4. Argumentos contra as reformas
Os que defendem a intocabilidade da cláusula pétrea relativa aos direitos e garantias individuais costumam apoiar-se em três argumentos principais
1) “Retrocesso social”
Assentam na própria Carta, tão questionada por eles próprios, a obstinada tese, que nada mais é do que a reafirmação do “princípio da proibição de retrocesso social (ou da regressividade), aquele que nega ao legislador o poder de eliminar um direito social já obtido em determinado grau de realização (o que eu figuraria como um efeito catraca). Tal princípio se apresenta nitidamente idealístico – no sentido de irrealista –, tanto que a doutrina alemã reconhece que a “proibição do retrocesso social nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas, ou seja, a “reversibilidade fática” (CANOTILHO, 2000, p. 332). Não obstante, dito princípio foi seguido pelo Tribunal Constitucional da República Portuguesa, segundo o muito citado Acórdão n. 39/84:
“[...] a partir do momento que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionais impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social.”
Ainda que citada com insistência, a respeitável opinião merece interpretação mais refinada, quando trazida à discussão na conjuntura brasileira, na qual há que reconhecer o descumprimento (total ou parcial), pelo Estado, de tantas tarefas constitucionais indispensáveis para a realização de direitos individuais inscritos na CF, mesmo que protegidos por cláusula pétrea. A ineficácia estatal é ainda maior no que tange aos direitos sociais, se considerarmos a sua universalidade e não os privilégios consolidados.
Note-se que a conceituação da Corte portuguesa não foi tão irrealista quanto aqueles que pensam ser possível realizar direitos ou proibir retrocessos simplesmente expressando tais vontades num texto constitucional. No mesmo Acórdão citado, os magistrados lusos apontaram uma diferença entre o que sejam tarefas atribuídas ao Estado, de feição programática, e o que são tarefas já realizadas, caracterizando um retrocesso social:
“Que o Estado não dê a devida realização às tarefas constitucionais, concretas e determinadas, que lhe estão cometidas, isso só poderá ser objecto de censura constitucional, em sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas, quando desfaz o que já havia sido realizado para cumprir essa tarefa, e com isso atinge uma garantia de um direito fundamental, então a censura constitucional já se coloca no plano da própria inconstitucionalidade por acção.”
2) Abolição de direitos
A discussão se embaralha quando assacam aos reformistas o pérfido propósito de abolir direitos, contra a proibição contida na cláusula pétrea do art. 60 da CF, embora estes não se cansem de afirmar que as mudanças propostas, longe de prejudicar tais direitos, visam à sua efetiva realização. Tenta-se, assim, ampliar a blindagem contra toda e qualquer mudança ou inovação na forma com que o texto constitucional e a legislação inferior determinam tal realização. E o fazem com exagero, como avalia Ferreira Filho:
“É certo que o texto proíbe abolir, ou seja, extinguir, eliminar, revogar, e assim não veda alterar, modificar, regulamentar, como pretende uma corrente interpretativa. Mas assim mesmo é amplíssimo o campo que cobre, inclusive se se entender, como parece correto, que os direitos e garantias salvaguardados são os fundamentais e não meramente os individuais. E neste campo amplíssimo são numerosíssimos os direitos concedidos, muitos dos quais não merecem o status de fundamentais.” (FERREIRA FILHO, 1995, p. 16)
3) Um leque que se abre
No mais forte da sua argumentação, afirmam que a cláusula pétrea referente a direitos e garantias individuais não deveria ser interpretada restritivamente, afirmando que sua abrangência deve estender-se além daqueles especificados no artigo 5º da CF. Esta é uma tese com muitos e respeitáveis adeptos, entre os quais Ives Gandra da Silva Martins, repetidamente citado em sua referência ao § 2º, do próprio artigo 5º. Entretanto, o eminente jurista defende limites para a interpretação extensiva, nem sempre lembrados por quem o cita. Eis a sua opinião completa sobre a matéria:
"Os direitos e garantias individuais conformam uma norma pétrea. Não são eles apenas os que estão no art. 5º, mas, como determina o § 2º do mesmo artigo, incluem outros que se espalham pelo Texto Constitucional e outros que decorrem de implicitude inequívoca. [...] Tem-se discutido se, via de regra, toda a Constituição não seria um feixe de direitos e garantias individuais, na medida em que o próprio Estado deve assegurá-lo, e sua preservação, em rigor, é um direito e uma garantia individual. [...] Por esta teoria, a Constituição seria imodificável, visto que, direta ou indiretamente, tudo estaria voltado aos direitos e garantias individuais.[...] Em posição diversa, entendo que os direitos e garantias individuais são aqueles direitos fundamentais plasmados no Texto Constitucional – e apenas nele – , afastando-se, de um lado, da implicitude dos direitos não expressos ou de veiculação infraconstitucional, bem como restringindo, por outro lado, aqueles direitos que são assim considerados pelo próprio Texto e exclusivamente por ele." (MARTINS, 1995, p. 371-372).
Na mesma linha, o professor Ingo Wolfgang Sarlet entende que os princípios fundamentais do Título I da CF integram, “pelo menos em parte”, o elenco dos limites materiais implícitos, argumentando que “não se afigura razoável [...] que o princípio da dignidade da pessoa humana não tenha sido subtraído à disposição do legislador”. E assevera que mesma força jurídica dos limites materiais expressos em uma constituição concreta pode ser atribuída aos limites implícitos, pelo que assegurariam, “ao menos em princípio”, o mesmo nível de proteção (Sarlet, 2016, p. 384-385).
Essa corrente encontra respaldo em uma decisão do pleno do STF que aponta na mesma direção:
“O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares [...] é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, essas regras também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, estão imunes a qualquer reforma que vise aboli-las.”
Não obstante, há ponderáveis ressalvas a essa linha de interpretação tão extensiva, como a que faz Ferreira Filho, para quem “Difícil é admitir que o constituinte ao enunciar o núcleo intangível da Constituição o haja feito de modo incompleto, deixando em silêncio uma parte dele, como que para excitar a capacidade investigatória dos juristas.” (FERREIRA FILHO, 1995, p. 14)
5. Contra a rigidez
Como alertamos já de início, os que se opõem a uma reforma constitucional que possa alterar cláusulas pétreas parecem querer deixar à sociedade duas únicas alternativas: a convocação de uma nova Assembleia Constituinte ou a incógnita de uma ruptura institucional. Entre outras vozes respeitáveis, Manoel Gonçalves Ferreira Filho adverte:
“É frequente, no Brasil contemporâneo, toda vez que se encara uma proposta de reforma constitucional, levantar-se o "veto" das "cláusulas pétreas". Aceitando-se a posição de alguns, o direito constitucional brasileiro estaria, quase por inteiro, "petrificado" em razão das referidas cláusulas que enuncia o art. 60, § 4º, da Lei Magna vigente. Consequência lógica disto seria a necessidade de uma "revolução" (no sentido de quebra da ordem jurídica em vigor) para a maior parte das mudanças que a experiência e o evolver dos tempos mostrarem necessárias para o país.” (FERREIRA FILHO, 1995, p. 1)
Em contraposição, haverá quem diga que, tendo em vista a consolidação da democracia brasileira, pode ser afastado o risco de que a intocabilidade das cláusulas pétreas da CF venha a levar a uma revolução ou a um golpe de estado. A solidez de nossas instituições foi de fato comprovada no recente episódio do impeachment de Dilma Roussef, processado nos termos da Constituição vigente, apesar da obstinada opinião contrária da facção afastada do poder.
Não obstante, é possível antever a delicadeza da situação que se criará a partir da avalanche de recursos que certamente advirão da eventual aprovação das reformas, a serem julgados na nossa Suprema Corte. Então, caberá exclusivamente aos ministros do STF a interpretação “adequada”, na conceituação de Hesse, a fim de “concretizar o sentido da proposição normativa nas condições reais dominantes numa determinada situação.” (HESSE, 1991, p. 22-23).
Em outras palavras, o poder revisório negado ao Congresso – portanto, à sociedade que ele representa –, mesmo quando atendida as exigências de rito e de maioria qualificada, acabará, de fato, sendo exercido por um grupo de onze cidadãos (em que pesem os reparos de que tem sido alvo o processo da eleição dos membros da Suprema Corte). Na hipótese, uma vez obstaculizada a mudança da CF pelo mecanismo formal do Poder Legislativo, tudo se encaminharia para uma mudança informal, pela via da interpretação, num processo referido por Scarlet como “mutação constitucional” pelo qual o sentido e o alcance da constituição são alterados, embora mantido intacto o seu texto (SARLET, 2016, p. 372).
Veja-se a opinião do ministro Celso de Mello, expressada em relatório aprovado por unanimidade pela respectiva Câmara do STF:
“A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO. - A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea.”
O que estaria por vir pode ser intuído, também, do pensamento registrado pelo ministro Gilmar Mendes, em voto de relator, que merece extensa citação:
“É fácil ver que a amplitude conferida às cláusulas pétreas e a ideia de unidade da Constituição (...) acabam por colocar parte significativa da Constituição sob a proteção dessas garantias. Tal tendência não exclui a possibilidade de um ‘engessamento’ da ordem constitucional, obstando à introdução de qualquer mudança de maior significado (...). Daí afirmar-se, correntemente, que tais cláusulas hão de ser interpretadas de forma restritiva. Essa afirmação simplista, ao invés de solver o problema, pode agravá-lo, pois a tendência detectada atua no sentido não de uma interpretação restritiva das cláusulas pétreas, mas de uma interpretação restritiva dos próprios princípios por elas protegidos. Essa via, em lugar de permitir fortalecimento dos princípios constitucionais contemplados nas "garantias de eternidade", como pretendido pelo constituinte, acarreta, efetivamente, seu enfraquecimento. Assim, parece recomendável que eventual interpretação restritiva se refira à própria garantia de eternidade sem afetar os princípios por ela protegidos (...). (...) Essas assertivas têm a virtude de demonstrar que o efetivo conteúdo das "garantias de eternidade" somente será obtido mediante esforço hermenêutico. Apenas essa atividade poderá revelar os princípios constitucionais que, ainda que não contemplados expressamente nas cláusulas pétreas, guardam estreita vinculação com os princípios por elas protegidos e estão, por isso, cobertos pela garantia de imutabilidade que delas dimana. (...) (grifo nosso)
Na mesma linha, a posição do ministro Celso de Melo:
“O Congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par de restrições de ordem circunstancial, inibitórias do poder reformador (CF, art. 60, § 1º), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar. As limitações materiais explícitas, definidas no § 4º do art. 60 da Constituição da República, incidem diretamente sobre o poder de reforma conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o exercício nos pontos ali discriminados. A irreformabilidade desse núcleo temático, acaso desrespeitada, pode legitimar o controle normativo abstrato, e mesmo a fiscalização jurisdicional concreta, de constitucionalidade.” (grifo nosso) [11]
Há quem argumente que a legitimidade da Suprema Corte deriva da maioria pretérita do poder constituinte originário, sendo, portanto, de grau maior à que resultasse de uma maioria do poder constituinte derivado. Mas, não deixa de ser questionável confiar – em questão de tamanha repercussão e na vigência de crise tão grave – a última palavra a um órgão judicial que, constitucionalmente constituído e empoderado, é certo, entretanto não tem a representatividade numérica do Congresso Nacional, nem os seus membros democraticamente eleitos, como os tem este.
Encaminhando-se a questão como sinalizado pelas manifestações dos doutos Ministros, resta a esperança que no seu julgamento prevaleça o princípio do interesse público, tal como ressaltado na seguinte manifestação do decano do STF:
‘Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.”