada.

Explica Fernando Borges Mânica que há quem entenda que se enquadra no Terceiro Setor todas as entidades que não estejam albergadas pelos outros dois setores (Estado e mercado).[61] Assim, há autores que defendem que nem todas as entidades do Terceiro Setor têm finalidade pública, havendo entidades que visam aos interesses privados.[62]

Defendem esses autores que “(...) grande parte do setor é composta por organizações com fins coletivos privados, como uma organização para observação de pássaros tropicais (...) ou aquelas que cultivam orquídeas (...) ou ainda grupos literários e artísticos.”[63]

Neste diapasão, seria totalmente inútil a adoção de um conceito de Terceiro Setor que abrangesse todas as entidades sem fins lucrativos, vez que o conjunto de todas essas organizações não possuiria um regime jurídico próprio.[64] Um conceito amplo assim serviria mais para confundir do que para trazer uma definição precisa do que é o Terceiro Setor.

Destarte, “Terceiro Setor não deve ser entendido como um conceito amplo e residual.”[65]

Assim, possível é constatar que o requisito da finalidade não lucrativa não basta para enquadrar uma entidade no âmbito do Terceiro Setor. É preciso mais: a entidade privada deve ter finalidade pública.[66]

1.5.2 A expressão “paraestatal” e o Terceiro Setor

Colhendo as lições de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, as entidades paraestatais “são pessoas jurídicas de direito privado, criadas por lei para desempenhar, por delegação legal, atribuições de natureza executiva no campo das atividades sociais e econômicas cometidas ao Estado.”[67]

Di Pietro, por sua vez, conceitua as paraestatais como “pessoas privadas que colaboram com o Estado desempenhando atividade não lucrativa e às quais o Poder Público dispensa especial proteção, colocando a serviço delas manifestações do seu poder de império.”[68]

Certo é que em doutrina e jurisprudência não há consenso quanto ao conceito de entidade paraestatal.[69] Isto causa imprecisões e dúvidas para o intérprete, razão pela qual há quem prefira não empregar a expressão.[70]

Há entendimento no sentido de que as paraestatais englobariam as entidades da Administração Indireta e os serviços sociais autônomos.[71] Outros entendem que somente as autarquias são paraestatais.[72] Existem juristas que enquadram como paraestatais as empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas e serviços sociais autônomos.[73] E há aqueles que defendem que são paraestatais todas as entidades integrantes do Terceiro Setor, “o que abrange as declaradas de utilidade pública, as que recebem certificados de fins filantrópicos, os serviços sociais autônomos (SESI, SESC, SENAI), as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público.”[74]

Percebe-se, portanto, que o tema é tortuoso, havendo muito mais dissenso que consenso. Destarte, prefere-se, neste estudo, deixar de lado a expressão “paraestatal”.

1.5.3 O conceito de Terceiro Setor

Finalmente, não se poderia terminar este capítulo sem se trazer o conceito de Terceiro Setor. Também aqui a tarefa não é simples, razão pela qual se faz necessário buscar em doutrina alguns conceitos, para, depois, tentar-se formular um.

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a conceituação é a seguinte:

são entidades privadas, instituídas por particulares; desempenham serviços não exclusivos do Estado, porém em colaboração com ele; se receberem ajuda ou incentivo do Estado sujeitam-se a controle pela Administração Pública e pelo Tribunal de Contas. Seu regime jurídico é predominantemente de direito privado, porém parcialmente derrogados por normas de direito público.[75]

Fernando Borges Mânica, por sua vez, conceitua o Terceiro Setor “como o conjunto de pessoas jurídicas de direito privado, de caráter voluntário e sem fins lucrativos, que (i) desenvolvam atividades de defesa e promoção dos direitos fundamentais ou (ii) prestem serviços de interesse público.”[76]

Gustavo Justino de Oliveira sustenta que o Terceiro Setor pode ser compreendido como:

o conjunto de atividades voluntárias, desenvolvidas por organizações privadas não-governamentais e sem ânimo de lucro (associações ou fundações), realizadas em prol da sociedade, independentemente dos demais setores (Estado e mercado), embora com eles possa firmar parcerias e deles possa receber investimentos (públicos e privados).[77]

O autor fala em um Direito do Terceiro Setor, que seria

o ramo do Direito que disciplina a organização e o funcionamento das entidades privadas sem fins lucrativos, as atividades de interesse público por elas levadas a efeito e as relações por elas desenvolvidas entre si, com órgãos e entidades integrantes do aparato estatal (Estado), com entidades privadas que exercem atividades econômicas eminentemente lucrativas (mercado) e com pessoas físicas que para elas prestam serviços remunerados ou não remuneradas (voluntariado).[78]

Na tentativa de conceituar o Terceiro Setor, e adotando-se um conceito simples, tem-se que o Terceiro Setor é formado por entidades privadas, sem fins lucrativos e com finalidade pública, alicerçado na subsidiariedade estatal e no fomento público.

Sobre a autora
Juliana Viera Bernat de Souza

Advogada Pública na Agência Nacional de Saúde Suplementar, formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Juliana Viera Bernat. A administração pública e o terceiro setor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5069, 18 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54696. Acesso em: 5 nov. 2024.

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